Acompanhada de murais e modinhas, Maria Helena Andrés completa 100 anos de vida Foto: José Israel Abrantes
Centenária de iPad
Maria Helena Andrés chega aos 100 anos pintando murais e criando modinhas para caçoar de si mesma
Noventa e sete,/ noventa e sete,/ hoje eu viajo/
é pela internet./ Já viajei/ a vida inteira,/
mas no momento resolvi/ ser blogueira.
Com essas palavras, minha avó celebrava sua chegada aos 97 anos. Arrancou gargalhadas dos familiares após os parabéns quando, com sua voz de contralto, entoou a modinha, enquanto balançava as mãos com os indicadores em riste. A graça advinha de uma situação verdadeira – Maria Helena Andrés havia sido uma viajante pródiga e fazia alguns anos que resolvera alimentar, semanalmente, não um, mas dois blogs na internet.
Desde que se tornou nonagenária, minha avó passou a criar cantigas para narrar o próprio envelhecimento. A cada ano, uma letra diferente. Talvez tenha sido a maneira que encontrou para lidar com uma fase que costuma ser vista como fim de trilha. Ao invés de incorporar a melancolia resultante das debilidades que a velhice traz, decidiu fazer troça da própria idade, com graça e vivacidade. O expediente, aliás, não é novo para a autora dos versos.
Quando era criança, Maria Helena sofria com um tio que vivia zombando dela. O motivo da chacota eram os pelos que brotavam discretamente no interstício entre boca e nariz da sobrinha. Como se vê, os “tios do pavê” têm longa história neste país. A resposta da menina veio por meio de uma quadrinha, cantada à frente de toda a família:
Tio Freitas tem por mira/ caçoar do meu bigode,/
mas bigode a gente tira/ e careca não se pode.
Consta que a zoeira do tio teve fim nesse dia.
Embora fosse uma letrista talentosa para modinhas, Maria Helena Andrés não teve a música como sua arte. Aos 14 anos, ela chamou a atenção na escola ao desenhar artistas de cinema com grande realismo, a partir de fotografias de revistas. Joan Crawford, Errol Flynn e Greta Garbo foram alguns dos retratados pela adolescente, que fazia desenhos impecáveis nas proporções, na perspectiva, nos efeitos de sombras e volumes. Lygia Clark, que era sua colega no colégio Sacre Coeur de Marie, também vivia às voltas com desenhos na sala de aula.
Aos 18 anos, Maria Helena desembarcou no Rio de Janeiro para estudar arte com Carlos Chambelland, um professor de viés acadêmico. Ela havia morado na cidade em sua primeira infância, quando seu pai, Euler de Sales Coelho, fora deputado federal. Com a Revolução de 1930, o Congresso foi dissolvido e sua família retornou às pressas para Belo Horizonte. Maria Helena contava 8 anos quando o grupo de Getúlio Vargas tomou o poder e deu fim à República Velha.
De volta ao Rio de Janeiro, uma década depois, a jovem aspirante a artista hospedou-se na casa de sua avó, enquanto frequentava os cursos de pintura. Seu pai ameaçou buscá-la de volta quando soube que a filha pintava modelos nus na escola. O ex-deputado recebeu um pito da própria mãe. A matriarca da família defendeu a permanência da neta no curso, afirmando que não sabia a razão para a pintura de modelos nus, mas que, “se o professor diz que é necessário, ela vai fazer”.
De todo modo, foi em Belo Horizonte, e não no Rio de Janeiro, que a artista teve sua formação artística mais consistente. A capital mineira era governada por Juscelino Kubitschek, àquela época um jovem político com aspirações modernizantes. JK convidou Alberto da Veiga Guignard, um artista reconhecido, com longa passagem pela Europa, para ensinar arte na cidade. Maria Helena foi da primeira turma de alunos de Guignard, na escola recém-inaugurada em um porão no Parque Municipal.
Guignard não oferecia a formação que se chamava à época de academicista. Ou seja, não buscava ensinar a reproduzir com fidelidade as formas de representação canônicas, mas abrir espaço para que os estudantes descobrissem seus modos de expressão. “Olhem os céus de Minas, eles têm uma transparência semelhante ao cristal”, ele costumava dizer aos alunos. A turma que ali se formou marcou uma nova geração de artistas, que trouxe importantes contribuições à arte brasileira nas décadas seguintes.
Numa tarde de outono de 2022, encontrei minha avó na varanda de sua casa na fazenda, onde ela tem um ateliê. Vendo minha filha montada num cavalo, ela se lembrou de um caso antigo, e de súbito passou a narrar um episódio que acontecera nada menos do que oito décadas antes. A viagem no tempo era salpicada por detalhes dos mais diversos. Em resumo, na primeira vez que foi à fazenda onde residiam os pais de seu noivo, Maria Helena caiu do cavalo. Por culpa de um arreio mal apertado, ela virou assunto na sua primeira incursão na região.
O noivado sobreviveu ao tombo, mas quase sucumbiu por outro motivo. Quando começavam a planejar o casamento, o noivo foi chamado para lutar na Segunda Guerra Mundial. O ano era 1945, e meu avô, Luiz Andrés Ribeiro de Oliveira, era ainda um estudante de medicina. Embarcou num trem para Juiz de Fora, de onde seguiria para o Rio de Janeiro, e então para a Itália. Na despedida, na estação de trem, a noiva era consolada por familiares. O clima era de luto.
O treinamento de sua turma de pracinhas e o embarque demoraram, e a guerra acabou antes que o navio partisse para a Europa. Os rapazes voltaram então para suas casas. Meu avô aportou de volta na mesma estação de trem da qual partira alguns meses antes. Dois anos depois, Luiz e Maria Helena se casaram. Ela, que se chamava Maria Helena Sales Coelho, incorporou o Andrés a seu nome – e com ele passaria a ser conhecida, nas décadas seguintes, por seu trabalho artístico.
Quando estavam de saída para a viagem de lua de mel, Maria Helena reparou que o marido carregava uma mala cheia de livros. Foi assim que descobriu que ele planejava aproveitar a viagem para estudar para um concurso. Ela não hesitou: pegou seu material de trabalho e montou uma mala extra. A lua de mel foi permeada por literatura médica, telas, tintas e pincéis.
Esse foi o modus operandi do casal nas décadas seguintes. Além de cuidar dos filhos, um estudava, atendia pacientes e dava aulas; a outra pintava e desenhava – e, em breve, começaria a viajar. Ela conta que o marido a apoiava, dizendo que “artista tem que viajar, se não fica provinciano”. Durante essas viagens, sua sogra vinha do interior para ajudar a cuidar das crianças, e aproveitava para cerzir meias que estavam furadas. Maria Helena não era uma dona de casa padrão para o período. Talvez por isso tenha sido uma artista brilhante.
Nos anos 1950, participou das primeiras bienais de São Paulo, em que teve contato com as tendências construtivistas que vinham da Europa. A artista iniciou então uma transição em seu trabalho, abandonando gradativamente as formas figurativas e aderindo à geometria abstrata. A transição entre essas duas fases possui exemplares preciosos – desenhos da via sacra ou de cenas da vida rural, em que a linha vai se libertando da representação e buscando a essência da forma. Muitos desses desenhos eram feitos em papel alaranjado que o marido trazia das salas de radiografia, e que a artista trabalhava nos momentos de folga dos cuidados com as crianças.
Assim ela aderiu ao grupo concretista mineiro, junto a artistas como Mário Silésio, Marília Giannetti e Mary Vieira. Amílcar de Castro, que fora seu colega na Escola Guignard, havia se mudado para o Rio de Janeiro. Na produção concretista de Maria Helena destacaram-se as “cidades iluminadas”, pinturas feitas com extremo rigor e precisão formal que evocavam linhas de edifícios, luzes, ruas, mas também balões de festas de São João e papagaios. Quadros desse período integram coleções internacionais e acervos como o do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e o do Museu Nacional de Belas Artes.
A primeira viagem internacional da artista foi em 1961, quando ganhou uma bolsa para estudar por quatro meses na Art Students League, de Nova York. Os seis filhos – o mais novo com três anos – ficaram com o marido enquanto ela realizou o intercâmbio. O construtivismo ficava para trás e outras tendências se disseminavam pelo mundo das artes. O professor do curso, Theodorus Stamus, era um pesquisador da action painting – uma pintura gestual, de movimentos fortes, que ficou muito conhecida pelo trabalho do pintor Jackson Pollock.
Em seu diário dessa viagem, minha avó conta que fazia “frio abaixo de zero” nas ruas, enquanto na escola ela se deparava com uma nova dimensão da arte. Era também o período da Guerra Fria, e ela presenciou um treinamento de guerra em Nova York. As sirenes tocavam e a população tinha que se esconder no metrô. A fase gestual que desenvolveu em seguida tinha como tema a guerra. São grandes pinturas e desenhos em preto e branco, carregados e expressivos – em grande contraste com a organização e o lirismo da fase anterior. A mudança expressa também aquelas ocorridas no Brasil: do entusiasmo modernizante dos anos 1950 para a brutalidade da ditadura militar instalada a partir de 1964.
As mudanças de fase e a aposta em novas linguagens marcaram a trajetória de Maria Helena Andrés. Foram oito décadas de produção artística em que, quando uma abordagem começava a se estabelecer, ela a abandonava em prol de novos experimentos. Alguns deram mais certo do que outros, como sói acontecer. O desapego aí presente era parte de uma postura geral – a artista doou inúmeros trabalhos para familiares e amigos, trocou quadros importantes por passagens de avião, deu descontos expressivos para clientes simpáticos.
Com a morte precoce de seu marido, em 1977, Maria Helena intensificou sua vocação viajante. Os filhos já estavam criados, e ela passou a buscar na cultura oriental um alimento para o espírito, em um momento de trauma. A Índia tornou-se sua segunda casa. Depois de passar um ano no país, em 1977, acompanhando um filho que recebera uma bolsa de estudos, ela retornou catorze vezes. Passava longas temporadas nos ashrams, envolvida em meditações, seminários e processos de criação coletivos.
Nas minhas lembranças de infância, minha avó estava sempre chegando de alguma viagem. E emanava o frescor de ideias de quem está em constante movimento. Às vezes, chegavam também cartões postais e retratos de viagens. Outro dia encontrei entre minhas caixas uma fotografia em que ela pilota uma lambreta, com minha tia na garupa, nas ruas de Chandigarh, na Índia. Já era uma sexagenária, mas expressava um ar vibrante e jovial na fotografia.
O tripé que sustentou a vida de Maria Helena talvez tenha sido a dedicação à arte, à família e às viagens. Uma combinação que não se faz de forma trivial. Nas últimas décadas, ela assumiu com mais centralidade o papel de matriarca familiar. No Natal, presenteia com um desenho, pintura ou escultura cada descendente. E não são poucos. Em seu aniversário de 96 anos, ela cantou:
Noventa e seis,/ noventa e seis,/ hoje eu canto/
é para vocês,/ pros meus seis filhos,/ meus onze netos,/
canto também/ pros meus quinze bisnetos.
A abertura para as novidades sempre foi uma característica da artista. Muitos querem saber suas histórias antigas, e ela costuma contá-las com entusiasmo. Mas depois de um tempo ela se cansa e migra para assuntos do presente. Quer entender as novas expressões da arte, a cultura contemporânea, as tecnologias. Comprou recentemente um iPad que, mesmo tendo alguma dificuldade no uso cotidiano, carrega para todo lado. Essas atualizações vêm mescladas à manutenção de hábitos antigos, como perguntar quem fala ao telefone, mesmo quando liga para o aparelho celular de algum conhecido.
No início de 2022, um bispo de uma cidade histórica no interior de Minas comissionou a Maria Helena um painel para a parede de uma igreja. Ele pediu que a artista representasse os cinco milagres de Nossa Senhora. Depois de elaborar vários estudos, ela pintou uma tela de formato médio, que servirá de base para a reprodução do mural. Telefonou para o bispo e disse que estava pronto o quadro com os seis milagres. “Mas os milagres são cinco”, ponderou o sacerdote. Ao que ela respondeu: “Sim, mas tem também o sexto milagre, que é eu fazer um painel aos 99 anos.”
Maria Helena Andrés publicou livros, foi professora da Escola Guignard, pintou e desenhou, expôs seus trabalhos mundo afora, teve momentos de sucesso e outros de atuação mais discreta. Aos 95 anos, inaugurou uma exposição de colagens, linguagem com a qual nunca havia trabalhado. Naquele mesmo ano, ela cantou, em sua festa de aniversário:
Noventa e cinco,/ noventa e cinco,/ bota mais cinco/
pra ver o que vem./ Podem apostar,/ podem duvidar,/
estou achando/ que vou chegar aos cem.
No dia 2 de agosto de 2022, ela chegou de fato aos 100 anos. A comemoração foi no sábado anterior, dia 30 de julho, com direito a missa, cortejo musical e cantoria. A data a obrigou a mudar a fórmula dos versinhos, nos quais ela celebrou também a passagem que se avizinha. Não é todo dia que alguém homenageia a partida futura com um sorriso no rosto e após soprar as velas do bolo. Minha avó cantou assim:
Sou centenária,/ sou centenária./ Daqui a pouco/
serei planetária./ Cantemos juntos/ pra celebrar/
toda a beleza/ que a vida nos dá.
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