Manoel de Barros em sua casa: refúgio do poeta pantaneiro abriga sua biblioteca, móveis e utensílios domésticos - FOTOS: PEDRO SPÍNDOLA
A casa da poesia
Neto do poeta Manoel de Barros põe à venda sobrado onde o avô escreveu a maioria de seus 28 livros; ideia é que o imóvel vire um museu
O sobrado onde o poeta mato-grossense Manoel de Barros viveu durante quarenta anos está à venda por 3 milhões de reais com quase tudo o que lhe pertenceu: a mobília, as obras de arte, os utensílios domésticos e a biblioteca, que reúne cerca de 1,3 mil volumes. O negócio, no entanto, só vai se concretizar sob uma condição: quem adquirir a casa de 140 m2, em Campo Grande (MS), precisará transformá-la num museu.
O imóvel mantém intacto o escritório em que o autor escreveu a maior parte de seus livros – vinte dedicados à poesia, quatro à prosa poética e quatro às crianças. Lá Manoel se enfurnava todos os dias, inclusive aos fins de semana. Ele acordava religiosamente às cinco da manhã, fazia uma caminhada, tomava guaraná em pó e, perto das sete horas, seguia para “o lugar de ser inútil”, como gostava de chamar o gabinete. Só deixava o refúgio pouco antes do almoço. Quando não estava criando versos, entregava-se à leitura ou redigia entrevistas, já que preferia responder à imprensa por escrito. Dizia que odiava “falar com ferros”, em alusão ao microfone dos repórteres. Provavelmente, o nome irônico que o poeta deu para o escritório remete às críticas desferidas por seu pai tão logo soube que o filho seria “fraseador”. “Coisa mais inútil!”, lamuriou o velho. No gabinete, o literato recebia apenas os amigos muito próximos. Políticos, intelectuais, professores, estudantes e fãs que o visitavam regularmente ficavam restritos à sala.
Foi também na sala que, em julho de 2013, o autor se tornou membro da Academia Sul-mato-grossense de Letras. Ele ocupava a cadeira número 1 da instituição. A cerimônia de posse decorreu sem pompa nem discursos. Àquela altura, o poeta – que morreria em novembro de 2014, com 97 anos – já se encontrava bastante debilitado. Principalmente por causa disso, a solenidade aconteceu na residência. Há quem sustente que Manoel não queria integrar a ASL pelo fato de a agremiação sempre tê-lo esnobado. Alguns acadêmicos até reclamavam que o literato escrevia errado. Ele só aceitou ingressar na entidade por insistência de um irmão, o advogado e cronista Abílio de Barros, que fazia parte da ASL.
A ideia de vender o sobrado partiu de Silvestre de Barros, um dos sete netos de Manoel. O engenheiro florestal herdou a casa em dezembro de 2020, após a morte da avó, Stella. Na divisão dos bens, a artista plástica Martha de Barros – filha do escritor – ficou com todos os direitos autorais do pai, uma vez que os dois irmãos dela haviam morrido. O mais velho sofreu um AVC letal em 2013. Já o caçula não resistiu a um acidente aéreo. Em 2007, ele pilotava um monomotor que colidiu com uma vaca num campo de pouso rural. O bicho atravessou a pista enquanto o aviãozinho aterrissava.
Localizada no Jardim dos Estados, bairro rico de Campo Grande, a residência em estilo modernista possui três quartos e um pequeno quintal. Entre as obras de arte que abriga, destacam-se uma série de pinturas naif e peças do artesanato pantaneiro. O próprio Manoel desenhou e ajudou a construir o sobrado. “A propriedade está exatamente do jeito que o poeta a deixou. Até o copo em que ele costumava beber uísque nos fins de tarde continua no mesmo lugar”, diz Pedro Spíndola, amigo do escritor por mais de três décadas. Responsável pelo projeto do futuro museu, o jornalista é o maior colecionador de pertences do literato. “Vou ceder tudo para o comprador do sobrado”, promete. O acervo agrega livros, manuscritos, ilustrações, filmagens, gravações e aproximadamente trezentas fotos de Manoel, tiradas por Spíndola.
O jornalista estima que o novo proprietário da casa gastará pelo menos três anos para adaptar o imóvel e convertê-lo num museu, com livraria, sala de reunião, miniauditório, cafeteria e espaço expositivo. O governo de Mato Grosso do Sul e a prefeitura de Campo Grande estão na mira do vendedor, além de universidades, institutos culturais e empresas privadas.
Cuiabano, Manoel de Barros nasceu em 1916 e morou dezoito anos no Rio de Janeiro – primeiro, como aluno interno do Colégio Marista São José; depois, em pensões no bairro do Catete. Filiou-se ao Partido Comunista na juventude, mas se afastou dele em 1945, quando o secretário-geral da sigla, Luís Carlos Prestes, se aproximou do presidente Getúlio Vargas. No Rio, Manoel tinha o hábito de passear com o primo, Roberto Campos, que se tornaria um influente economista e diplomata. À época, o poeta cursava direito em Niterói. Mal terminou a faculdade, se empregou como advogado do sindicato dos pescadores. Em 1947, casou-se com Stella e perdeu o pai. Herdou, assim, uma fazenda com quinhentos bois e alguns cavalos no Pantanal da Nhecolândia, região que se situava dentro do Mato Grosso (hoje está no Mato Grosso do Sul).
O escritor se transferiu para lá com a mulher e os três filhos no final da década de 1950. A administração da fazenda acabou lhe proporcionando a independência financeira. Ele resolveu, então, se fixar em Campo Grande e se dedicar somente à poesia. Virou um dos únicos poetas brasileiros que também era latifundiário e dono de 10 mil cabeças de gado.
Nas muitas entrevistas que concedeu por escrito à mídia nacional e estrangeira, o autor mentiu insistentemente sobre si mesmo. Disseminou histórias falsas até para os amigos mais chegados, aqueles com quem dividia a cerveja e a pinga nos bares. Inventou que acompanhara Vinicius de Moraes em noitadas pelo Rio e por um cabaré de Cuiabá; que fracassou numa transa com a atriz Leila Diniz; que conheceu o poeta peruano César Vallejo durante uma viagem pela América Latina; que viveu com indígenas na Bolívia; que ciceroneou João Guimarães Rosa no Pantanal; que escrevia cartas para Clarice Lispector e recebia elogios da romancista.
O pior é que diversos estudiosos, jornalistas e leitores acreditaram nas lorotas e as reproduziram como fatos em teses, matérias e conversas. Manoel dizia que fantasiava para incrementar sua biografia que era, segundo ele, muito sem graça. “Noventa por cento do que escrevo é invenção. Só dez por cento é mentira”, costumava sentenciar pela vida afora.
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