post mortem CO
Chris Marker – ressurgimento
Passado pouco mais de um ano da morte de Chris Marker (1921-2012), versões restauradas dos seus filmes começam a ser lançadas em DVD, na França. Esse ressurgimento deve ser celebrado, sem dúvida, por todos que acompanharam a carreira de Marker, enfrentando dificuldade de acesso a grande parte de sua obra. Merece ser comemorada a oportunidade de ver, em cópias digitais de alta qualidade, alguns dos seus filmes até há pouco inacessíveis.
Passado pouco mais de um ano da morte de Chris Marker (1921-2012), versões restauradas dos seus filmes começam a ser lançadas em DVD, na França. Esse ressurgimento deve ser celebrado, sem dúvida, por todos que acompanharam a carreira de Marker, enfrentando dificuldade de acesso a grande parte de sua obra. Merece ser comemorada a oportunidade de ver, em cópias digitais de alta qualidade, alguns dos seus filmes até há pouco inacessíveis.
Mas há um aspecto menos solar nesses relançamentos. Alguns não seriam uma traição ao seu autor? Ou ele teria autorizado em vida seus filmes, retirados de circulação a pedido dele mesmo a partir do final da década de 1990, a serem relançados?
A julgar pelo folheto que acompanha o DVD reunindo Domingo em Pekin (1955) e Carta da Sibéria (1957), Marker nunca reviu sua decisão que chegou a explicar como resultante do lema – never explain, never complain –, além de considerar ter o “direito de aprender” e não considerar “indispensável ostentar as etapas do seu aprendizado”. Em 2007, escreveu aos organizadores da mostra dos seus filmes a ser realizada no Brasil que julgava “retrospectivas um absurdo e contraproducentes”. Em outra ocasião, declarou que “filmes são como remédios: têm data de validade”.
Sendo assim, ao assistir agora a Domingo em Pequim e Carta da Sibéria, poderá estar sendo contrariada a vontade manifesta de Marker que tampouco teria ficado satisfeito com a divulgação do seu verdadeiro nome no folheto que acompanha o DVD, traição gratuita ao anonimato que tanto cultivou.
Poucos cineastas personificaram com tamanha perfeição a figura do viajante contador de histórias – “Quando alguém viaja, tem o que contar”, segundo o ditado alemão citado por Walter Benjamin. Marker foi o cineasta viajante da segunda metade do século vinte por excelência. Começou indo à Finlândia. Depois à China, à Sibéria e não parou de filmar mundo afora durante cinco décadas.
Para Marker, Domingo em Pequim e Carta da Sibéria podem ser filmes de aprendiz. Mas para nós, espectadores, preservam qualidades e interesse de sobra para justificar sua divulgação.
Em Domingo em Pequim, dois aspectos se destacam, entre outros, ainda mais tratando-se de um cineasta iniciante. A sabedoria de evitar ser tragado pela vastidão do imenso país ao definir como tema não apenas uma cidade, mas um dia da semana e, entre os possíveis, o mais tranquilo, dedicado ao lazer e ao repouso. Circunscrevendo dessa maneira progressiva a observação do cotidiano, Marker assegura a consistência das imagens, algumas filmadas meio ao acaso, dando liga ao filme através da narração. Inovador, na época, o texto em off começa situando o filme como relato de uma lembrança – “Nada é mais bonito do que Paris, senão a lembrança de Paris. E nada é mais bonito do que Pequim, senão a lembrança de Pequim. E eu, em Paris, lembro-me de Pequim e conto meus tesouros.” A narração alterna a primeira pessoa do singular e a do plural, indo e vindo entre um tom pessoal e outro impessoal, entre o comentário subjetivo e o mais objetivo, para terminar na primeira pessoa, tornando o narrador parte integrante da narrativa – “Mas eu, que registro essas imagens, que as respiro, que as ouço, eu me pergunto apenas, no fim desse domingo em Pequim, se a própria China não é o domingo da Terra.”
“Chris Marker já renovava profundamente a relação habitual da narração com a imagem”, escreveu André Bazin com sua habitual argúcia, em 1958. “Isso não parece com absolutamente nada do que vimos até aqui no cinema de base documentária”, completou. (Le cinéma français de la Libération à la Nouvelle Vague 1945-1958, pp. 257-260).
O estilo da narração de Domingo em Pequim parece ter sido adotado pouco depois em Noite e neblina (1956), de Alain Resnais, no qual a variação entre primeira e terceira pessoa, conforme indicou Sandy Flitterman-Lewis (“Documenting the Ineffable – Terror and Memory in Alain Resnais’s Night and Fog”, p. 204–222 de Documenting the Documentary), é crucial para o sentido do texto. A colaboração de Marker, que reescreveu o texto de Jean Cayrol ajustando-o às imagens e levando em conta o ritmo das sequências, não terá sido fortuita. Sem esquecer que Cayrol, por sua vez, reescreveu o texto de Marker, preservando sua estrutura, mas usando suas próprias palavras e ideias, além de assinar sozinho a autoria da narração (ver Sylvie Lindeperg, Nuit et Brouillard – Un film dans l’histoire, pp. 119-120).
Quanto a Carta da Sibéria, além de inaugurar a narração em forma epistolar que Marker viria a adotar em vários dos seus filmes, antecipa em três décadas uma das questões que se tornaria central no cinema documentário – o questionamento do sentido das imagens – ao deixar clara a subordinação usual das imagens à voz em off e demonstrar o poder manipulador da narração.
Apresentando as mesmas imagens três vezes seguidas, o narrador comenta: “Enquanto ouvia este tributo a Yves Montand, olhei em volta…Enquanto registrava essas imagens em Irkoutsk, da maneira mais objetiva possível, sinceramente pensei a quem agradariam. Por que, naturalmente, não se pode descrever a União Soviética a não ser como o paraíso dos trabalhadores ou como o inferno na terra.” Seguem-se as duas descrições antitéticas. Mas, não satisfeito, Marker faz a terceira descrição das mesmas imagens, supostamente imparcial e objetiva.
Como André Bazin comentou no artigo citado acima, “[…] o que Chris Marker vem de demonstrar é que a objetividade é ainda mais falsa que os dois pontos de vista militantes, quer dizer que, ao menos com relação a certas realidades, a imparcialidade é uma ilusão. A operação à qual assistimos é, pois, precisamente dialética, ela consistiu em enviar três raios intelectuais diferentes sobre a mesma imagem e receber seu eco.”
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