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    “A prefeitura demanda o tempo todo. Eu tomo banho com meu celular na janela. Se vejo alguma mensagem importante, eu paro e atendo", diz Renata Vianna, chefe do cerimonial de Ricardo Nunes (MDB) Foto: Douglas Ferreira/Rede Câmara SP

questões formais

Miudezas e vaidades de uma posse

Como é a vida dos cerimonialistas, profissionais que cuidam das bandeiras, das cadeiras, dos convites, das bebidas, das orquestras e dos egos do poder

Juliana Faddul, de São Paulo | 01 jan 2025_10h31
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Na sala localizada no final do corredor do oitavo andar da Câmara Municipal de São Paulo, uma televisão fica ligada o dia todo. Não exibe canais de tevê aberta nem imagens de circuito interno. Em vez disso, transmite um vídeo silencioso, em looping, mostrando nome, foto e partido de cada um dos 55 vereadores da Casa. “A tevê está no método Ludovico, do Laranja Mecânica. Desde que saiu a lista de eleitos, passa o rosto de todos os vereadores pra gente decorar”, explicou Jonas Gomes, de 35 anos, chefe do cerimonial da Câmara. 

O método Ludovico, que só existe na ficção, é um experimento científico em que a cobaia é forçada a assistir repetidamente a cenas de violência enquanto toma drogas que lhe causam mal estar. No romance de Anthony Burgess, adaptado ao cinema por Stanley Kubrick, a técnica é aplicada ao protagonista Alex DeLarge para que ele associe a violência ao mal estar – e, com isso, deixe de ser agressivo. Não é o caso dos cerimonialistas, que assistem à tevê com um objetivo mais modesto: evitar crises. “Na última posse na Assembleia Legislativa, houve um problema sério com a Thainara [Faria, deputada do PT], que não foi identificada”, disse Gomes. Os cerimonialistas da Alesp não têm vida fácil, ele reconheceu. Precisam lembrar do rosto de 94 deputados estaduais. “Aqui são apenas 55 vereadores. Então é obrigação da nossa equipe reconhecer a carinha de todos eles.”

O cerimonial da Câmara é composto de 33 funcionários, dezoito dos quais batem ponto naquela repartição. Na semana anterior ao Natal, os computadores estavam decorados com fotos de cada um dos servidores vestindo uma mini touca natalina. Um adesivo de árvore de Natal havia sido colado no vidro que separa a sala de Gomes do ambiente onde fica o restante da equipe.

Aos cerimonialistas cabe não só reconhecer todos os vereadores, mas organizar os pormenores da solenidade de posse, que acontece nesta quarta-feira (1º). Precisam providenciar as três bandeiras – da cidade, do estado e do país –, incumbir alguém de hasteá-las, acomodar a orquestra que executa o hino nacional, providenciar plaquinhas com o nome de cada autoridade e garantir que tudo transcorra pontualmente – por lei, a cerimônia deve começar às 15h e costuma durar em torno de uma hora. A equipe de Gomes também precisa orientar os vereadores para que apareçam com a documentação em dia: no caso, o certificado de diplomação do Tribunal Regional Eleitoral e comprovantes de renda. “Sem esses documentos eles não podem assumir”, disse o cerimonialista.

Um quiproquó é definir quem senta onde – escolha que por vezes fere egos. Além dos 55 vereadores eleitos (vinte dos quais são neófitos), participarão da cerimônia o prefeito Ricardo Nunes (MDB) e o vice-prefeito Ricardo de Mello Araújo (PL). Cada vereador pode levar três convidados; prefeito e vice-prefeito, seis. Se todos preencherem a cota – como costuma acontecer –, chega-se a um total de 177 pessoas, sem contar servidores da Casa, fotógrafos, músicos, equipe médica e repórteres. Do lado de fora, foram instalados telões e alguns banheiros químicos. Estima-se que 1.500 pessoas compareçam para assistir.

A prioridade de assentos ainda é regida por uma lei da ditadura, aprovada pela Alesp em 1978, que situa os militares como autoridade máxima, à frente até dos vereadores. Mas, de tão anacrônica, a regra tem sido flexibilizada há tempos. “É preciso fazer algumas escolhas. Estamos na Câmara Municipal, não posso colocar um militar da reserva em maior evidência que uma autoridade do Ministério Público ou do Tribunal de Contas”, disse Gomes. A Lei Orgânica do Município de São Paulo dá esse poder de escolha ao cerimonialista, uma vez que as autoridades ainda não foram empossadas nas horas que antecedem à cerimônia e, portanto, não têm voz de comando.

“Uma das coisas que mais está me dando trabalho é pensar na operação com os fotógrafos no plenário. Se cada vereador levar um assessor de imprensa, não vai caber”, disse Gomes. De uns anos para cá, os políticos têm feito questão de serem filmados e fotografados de perto em solenidades do tipo. “O parlamentar pensa a partir da ótica da rede social.” A quem reclamar, os cerimonialistas dirão que há seis fotógrafos e três assistentes incumbidos de registrar a cerimônia. As fotos serão enviadas a cada vereador assim que ele assinar o termo de posse.

Os cerimonialistas também cuidam da ordem dos discursos, que obedecem a uma prioridade inversa à dos assentos: as autoridades de menor hierarquia são as primeiras a falar. O vereador mais velho é responsável por presidir a sessão, papel que caberá desta vez ao vereador Eliseu Gabriel (PSB), de 77 anos. Terminada a execução do hino nacional, Eliseu fará um discurso e convocará cada um dos vereadores a fazerem um juramento, lido por ele mesmo: “Prometo exercer com dedicação e lealdade o meu mandato, cumprindo e fazendo cumprir a Constituição da República, a Constituição Estadual, a Lei Orgânica do Município e a legislação em vigor, defendendo a justiça social, a paz e a igualdade de tratamento a todos os cidadãos.” Cada um dos 55 vereadores deverá responder: “Assim o prometo.”

Em 2021, quem presidiu a solenidade foi Eduardo Suplicy (PT), que tinha 80 anos. Deu-se uma gafe. “O Suplicy estava discursando super baixinho. Quando fui assistir à gravação, vi que eu tinha cortado ele, porque achei que ele tivesse terminado de falar. Mas ele continuou falando muito, muito baixo sobre a renda básica universal”, relembrou Gomes. “Era pandemia e ele estava de máscara. Eu realmente achei que ele já tinha terminado.” Suplicy, segundo ele, agiu como um gentleman e não reclamou. Os cerimonialistas dizem que, depois disso, toda vez que esbarrava com Gomes, o deputado desandava a falar de renda básica.

 

Prefeito e vice-prefeito também juram: “Assim o prometo.” Em seguida discursam (primeiro o vice, depois o mandatário) e deixam o plenário da Câmara. É como se dessem privacidade aos vereadores, que então se reúnem para eleger a Mesa Diretora. A dupla segue para o Edifício Matarazzo, sede da prefeitura de São Paulo, posa para fotos oficiais e parte para a recepção – uma festança que este ano será sediada no Theatro Municipal.

São esperados 1.500 convidados, muitos dos quais farão fila para o beija-mão de Ricardo Nunes. “Ele já era muito querido, agora virou uma celebridade. Então as coisas que a gente demorava vinte minutos pra fazer, agora demoramos quarenta ou mais. Todo mundo quer tirar foto”, disse Renata Vianna, chefe do cerimonial do prefeito. Vianna é uma mulher alta, loira e de porte atlético, o que deve à prática de muay thai. Antes de entrar para a Prefeitura, em 2008, já trabalhava com eventos e como modelo de catálogo de vestidos de noiva. “Minha família toda trabalha com evento”, ela contou, numa tarde de dezembro, enquanto carregava uma pasta cheia de post-its, provas de convites e planilhas. Seu irmão trabalha no cerimonial do governo do estado. “Até o nosso Natal tem roteiro. É animado, mas você acaba deixando um pouco de vivenciar a coisa e está sempre cuidando do evento em si.”

Os cerimonialistas da Câmara Municipal têm 55 chefes. Vianna tem só um, mas nem por isso sua vida é mais fácil. O job description inclui todo tipo de evento do qual o prefeito participe, de inaugurações de obras a reuniões partidárias. “A prefeitura demanda o tempo todo. Eu tomo banho com meu celular na janela. Se vejo alguma mensagem importante, eu paro e atendo. Faz parte da minha rotina.”

Antes de Nunes, Vianna serviu Gilberto Kassab (PSD), Fernando Haddad (PT), Márcio França (PSB) e Bruno Covas (PSDB). Continuou no cargo mesmo depois da morte do prefeito tucano, em 2021. “Nunca pensei que como cerimonialista de prefeito eu faria um velório”, ela relembrou, contendo as lágrimas. “Ele não era só meu chefe, era meu amigo pessoal.” A cerimônia de despedida, em plena pandemia, foi restrita a cerca de trinta pessoas. Vianna teve de escolher o posicionamento da urna, o tapete, o modelo das cadeiras, o padre, e anotar quem enviou cada coroa de flores. “Quando terminou o velório, eu chorei de São Paulo até Santos, onde ele foi sepultado. Você tem que se programar para chorar. Depois passa um corretivo. É assim que é”.

 

Cerimonialistas são funcionários de confiança. Não precisam fazer concurso – basta que tenham experiência no ofício e, de preferência, estejam associados ao Comitê Nacional de Cerimonial e Protocolo (CNPC). Jonas Gomes, chefe do cerimonial da Câmara Municipal de São Paulo, é o primeiro funcionário de carreira a ocupar o cargo. Formado em matemática pela USP, prestou concurso para a Câmara planejando trabalhar no departamento em que menos precisasse fazer contas. Foi aprovado em 2011. “Me perguntaram: ‘não quer ir pra contabilidade?’ De jeito nenhum! É a diferença entre pintar uma parede e fazer um quadro. Quero fazer quadros com a matemática, não pintar paredes.” Enquanto organiza cerimônias, está cursando doutorado na USP sobre cromologia de feixes – estudo que trata da forma como processamos visualmente as formas geométricas.

Na mesa de Gomes, repousa uma caneca com os dizeres “world’s best boss” [melhor chefe do mundo], uma referência a Michael Scott, protagonista da série fictícia The Office. “Pelo amor de Deus, não fui eu quem comprou”, ele se adiantou em dizer. “Meus estagiários deram para mim.” Ainda que a repartição dos cerimonialistas guarde semelhanças com a tediosa Dunder Mifflin Paper Company, Gomes ponderou que sua rotina está mais próxima à de House of Cards. “Tem um episódio em que ele [Frank Underwood, interpretado por Kevin Spacey] fala assim: ‘observe quem está aqui. Você vê a dinâmica do poder por onde as pessoas sentam na posse do presidente’. A função do cerimonialista é essa: deixar que cada astro brilhe em sua órbita.”

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