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    Malu Mader e Antonio Fagundes em O Dono do Mundo: um velho dia, de um velho tempo que terminou Jorge Baumann/ TV Globo

vultos da fama

Caviar em colher de sopa

Como eram as regalias de artistas da Globo nos anos dourados da tevê aberta

Roberta Malta, do Rio de Janeiro | 11 nov 2024_15h39
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Maitê Proença tinha acabado de alcançar a maioridade civil quando, a convite de Mário Prata, autor da telenovela Dinheiro Vivo, foi fazer um teste na TV Tupi. Joana Albuquerque, a jovem ingênua do interior que viajou até a cidade grande para responder perguntas sobre Roberto Carlos no quiz show Três Milhões de Cruzeiros, cenário principal da trama, ficaria uma semana no ar. Mas a atriz, que à época integrava o Centro de Pesquisa Teatral (CPT) de Antunes Filho, diretor que manteve um discurso ferrenho antitelevisão durante toda a sua carreira, agradou tanto que sua personagem virou coapresentadora do game e permaneceu até o fim da novela.

O ano era 1979, um antes de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, assumir a Vice-Presidência de Operações da Rede Globo, tornando-se responsável pela direção da empresa, que vivia seu auge e era líder absoluta de audiência no país. Não demorou para a Globo convidar Maitê para integrar o elenco da casa. Uma, duas, três, quatro vezes. Na quinta, ela aceitou conversar com a cúpula da emissora. “No dia da reunião, eu fui à praia e, superbronzeada, botei uma roupa azul royal bem despretensiosa, mas que fazia com que meus olhos saltassem. Lembro que, quando entrei na sala do Boni, estavam oito diretores sentados em semicírculo, e os queixos caíram. Quando vi isso acontecer, me fortaleci”, conta a atriz.

A ideia era chamá-la para fazer o humorístico Planeta dos Homens, programa que, para a surpresa de todos os presentes, ela não conhecia. Mandaram então buscar uma fita para apresentar a atração à atriz. A exibição, no entanto, não passou da apresentação. Quando viu a bailarina Wilma Dias de biquíni saindo de uma banana, Maitê encerrou o assunto. “Esquece, não tem a menor condição. Se vocês querem um objeto, botem um abajur. Não eu”, disse na ocasião.

Os diretores então perguntaram o que ela gostaria de fazer. “A personagem principal da novela das oito”, afirmou sem rodeios. Eles se espantaram. “Como assim? Por que você acha que tem competência para isso?” Mais uma vez, ela não titubeou: “Não, eu não acho. Quem acha são vocês, que estão me chamando pela quinta vez.” E emendou: “Eu realmente não sei nada, mas garanto que aprendo.”

Boni então mandou todo mundo sair da sala e começou a negociação. Sem a menor ideia de valores e nem um pouco preparada para aquela conversa, Maitê foi questionada sobre sua pretensão salarial. “Minha ideia era fazer uma novela [que na época durava seis meses] e voltar para a França fazer faculdade”, diz. Ela então fez um cálculo mental de quanto precisaria para pagar essa despesa e viver confortavelmente. E chutou alto. “Acho que aquela criatura e a situação toda pareceram tão abusadas, que o pacote interessou.” Negócio fechado.

Quando Boni entrou na TV Globo, no fim dos anos 1960, a convite de Walter Clark — primeiro diretor-executivo da casa, que depois se tornou diretor-geral da emissora —, a primeira providência que tomou foi fazer uma reserva de mercado. A ideia era ter na empresa o que existisse de melhor na televisão brasileira. “Pessoas que já eram famosas eram contratadas por um período de tempo, mas a maior parte era pela obra. E uma vez que apresentavam um resultado satisfatório, não de audiência, mas de trabalho artístico, a gente fazia um contrato de mais longo prazo”, explica Boni. Segundo ele, a preocupação de Roberto Marinho, proprietário do Grupo Globo, era muito mais com a segurança da empresa do que com qualquer outra coisa. “E a segurança da empresa era montar um grupo de autores, um de diretores e um elenco que fosse imbatível.”

A maneira de conseguir isso foi convencer as pessoas da solidez daquele projeto. “Eu não chegava e perguntava se o Tarcísio Meira queria fazer Irmãos Coragem. Eu dizia: ‘Você quer vir para a TV Globo? Porque nós estamos criando um núcleo, vamos ter quatro novelas diárias no ar e investir a longo prazo'”, lembra. Nesse momento, a empresa estava longe de ser a potência financeira que virou anos depois e eles tinham que buscar dinheiro no mercado. “Chegamos a uma TV Globo pobre, que havia fracassado em sua tentativa inicial. Então, dizíamos: ‘O Dr. Roberto nos deu cinco anos para colocar a emissora em primeiro lugar e nós vamos fazer isso. É um projeto meu e do Walter Clark, eu acredito no talento nacional, vamos investir em equipamentos, temos bons estúdios.'”

A promessa de um futuro com empregos em abundância e boa perspectiva financeira certamente encheu os olhos daquelas pessoas que assistiam à enorme crise das televisões em atividade na época, todas com apenas um horário dedicado à teledramaturgia. Mas fazia a diferença a ideia de receber em dia, a exemplo do que o grupo fazia na rádio e no jornal, mais um ou outro agrado.

Boni lembra com graça do primeiro contrato de Regina Duarte, atriz com physique du rôle na medida para encarnar as mocinhas das novelas, que vivia a protagonista de O Terceiro Pecado na TV Excelsior e estava com a remuneração atrasada. Além de adiantar os pagamentos que compensavam os ordenados não recebidos no emprego anterior, o diretor ofereceu apoio na vida pessoal de Regina, que estava prestes a se casar. “Ela estava precisando comprar os móveis para a casa nova e eu ajudei objetivamente: ‘Vê o orçamento do que você quer e eu dou o dinheiro para comprar'”, conta.

A ideia por trás disso, que se perpetuou ao longo dos anos em que Boni permaneceu na liderança da emissora, até 1997, período que estabeleceu, com Walter Clark, o famoso padrão Globo de qualidade (e depois entre 1998 e 2001, como consultor) era tornar o ambiente de trabalho o mais agradável possível. “A gente tratava esses contratos de maneira humanística, procurando satisfazer as necessidades dos funcionários para poder obter um rendimento artístico. Valorizar o artista brasileiro era um objetivo exclusivamente meu, não estratégico da TV Globo.”

“A cada novela era líquido e certo que, no dia da estreia, chegaria um presente na minha casa”, diz Maria Zilda Bethlem. A atriz conta que, dias antes de começar a gravar Jogo da Vida, a convite do autor Silvio de Abreu, ela descobriu que estava grávida. Certa de que não poderia cumprir o contrato, telefonou para ele e deu a notícia. “Você vai fazer a novela, sim. Conforme sua barriga for crescendo, a gente vai fechando o plano”, disse Silvio. Ela trabalhou até a véspera de parir e ganhou de presente do chefão o quarto do bebê. “Berço, cômoda, armário. Ele me deu tudo.”

Quando as tramas chegavam ao fim, era comum os atores de maior destaque ganharem passagens de primeira classe para Nova York. Se a vontade, no entanto, fosse visitar Paris, ele trocava o destino. “A gente comia caviar com colher de sopa, fazia aquele monte em cima do blinis [mini panquecas]. Era uma farra”, conta Maitê. Maria Zilda lembra ainda que os bilhetes vinham acompanhados de ingressos para assistir aos musicais da Broadway.

De tão habitual, o que no começo era um presente espontâneo passou a constar como cláusula nos contratos, ainda que as negociações fossem individualizadas. “O modelo base da época era de 3 anos + 1. Quando chegasse no fim, se a pessoa estivesse em um projeto que entrasse no ano seguinte, já estava acordado que esse contrato seria automaticamente estendido”, explica Zeca Vitorino, agente notório de grandes estrelas da casa, desde os anos 1990. Outro benefício que constava nas letras nada miúdas dos acordos de trabalho do primeiro time da emissora eram as luvas. “Quando assinava, o artista ganhava de três a cinco salários de bonificação. Depois, quando começava uma novela, recebia de um a quatro salários extras no começo e o mesmo valor no fim da obra”, recorda Vitorino.

“Corre na Globo que quem inventou isso foi o José Mayer, que era muito solicitado para fazer novela das oito e começou a pedir luvas”, diz o ator José de Abreu. Segundo ele, o recurso começou a ser usado para atrair para as novelas os atores mais disputados, a quem interessava muito mais estar no elenco de minisséries, cujas produções tinham cuidado esmerado, o volume de gravação era menor e permitia que os atores passassem três meses fora do Rio — informação não confirmada por Boni. “Eu nunca consegui muita luva, não. Meu máximo foi de dois salários a mais na entrada e um na saída. Alguns falavam que ganhavam seis, mas não sei. Ator mente muito”, diz Abreu, sem reclamações acerca do tratamento que teve da época áurea da televisão brasileira.

“Quando precisei de dinheiro para comprar um apartamento, eles me emprestaram a juros baixíssimos e acrescentaram um ano ao meu contrato, que até então era de 2+1, para a prestação, que era descontada do salário, não ficar muito pesada”, conta Abreu. Dez anos depois, ele conseguiu um novo empréstimo para pagar parte do imóvel que adquiriu em Paris. Antes disso, viveu durante doze anos em um amplo apartamento de cinco quartos que pertencia à família Marinho, no luxuoso condomínio Village São Conrado, no Rio de Janeiro. “O Grupo Globo ganhou esses apartamentos no casco, como pagamento de uma dívida, e ofereceu para algumas pessoas. Eu então botei piso, forro, armário e me mudei para lá. Pagava o IPTU, o condomínio, mais um aluguel simbólico. Era um lugar em que, na época, eu nunca poderia morar, se não tivesse essas condições”, afirma. O Grupo Globo confirma a existência de um contrato com Sérgio Dourado, Carvalho Hosken e a Central Brasileira de Produções e Entretenimento, com financiamento da Caixa Econômica Federal, para a construção do Village São Conrado, nos anos 1970. Mas afirma não ter conhecimento sobre o uso desses imóveis por funcionários da casa.

 

Mesmo nos anos dourados, nunca existiu uma regra para os contratos da Globo. Valores, carga horária e benefícios eram determinados, em tese, pelo talento do ator e o sucesso que ele fazia no ar. “Eram acordos absolutamente individuais, que foram crescendo de acordo com os resultados financeiros e artísticos de cada um. Às vezes, podia acontecer de alguém ter sucesso artístico sem resultado financeiro. E isso implicava também em sua renovação. Porque não estávamos interessados só em faturar, mas em produzir um material nacional de qualidade”, afirma Boni.

Como, no entanto, eram renovados automaticamente, a conquista de cifras mais robustas dependia ainda de um olhar atento ao mercado e da habilidade de negociação. “Quando achava que não era justo, batia na porta do Boni: ‘Pô, me esfalfei, a novela foi o maior sucesso e você me dá essa mixaria de reajuste?’, dizia. Ele resolvia na hora”, recorda Maria Zilda. Diferentemente de Nívea Maria, a eterna estrela do horário das seis, que viu sua papelada ser renovada ao longo de sessenta anos sem jamais reivindicar pagamentos mais polpudos. “Quando escuto hoje as pessoas falando de valores, penso: ‘Será que morri pela boca?’ Mas não, nunca foquei nisso”, diz. Mais atenta, Maitê diverte-se lembrando das vezes que saiu da emissora para protagonizar obras de sucesso na TV Manchete, a minissérie Marquesa de Santos e a telenovela Dona Beija. “Se você for, não volta”, ouviu em ambas as ocasiões. Não só voltou, como recebeu aumento. “Estou voltando porque vocês querem. Então, também quero ganhar mais”, dizia.

José de Abreu conta que nunca deixou passar em branco uma renovação de contrato. “A cada dois ou três anos, no vencimento, eu fazia nova negociação.” Quando acabou a inflação, o único motivo para mexer nos valores mensais era mesmo o merecimento. “Eu justificava no sentido de que trabalhava muito, era sempre requisitado e não recusava papel. Uma vez, não consegui aumento, mas consegui mais 5% na aplicação.”

Aplicação era o nome dado ao adendo recebido a cada vez que o sujeito assumia novo personagem. “Você fazia um contrato pelo salário base e, a partir desse valor, quando você estava [no ar] em algum produto, havia um percentual de aplicação “, explica o ator, que começou em 30% e chegou a 50%. O recurso, cuja porcentagem variava de artista para artista, servia também para garantir a participação em determinada obra. “No momento que você acertava uma novela, quase que imediatamente era aplicado para outra não te pegar. Às vezes, dois meses antes de começar a gravar. No momento que estava reservado, algum diretor podia puxar você para outro trabalho. Aplicado, não”, diz. O horário das oito tinha preferência em relação aos demais.

Ator brasileiro sem paralelo em número de personagens masculinos de grande sucesso na tevê (em trabalhos como O Machão, Vale Tudo, A Viagem, Rainha da Sucata, Mundo da Lua, Renascer, O Rei do Gado, Por Amor, Carga Pesada, Bom Sucesso e outros), Antonio Fagundes também ganhou fama pela peculiaridade de seu acerto contratual: durante mais de quarenta anos, ele gravava apenas três vezes por semana. Segundo Boni, a conquista dessa jornada 3 X 4 foi fruto de pura negociação. “Ele tinha uma companhia teatral e disse que preferia ganhar menos, mas ficar liberado para fazer teatro. Como precisava dele no meu elenco, acertei com minha área de produção para usá-lo de segunda a quarta-feira”, lembra o empresário.

Soma-se a isso o fato de o palco trazer credibilidade à atuação diante das câmeras. “Nos anos 1970, era importante a televisão ganhar prestígio. Como ela fazia isso? Trazendo o teatro e a literatura para dentro”, analisa Mauro Alencar, doutor em teledramaturgia pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de A Hollywood brasileira: Panorama da telenovela no Brasil (Ed. Senac Rio, 176 págs.). “A Globo não prescindia desses grandes nomes e era importante para a casa ter um grande ator ligado ao teatro”, completa.

O privilégio conquistado por Fagundes foi, eventualmente, compartilhado por um ou outro colega, que reivindicava à empresa o direito de entrar em temporada e fazer turnês pelo Brasil. Mas nunca de forma perene. “Para nós, era importante ter o ator no palco se exercitando, se expondo, criando mais público. Como era importante o sujeito fazer um filme de sucesso. Porque ele era um artista da Globo e o público nunca separou esses contratos na cabeça. Embora não tivesse exclusividade com a tevê, Fagundes era um cara da Globo que fazia teatro e cinema”, afirma Boni.

Fagundes encerrou seu contrato fixo com a Globo em 2021, quando a emissora deixou de concordar com a jornada especial. Hoje, cabe em um camarim o total de atores com contrato de longa duração, como Susana Vieira e Tony Ramos. A reação das redes sociais à vinheta de fim de ano da emissora, com queixas sobre a baixa densidade de estrelas de primeira grandeza, é o mais novo sintoma disso. Os tempos são outros, e são outros também os concorrentes de uma emissora de tevê (Netflix, YouTube, TikTok e uma longa lista de plataformas, canais, podcasts disputando o bolo publicitário e a atenção do espectador). A “vênus platinada” abriu mão da exclusividade (e do alto custo) da maior parte dos nomes antes onipresentes nas novelas, de Gloria Pires a Juliana Paes. Todos podem voltar, se contratados “por obra”. Há casos como o de Malu Mader, que foi contratada “por obra” para a novela Renascer, depois de oito anos longe da tevê.

 

Mas quanto, afinal, ganhava um ator global? Se os valores praticados naquela época sempre foram tabu, especialmente em uma sociedade em que educação financeira é um déficit, Boni afirma que nunca arcou com uma quantia indevida nem abraçou pedidos impraticáveis. “É importante saber que esses atores eram mantidos dentro de um orçamento muito rígido. Se houvesse alguém que fizesse muito sucesso e eu não tivesse verba para contratá-lo em seguida, fazia um acordo para que ele esperasse a próxima novela sem ser contratado. Como a Globo tinha o atrativo de projetar talentos, o cara esperava”, diz.

Assim foi feito em todas as áreas, não só na dramaturgia. “Demorei um ano para levar o Chico Anysio depois que entrei para a TV Globo. Eu não tinha dinheiro, mas o compromisso de que iria contratá-lo assim que tivesse. Ele então foi fazer shows e ficou esperando, até aparecer essa possibilidade financeira”, lembra.

Os altos salários — Vitorino conta que o primeiro time chegou a ganhar entre 200 mil e 1 milhão de reais por mês nos tempos de vacas gordas — partiam da ideia de que o star system montado por Boni apostou em um projeto de televisão, bem antes de a emissora chegar ao auge. “Nosso elenco investiu em um projeto. De alguma maneira, eles eram sócios da TV Globo”, afirma o executivo. Sem contar no lucro que os produtos, feitos a muitas mãos, geravam.

Um exemplo do cuidado de Boni com suas equipes, que mantinha a cobrança na mesma medida dos agrados, eram os buquês de rosas rigorosamente iguais que mandava com um cartão pessoal para todas as atrizes, da protagonista à última coadjuvante, na estreia de uma novela (alguns homens reivindicaram o agrado e passaram a receber flores também). Maitê resume a fala: “A Globo tinha uma atmosfera muito familiar e o Boni era o cérebro e a alma daquele negócio. Ele sabia que precisava nos cativar, que um artista infeliz não produz, não flui. E não existe nada melhor para destravar um ator do que mexer em sua vaidade.”

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