As estátuas também morrem
Chris Marker não se chamava Chris Marker
A notícia da morte de Chris Marker (1921-2012), no dia do aniversário dele de 91 anos, chegou pelo celular. Mandada por Amir Labaki, a mensagem dizia apenas “E agora Marker…”.
À surpresa inicial, seguiu-se, depois de um instante de incredulidade, o impulso de prestar homenagem ao cineasta singular e escritor refinado que consagrou o uso da narração em forma epistolar. Intelectual de autoridade moral reconhecida, ele é autor de magnífica obra que transita entre ensaismo, experimentação, ficção científica, poesia e militância política.
A notícia da morte de Chris Marker (1921-2012), no dia do aniversário dele de 91 anos, chegou pelo celular. Mandada por Amir Labaki, a mensagem dizia apenas “E agora Marker…”.
À surpresa inicial, seguiu-se, depois de um instante de incredulidade, o impulso de prestar homenagem ao cineasta singular e escritor refinado que consagrou o uso da narração em forma epistolar. Intelectual de autoridade moral reconhecida, ele é autor de magnífica obra que transita entre ensaismo, experimentação, ficção científica, poesia e militância política.
Estreou no cinema co-dirigindo, com Alain Resnais, (1953), documentário de denúncia do colonialismo. Domingo em Pekin (1955) foi seu primeiro filme solo, seguido de Carta da Sibéria (1957), no qual inaugura o procedimento de interrogar o sentido das imagens. E em 1962, depois de Descrição de um combate (1960) e Cuba sí (1961) fez La Jetée, um dos seus filmes mais celebrados, ao qual se seguiram cerca de cinquenta outros títulos.
Como seus títulos indicam, foi um cineasta viajante, atento ao que ocorria no mundo, mas observador também do que se passava à sua volta, em Paris, e podia observar da janela de casa.
Refratário à exposição pública, adotou pseudônimo pelo qual ficou conhecido e passou a evitar ser fotografado. Discreto, chegou ao extremo de ir incógnito à sua própria vernissage, numa galeria em Londres, e deixar registrado que comparecera desenhando um gato na lista de presença.
Dizia que filmes são como remédios, têm data de validade. Por isso, não autorizava a exibição de alguns dos seus filmes, como puderam constatar os organizadores da mostra Marker, bricoleur multimídia, dedicada a ele, no Brasil, em 2009.
Publicar uma foto de Chris Marker, ou seu verdadeiro nome, seria uma traição à sua memória. Daí o desenho do gato publicado ontem, imagem do filme Gatos empoleirados (2004), motivado pela curiosidade de Marker pelos grafites do sorridente felino que invadiram as paredes de Paris depois do 11 de setembro. Imagino que Marker gostaria dessa homenagem.
Se na cultura ocidental, desde a década de 1960, os mestres estão em declínio, nos anos de 1980, um veterano cineasta oriental ainda era reverenciado. A narração do documentário que Chris Marker dedicou a Akira Kurosawa, feito durante a filmagem de Ran – Os senhores da guerra, diz:
“[…] Nós também nos habituamos a chamá-lo de ‘Sensei’ (mestre). Em todas as disciplinas, das artes florais às marciais, o ‘Sensei’ é aquele que por atingir a perfeição técnica, obtém uma espécie de bônus de espiritualidade. O respeito que envolve e protege Kurosawa não é nada parecido com o reino de terror que alguns diretores menores impõem. E como os grandes mestres do sabre, Sensei não tem tempo para abstrações. Quando fala do seu trabalho, reflete sobre experiências factuais. Quando perguntado por que fez isso ou aquilo, ele diz: ‘Eu simplesmente faço um filme como quero que seja.’”
Marker recusaria ser chamado de ‘Sensei’, mas poucos mereceriam tanto esse tratamento quanto ele. Foi ‘Sensei’ Marker, inclusive, quem formulou a justificativa para os raros cineastas que não são narcisistas poderem falar de si mesmos sem remorso, abrindo caminho para uma das variantes mais expressivas do documentário contemporâneo:
“Ao contrário do que se costuma dizer, usar a primeira pessoa em filmes tende a ser sinal de humildade: a única coisa que tenho a oferecer sou eu mesmo.”
No texto de apresentação do DVD de Elegia a Alexandre (1993), documentário dedicado ao cineasta do trem, Alexandre Medvedkine (1900-1989), Chris Marker escreve que esse é o “último buquê depositado sobre o túmulo de um homem único, testemunha e vítima de um século que não o merecia.” Aqui também, a frase se aplica, ao menos em parte, ao próprio Marker – testemunha de um século que não o merecia.
Além dos filmes em que tratou de questões brasileiras durante o período da ditadura (On vous parle de Brésil: tortures e On vous parle de Brésil: Carlos Marighela, de 1969 e 1970, respectivamente), Marker traduziu os poemas do personagem Paulo Martins, de Terra em transe, em 1967.
A consagração crítica do filme de Glauber Rocha no Festival de Cannes daquele ano teve essa pequena contribuição dele.
Quando Zelito Vianna, produtor de Terra em transe, subiu a escada em espiral que levava ao apartamento de Marker, em Paris, viu que ele estava esperando, no alto, com uma câmera Beaulieu na mão, filmando sua chegada e descrevendo em voz alta o que estava fazendo: “Filmo, em 16mm, um cineasta brasileiro que vem me trazer os poemas de Terra em transe para que eu os traduza.”
Nessa ocasião, Zelito conta que assistiu, levado por Marker, o copião de Alain Resnais para o episódio dele de Longe do Vietnam. Resnais não estava satisfeito com o material e Marker, produtor do filme, teria sido implacável: “Quem se considera um cineasta não pode ser incapaz de filmar em 16mm.”
Quando soube que Terra em transe seria lançado, no Rio, com 13 cópias, não quis acreditar. Para Marker, havia algo errado – um filme como o de Glauber Rocha não poderia nunca ser lançado em tantas salas.
Sobre uma das experiências mais interessantes da carreira de Chris Marker, a da feitura de Até breve, eu espero (1968) e da formação no Grupo Medvedkine, há um artigo recente disponível em download from mitpressjournals.org no site www.chrismarker.org .
Essa talvez seja a maior homenagem que se possa prestar a um cineasta – continuar a ver e refletir sobre seus filmes. Para isso, no site www.chrismarker.org há farto material. E no Brasil, há pelos três DVDs disponíveis: Elegia para Alexandre e Gatos empoleirados, na coleção Videofilmes. E o DVD reunindo La Jetée e Sem sol, outro de seus filmes mais importantes, na coleção Cinema Essencial da Aurora.
Avesso a entrevistas, Marker deixou pelo menos uma, reproduzida no catálogo da mostra Marker, bricoleur multimídia, publicada originalmente em 2003, no Libération, por ocasião do lançamento em DVD de Sem sol e La Jetée, feitos 20 e 40 anos antes, respectivamente. Para Marker, “falar em nome daquele que fez os filmes, não é entrevista, é espiritismo. […] Que há uma relação entre os dois filmes, eu sabia, mas eu não via necessidade de me explicar, até que encontro numa programação publicada em Tóquio uma pequena nota anônima que dizia: ‘Em breve a viagem aproxima-se de seu fim…Somente então é que nós saberemos que a justaposição de imagens tinha um sentido. Nós perceberemos que oramos com elas, como convém a uma peregrinação, cada vez que assistíamos a morte, no cemitério dos gatos, diante da girafa morta, diante dos kamikazes no momento do vôo, diante dos guerrilheiros mortos na guerra da Independência…Em La Jetée, a experiência temerária de procura pela sobrevivência no futuro termina com a morte. Tratando do mesmo assunto vinte anos depois, Marker superou a morte através da oração.’ Quando se lê isto, escrito por alguém que não conhece você, que não sabe nada acerca da gênese dos filmes, prova-se uma pequena emoção. ‘Algo’ aconteceu.”
Oremos, pois.
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