Certas imagens são inesquecíveis. Um exemplo é o plano do ônibus escolar, lotado de crianças, afundando lentamente no lago coberto de gelo, em “O Doce amanhã” (1997), dirigido por Atom Egoyan. O filme causa profundo malestar, ao confrontar o espectador com a morte por afogamento de um grupo de meninos e meninas, acidente que abala uma pequena cidade americana."> “Chloe” – anjo perverso - revista piauí
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“Chloe” – anjo perverso

Certas imagens são inesquecíveis. Um exemplo é o plano do ônibus escolar, lotado de crianças, afundando lentamente no lago coberto de gelo, em “O Doce amanhã” (1997), dirigido por Atom Egoyan. O filme causa profundo malestar, ao confrontar o espectador com a morte por afogamento de um grupo de meninos e meninas, acidente que abala uma pequena cidade americana.

| 21 jun 2010_10h47
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Certas imagens são inesquecíveis. Um exemplo é o plano do ônibus escolar, lotado de crianças, afundando lentamente no lago coberto de gelo, em “O Doce amanhã” (1997), dirigido por Atom Egoyan. O filme causa profundo malestar, ao confrontar o espectador com a morte por afogamento de um grupo de meninos e meninas, acidente que abala uma pequena cidade americana. Baseado no romance “The Sweet Hereafter”, de Russell Banks, inspirado, por sua vez, em fato real ocorrido no Texas, em 1989 – um caminhão da Coca-Cola bateu num ônibus escolar provocando ferimentos em 49 crianças e a morte por afogamento de outras 21 –, “O Doce amanhã” ganha dimensão trágica e perturbadora.

Em “Chloe”, Atom Egoyan volta a causar inquietação, sem que haja, porém, uma cena com pregnância equivalente à do ônibus escolar afundando no gelo de “O Doce Amanhã”. Prejudicado, no Brasil, pela tradução do título para “O Preço da traição” – além de vulgar, óbvio –, “Chloe” é um remake de “Nathalie”, filme francês, escrito e dirigido por Anne Fontaine, em 2003, comprovando a reiterada opção de produtores por refazer filmes europeus, em versões faladas em inglês. Atestado do lugar ocupado pela falsificação na cultura americana, essa tendência vem ao encontro da rejeição por filmes legendados nos Estados Unidos. Diluindo propostas originais, em geral mais ousadas e inovadoras, o cinema dominante revela seu oportunismo e falta de inspiração ao tomar como rascunho, e adaptar ao gosto do consumidor médio, o que já foi feito.

Outra fonte de inspiração, que à primeira vista parece evidente, é “Teorema” (1968), dirigido por Pier Paolo Pasolini. Mas Atom Egoyan, mesmo reconhecendo que esse é um dos seus favoritos, nega que tenha pensado no filme ao fazer “Chloe” e assinala diferenças entre os dois: “O personagem de Terence Stamp [em ‘Teorema’] só intervém na primeira metade do filme, durante a qual, de fato, dorme com todos os membros da família. A metade final narra a falta que os personagens sentem dele, e como se desintegram.” A entrevista completa de Atom Egoyan está aqui.

Para Atom Egoyan, “em ‘Chloe’ cada um dos personagens dormiu com Chloe, mesmo que tenha sido de forma imaginária; o ato é consumado, ainda que apenas em pensamento […]. Mas Chloe realmente se apaixona por Catherine”, a ginecologista interpretada por Julianne Moore, “o que é muito diferente do personagem de Terence Stamp em ‘Teorema’.”

Diferenças existem, é claro. Mas o que fica claro é a diluição operada em “Chloe”. Enquanto o filme de Pasolini narra o processo de desintegração de uma família burguesa, o de Atom Egoyan, eliminando o anjo perverso, recompõe as aparências e apazigua o espectador. Mesmo se no plano final o prendedor de cabelo de prata usado por Catherine, presente que serviu de pretexto para Chloe estabelecer relação entre elas, fecha o filme indicando que a insegurança de Catherine, e sua personalidade manipuladora, continuam propensas a provocar a desintegração das suas relações familiares.

Pensando bem, o prendedor de prata usado por Catherine no plano final talvez seja a imagem inesquecível de “Chloe”.

Numa sexta-feira recente, em São Paulo, saí de Toronto,  no Canadá, onde chama atenção o padrão de vida dos personagens de alta classe média de “Chloe”/“O Preço da traição”, cruzei a avenida Paulista, e fui até o Minhocão, onde há quem more em 6 m2, conforme vi no documentário “Elevado 3.5”, dirigido por João Sodré, Maíra Bühler e Paulo Pastorelo. O corte direto de Toronto para o Minhocão é uma experiência interessante, que recomendo se ainda estiver disponível.

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