Ilustração: Carvall
A carta de Esperança
Como uma mulher negra e escravizada se tornou a primeira advogada do Brasil — e por que outras mulheres negras não querem que a história desapareça
Um pequeno grupo de bodes se assusta quando uma motocicleta acelerada corta a estrada de terra na comunidade quilombola de Algodões, localizada na cidade de Nazaré do Piauí, a 275 km de Teresina. Sem calçamento, muros ou cercas, os animais correm soltos entre os quintais e os terreiros das quase 53 famílias que moram ali. Como quase todas as outras comunidades quilombolas da região, o lugar é emoldurado por pequenas casas levantadas com adobe cru — uma espécie de tijolo feito com uma mistura de terra e palha, que precisa ser pisada com os pés até dar o ponto. Quem precisa de atendimento médico, matricular as crianças nas escolas ou acessar qualquer serviço de assistência social tem que se deslocar para a zona urbana da cidade. Moradores estimam que o lugar tenha mais de duzentos anos. Ali funcionou a Fazenda de Algodões, uma propriedade rural que possuía o maior plantel de pessoas escravizadas da região. Com a Lei Áurea, elas deixaram as propriedades e ficaram vivendo em Algodões. Até hoje, porém, Algodões ainda não foi reconhecida pela Fundação Cultural Palmares como área remanescente de quilombo.
Para quem não mora ou não nasceu na região, nada no lugar dá indícios de que lá viveu Esperança Garcia, uma mulher negra escravizada reconhecida como a primeira advogada do Brasil. Foi em 25 de novembro de 2022 que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB) concedeu à piauiense o título que pertencia a Myrthes Gomes, que ingressou na advocacia em 1899. Mas uma carta assinada por Esperança e datada de 6 de setembro de 1770 mudou essa história.
O Dossiê Esperança Garcia, que pleiteou o reconhecimento junto à OAB, conta que Esperança era uma mulher negra escravizada, que teria aprendido a ler e escrever com padres jesuítas na fazenda Algodões. Anos depois, foi transferida para outro senhor, na fazenda Poções. Separada da família, viveu em meio a maus-tratos e abusos. Para pedir ajuda, escreveu de próprio punho uma carta contando sua situação e conseguiu que ela fosse enviada a Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, governador da então capitania do Piauí. Numa época em que as estratégias de resistência se traduzia em fugas, suicídios e assassinatos, Esperança desafiou o sistema vigente reivindicando aquilo que lhe era de direito segundo as leis do seu tempo.
Esperança sabia que a fazenda onde vivia estava sob catequese de missionários da Companhia de Jesus — e que pessoas escravizadas, indígenas e “agregados” deveriam ser batizados. Não clamou para deixar de ser uma pessoa escravizada, pois sabia que seria mais difícil, e rogou por direitos que a lei de então a assegurava: o batismo de uma filha.
Em uma carta de vinte linhas, escrita à mão, ela pede: “Eu sou uma escrava de Vossa Senhoria da administração do Capitão Antônio Vieira do Couto, casada. Desde que o capitão lá foi administrar que me tirou da fazenda Algodões, onde vivia com o meu marido, para ser cozinheira da sua casa, ainda nela passo muito mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho meu sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca, em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo peiada; por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar há três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Peço a Vossa Senhoria pelo amor de Deus ponha os olhos em mim ordenando digo mandar ao procurador que mande para a fazenda de onde me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha.”
Ao escrever uma carta assinada com o seu nome, Esperança também fala em nome de outras mulheres que sofriam maus-tratos na fazenda. A confissão e o batismo, obrigações religiosas, apresentam-se como argumentos estratégicos para convencer as autoridades. Sem formação específica, Esperança escreveu um documento com elementos básicos de uma petição jurídica, contendo endereço, identificação, narrativa dos fatos, fundamento no direito vigente e um pedido. Ao recorrer a regras jurídicas e religiosas dos colonizadores, que concediam aos escravizados a possibilidade de constituir famílias e o batismo dos filhos nos preceitos católicos, ela evoca seus direitos enquanto religiosa. “É nesse momento que Esperança Garcia deixa entrever suas qualidades de intérprete da escravidão e do direito português”, destaca o dossiê entregue à OAB, e ao qual foi anexada uma foto da carta. O Dossiê Esperança Garcia: Símbolo de Resistência na Luta pelo Direito resultou da pesquisa realizada pela Comissão da Verdade da Escravidão Negra da OAB/PI. Foi elaborado por um grupo de historiadores e juristas, presidido pela professora Maria Sueli Rodrigues, professora da Universidade Federal do Piauí (UFPI), que morreu em julho de 2022, sem ver o reconhecimento nacional da advogada negra. “Mesmo na condição de escravizada, a aceitação do cristianismo e o reconhecimento da autoridade da Coroa portuguesa permitiriam uma série de vantagens, entre elas recorrer ao direito português nos casos de excessos dos senhores”, afirmam os autores no estudo.
Acredita-se que Esperança tinha 19 anos quando escreveu a carta, e até agora, não se encontrou qualquer indício de resposta por parte da Província de São José do Piauí. Demorou 209 anos para a carta ser reencontrada. Uma cópia foi descoberta pelo historiador Luiz Mott no Arquivo Público do Piauí, em Teresina, quando realizava sua pesquisa de mestrado em antropologia, em 1979. Junto com essa carta, uma outra, mais longa e de autoria desconhecida, relata detalhes da tirania do Capitão Antônio Vieira do Couto, o administrador da fazenda Poções. Essa segunda carta também descreve os maus-tratos contra pessoas negras escravizadas. “Todas as noites trabalham sem descanso algum, sendo preto velho e se moço tudo podia a sua mocidade suportar”, revela um trecho do segundo documento. E em outro trecho, essa segunda carta cita Esperança, dando indícios do destino que ela tomou: “Tirou uma escrava chamada Esperança, casada, da fazenda dos Algodões e não tem concedido tempo algum para a dita ir fazer vida com seu marido, vendo apertada com vários castigos tem fugido por várias vezes.”
Tempos depois, o nome de Esperança reaparece em uma relação de escravizados da Fazenda Algodões, o que dá mostras de que ela conseguiu voltar para o lugar. Na lista estão os nomes de Esperança e seu marido, Ignacio, ela com 27 anos, e ele com 57. A mesma lista ainda informa a existência de nove crianças no lugar, com idades entre 1 e 14 anos. Entre elas, uma menina chamada Paula, de 9 anos, e um menino Manoel, de 12 — a idade aproximada que teriam os filhos do casal. Mesmo sem confirmações, a história aponta que Esperança teria conseguido voltar para sua família.
Hoje em dia não se sabe o paradeiro da carta original de Esperança Garcia. Pesquisadores que montaram o dossiê buscaram o Arquivo Público do Piauí, o órgão responsável pela guarda da documentação de valor histórico, artístico e cultural produzida no estado, mas o local declarou a eles não saber o destino do documento. À piauí, a diretoria do órgão explicou que, durante a década de 1990, a carta foi cedida para exposições sobre a escravidão no Piauí. Foi entre uma exposição e o retorno ao prédio que o paradeiro da carta ficou impreciso. A diretora Rosângela Sousa disse que desde 2007, com o conhecimento da história de Esperança Garcia, a busca pela carta se intensificou. “Esse documento é procurado todos os dias no nosso acervo em uma caçada permanente. Todos os nossos especialistas estão capacitados para reconhecer a carta, mas pela quantidade gigantesca de documentos, é como encontrar uma agulha no palheiro”, explica Sousa. Uma outra teoria que circula na administração do Arquivo Público é que a versão encontrada no Piauí seja apenas uma cópia e que a original tenha sido levada para Portugal. Por enquanto, o que resta da carta é uma única fotografia, feita nos anos 1990 pelo historiador Paulo Gutemberg e anexada ao processo entregue pela Comissão Estadual da Verdade da Escravidão Negra à OAB. O dossiê é ilustrado com a imagem de uma mulher negra, criada em 2015 pela ilustradora Valentina Fraiz e modificada ao longo do tempo. Outras versões, feitas por outros ilustradores e desenhistas, também circulam na internet e na academia. No entanto, pela época e pelo contexto em que viveu Esperança, não há indícios de nenhuma fotografia ou pintura que dê detalhes de como seria seu rosto.
O Dossiê Esperança Garcia: Símbolo de Resistência na Luta pelo Direito, elaborado por um grupo de historiadores e juristas, e a Carta de Esperança, registrada na foto de Paulo Gutemberg
“Alguém aqui já ouviu falar de Esperança Garcia?”
A voz da advogada e professora Andreia Marreiro corta o silêncio do pequeno auditório do Instituto Federal do Piauí (IFPI), do Campus Avançado Dirceu Arcoverde, periferia da zona sudeste de Teresina. Na sala, mais de quarenta estudantes do ensino médio e técnico, período noturno, se reuniram para receber uma das pesquisadoras envolvidas na construção do Dossiê Esperança Garcia preparado pela Comissão da Verdade da Escravidão Negra da OAB/PI. A turma é composta majoritariamente por adolescentes negras e de famílias de baixa renda — um retrato que também se repete nas turmas matutinas e vespertinas. São poucos os homens, adultos e brancos. A disparidade do público se dava pelo funcionamento das aulas de ensino médio e o grau técnico oferecidos pela instituição. Poucos alunos esticam o braço ou assentem conhecer Esperança Garcia. A maioria nem sabia o nome da advogada, tampouco lembra de ter lido ou visto alguma menção a ela nos livros escolares.
O desconhecimento dos alunos, mesmo numa escola piauiense, mostra que, na história de Esperança Garcia, não foi só a carta que desapareceu. Mesmo em Algodões, comunidade em que Esperança viveu, seu legado passa despercebido. Apesar da história dela ser conhecida entre os moradores, e ter ganhado fôlego nos últimos anos, a comunidade não se lembra de qualquer atividade para resgatar o significado do feito de Esperança. Nem mesmo no dia 6 de setembro, a data da carta, reconhecida como Dia Estadual da Consciência Negra em sua homenagem, nada em Algodões lembra o feito da advogada. Uma placa na entrada do município de Nazaré e uma unidade hospitalar batizada com o nome de Esperança Garcia lembram a história da primeira advogada do país.
Maria José Alves, de 38 anos, mora em Algodões desde que nasceu e só soube da existência de Esperança depois de adulta. As filhas, ainda crianças, já conhecem a história de Esperança, mas nunca foram incentivadas pela escola ou participaram de atividades que resgatasse a simbologia da vida da mulher. Em Oeiras, a cidade à qual Algodões era ligada quando Nazaré ainda não era sequer município, mantém uma sala em homenagem à advogada no segundo piso do sobrado Major Selemérico, construção histórica do século XIX tombada pela Fundação Cultural do Piauí (Fundac) em 2006. A sala, que não chega a ser um espaço de exposição, nem tampouco um museu, guarda colheres de pau, lamparinas e imagens de negros acorrentados, mas nada que faça menção a Esperança Garcia.
Teresina, a capital, viveu nas duas últimas décadas um movimento para recuperar o legado de Esperança Garcia. A primeira advogada brasileira dá nome a prédios públicos como o Creg (Centro de Referência Esperança Garcia), espaço de atendimento às mulheres em situação de violência doméstica mantido pela prefeitura. Desde de 2017, o Memorial Zumbi dos Palmares, um espaço cultural da cidade, passou a se chamar Memorial Esperança Garcia. Antes, em 2007, o lugar era o prédio da Escola Domingos Jorge Velho, em homenagem ao bandeirante conhecido por caçar pessoas escravizadas. À época, a troca de Zumbi por Esperança não agradou aos movimentos sociais, que reclamaram da falta de participação de entidades do movimento negro na decisão. Em 2015, Marreiro deu início às atividades da primeira pós-graduação do Piauí voltada para direitos humanos. Quatro anos depois, o lugar ganhou uma sede e se tornou Instituto Esperança Garcia. No dia 8 de março deste ano, Dia Internacional da Mulher, um busto de cobre, doado pela Secretaria Estadual de Cultura do Piauí (Secult-PI), foi inaugurado na sede da Ordem dos Advogados do Piauí. O Conselho Federal da OAB, em Brasília, também terá um busto em homenagem à Esperança, idêntico ao primeiro. A instalação está prevista para os próximos meses, mas sem data definida.
Na noite de 7 de março deste ano, antes das luzes esmaecerem para a exibição do filme A Carta de Esperança Garcia, um grupo de mulheres negras, com cartazes e turbantes, sobe ao palco do Theatro 4 de Setembro, em Teresina, para entregar uma carta à ministra da Cultura, Margareth Menezes. Sentada na primeira fila, a ministra foi convidada de honra pelo governador Rafael Fonteles (PT) para o lançamento do filme dirigido por Douglas Machado sobre a primeira advogada do país. As mulheres, integrantes do Centro de Defesa Ferreira de Sousa, uma associação comunitária de defesa dos direitos humanos da capital, levaram um cartaz com uma mensagem em letras vermelhas e brancas: “Milhares de Esperança Garcia passam fome no Piauí.”
A ativista Maria Lúcia Souza, participante do grupo, escreveu para a ministra uma carta sobre a sua história e as mulheres da Avenida Boa Esperança, uma região da periferia da Zona Norte da capital que se originou de comunidades ribeirinhas tradicionais. Na carta, Souza conta que parte da comunidade teve residências e terreiros de umbanda selados pela Prefeitura de Teresina sob aviso de despejo para dar espaço à construção de um complexo turístico. “Existe uma história de que a escravidão foi branda no Piauí, mas não é isso que aconteceu”, conta Souza. “Pelo contrário, os efeitos da escravidão no estado são sentidos até hoje.” Ela teme que a história de Esperança Garcia seja romantizada e despolitizada. “As mães negras, as Esperanças do presente, continuam sofrendo.” E cita como exemplo os dados da Rede de Observatórios em Segurança Pública, divulgados em novembro do ano passado: pelo menos cinco pessoas negras foram mortas por dia em ações policiais em 2021 nos estados da Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo. Foram 3.290 mortes, sendo que 2.154 vítimas (65%) eram negras. No Piauí, o percentual de pessoas negras entre os mortos pela polícia chegava a 75%. Em Teresina, a letalidade chegou a 83%, com casos mais evidentes nas periferias da capital. A Secretaria de Segurança Pública do Piauí (SSP-PI) informou que não comenta dados relativos a pesquisas realizadas por outras instituições e órgãos. O Piauí ainda não tem uma Secretaria de Igualdade Racial, apenas uma superintendência da Igualdade Racial, encarregada de definir ações referentes ao tema.
O Piauí ainda não tem uma Secretaria de Igualdade Racial, apenas uma superintendência que começou a funcionar em janeiro deste ano, com o objetivo de definir ações referentes ao tema. A superintendente Assunção Aguiar disse à piauí que o papel do órgão tem sido articular ações em conjunto com todas as outras secretarias para combater o racismo, com foco em segurança pública, educação e geração de emprego e renda para a população negra. “É um compromisso nosso fortalecer a população do povo preto nas suas urgências dentro das comunidades e periferias para materializar mudanças estruturais”, explicou. “Mas nós também temos um grande desafio que é dar visibilidade às histórias do povo negro, como a história de Esperança Garcia. Garantir essas ações concretas é honrar a identidade e memória do povo negro”, destacou. A nova estrutura é vinculada à Secretaria Estadual da Assistência Social (SASC).
Para a professora Marreiro, o pequeno número de iniciativas para valorizar o feito de Esperança Garcia é ancorado em um problema maior do ponto de vista histórico e jurídico: o acesso à verdade sobre o protagonismo do povo negro na luta pelo fim da escravidão, não somente no Piauí, mas em todo o Brasil. “A quem interessa que a história de Esperança Garcia passe tanto tempo para ser conhecida pela sociedade brasileira?”, questiona a pesquisadora. “Forças como o racismo e sexismo querem mantê-la no anonimato para não inspirar mulheres, pessoas negras, a se insurgir, resistir e lutar por dignidade”, complementa. “Lembrar e contar a história de Esperança Garcia é reconhecer como o racismo e sexismo nos negam o direito à nossa própria história.”
Na região de Nazaré, onde Esperança Garcia viveu, a líder quilombola Deusatina Ribeiro luta a seu modo para manter viva a história de Esperança entre mulheres e meninas de comunidades próximas. “Eu sei por que a história de Esperança não foi contada”, diz sem grandes surpresas à piauí. “É porque era a história de gente pobre, de negro e de mulher.” Em sua luta diária, Ribeiro faz o que o poder público não faz: visitar comunidades no entorno de Nazaré em busca de meninas e mulheres para, de novo, contar os feitos da primeira advogada do país do ponto de vista de uma mulher negra e quilombola. “O legado de Esperança não é uma placa. O legado de Esperança é a resistência contra o racismo e o machismo todos os dias.”
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