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    Um dos barcos que recebeu uma mão de tinta nanotecnológica em Ilhabela, numa colônia de pescadores Foto: Inomat

questões marinhas

O cientista contra as cracas

Um pesquisador da Unicamp criou uma solução única no mundo para afastar os crustáceos e moluscos que danificam cascos de navios

Eduardo Geraque, de São Paulo | 30 abr 2024_09h44
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O velejador Gian Jaque andava intrigado. Fazia tempo que vinha observando um modesto barco atracado numa praia de Ubatuba (SP). O que lhe chamava atenção era a falta de cracas no casco da embarcação – naquele trecho do Oceano Atlântico, dificilmente um barco consegue escapar ao domínio desses crustáceos. Um dia, finalmente, Jaque esbarrou no dono do pequeno veleiro e não se conteve: “A cada quinze dias, aproximadamente, tenho que limpar o meu barco. O seu está aqui há meses e não tem uma craca grudada nele”, explicou ao colega velejador. “Como é possível?”

A resposta foi surpreendente: não se tratava de um repelente químico ou de um produto de limpeza mais eficaz. A magia estava na tinta cinza que revestia a embarcação. Eduardo Galembeck – que, além de ser dono do misterioso veleiro, é professor da Universidade de Estadual de Campinas (Unicamp) e doutor em biologia molecular e funcional, com pós-doutorados pela Universidade da Pensilvânia e pela Universidade de Purdue  – havia inventado um tipo de líquido nanotecnológico.

“O Eduardo me contou toda a história. Percebi as vantagens daquela tinta e resolvi testar no meu veleiro também.” Em pouco tempo, Jaque – um chileno que, ainda na infância, trocou Viña Del Mar por São Paulo, mas que nunca perdeu o sotaque castelhano – viu sumirem as cracas de seu barco. O produto realmente funcionava.

O desenvolvimento de uma nova tecnologia, das mais modestas às mais sofisticadas, exige muito suor e dinheiro. Do momento em que Galembeck teve um estalo até o momento em que pôde, finalmente, materializar a ideia, passaram-se aproximadamente dois anos dedicados a pesquisas (tempo que se alargou por causa da pandemia). Os estudos foram conduzidos pelo cientista em um laboratório da Unicamp no quintal de sua casa, no bairro de Barão Geraldo, em Campinas. A empreitada recebeu apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). 

No centro da invenção está uma matéria-prima chamada ERG – sigla em inglês para grafite esfoliado e reorganizado. Assim como o grafeno (material produzido a partir do grafite), o ERG é capaz de produzir superfícies extremamente lisas e hidrofóbicas. É menos fino e menos frágil que o grafite em sua condição natural, o que o torna útil para aplicações macroscópicas. Essa configuração físico-química instigava Galembeck.

O pesquisador queria encontrar alguma função prática para o ERG. De pouco em pouco, foi cercando a ideia. Certo dia, deu-se conta de que seria possível diluir esse grafite em tinta e, com isso, aplicá-lo a uma superfície qualquer. Velejador que é, Galembeck conhece bem as cracas e organismos marinhos que se aferram aos barcos, causando danos ao casco e prejuízos ao dono – afinal, quanto maior o número de invertebrados grudados ao barco, maior o atrito com a água, menor a velocidade e maior o consumo de combustível. O pesquisador ligou os pontos e assim nasceu um projeto inovador.

 

Moluscos e crustáceos são adversários históricos dos navegantes. As caravelas europeias que rumaram em direção ao “Novo Mundo”, seiscentos anos atrás, sofriam danos causados por cracas e teredos (molusco mais conhecido como cupim-do-mar). Havia até quem revestisse o casco com chumbo. “Hoje em dia ainda é muito frequente encontrar nas praias alguns barcos condenados por conta do teredo”, diz Galembeck. 

A história das tecnologias anticracas, por isso, também é antiga. Séculos atrás, navegantes cobriam o casco dos navios com cobre para afastar os bichos. Isso, porém, só funcionava no tempo em que os cascos eram de madeira. Quando passaram a ser de ferro e aço, o cobre tornou-se um problema: fazia enferrujar os navios. Desde então, a indústria naval do mundo todo busca outras soluções. Uma delas são as tintas anti-incrustantes, muito populares, chamadas também de antivegetativas. Quase todas, no entanto, contêm algum tipo de veneno que machuca e mata os animais marinhos.

A tinta à base de ERG é um caso único no mundo. Não fere as cracas ou moluscos – apenas os derruba. O segredo está na consistência do material. Esse tipo de grafite é composto de pilhas de lâminas finíssimas com uma ligação química fraca entre si. A tinta, depois de secar, gruda apenas parte dessas lâminas. As outras se soltam com facilidade quando um invertebrado tenta grudar nelas. Ou seja: o animal, ao tentar se agarrar ao navio, não consegue. Acaba apenas esfoliando um pouco o revestimento.

Os primeiros testes foram feitos em Ubatuba, em janeiro de 2023. Depois de pintada com a tinta nanotecnológica, a superfície dos barcos passou por um processo de polimento convencional para que ficasse ainda mais lisa. O material descansou por quatro meses, exposto ao oceano e seus animais. Passado esse tempo de observação, deu-se o veredito: ao menos ali, perto da costa, a tinta impedia as cracas de colonizar massivamente o casco das embarcações. Mesmo quando os crustáceos conseguiam aderir à superfície, o balanço do mar era suficiente para derrubá-los em pouco tempo.

Os testes mostraram, além disso, que o produto é duradouro. A tinta só se desgasta de forma irreversível depois de centenas de esfoliamentos. O equivalente a anos de uso.

Além de ser anti-incrustante, a nova tecnologia reduz o atrito do casco com a água em 30%, segundo as estimativas feitas por Galembeck – o que, para velejadores, é uma vantagem significativa. Há também benefícios econômicos e ambientais. Com menos atrito, reduz-se o tempo de viagem e o consumo de combustível – consequentemente, reduzindo as emissões de gás carbônico. Diferentemente de outros produtos parecidos, a tinta nanotecnológica não contém substâncias tóxicas. Pode, inclusive, ser aplicada com a embarcação na areia, sem que haja risco de afetar o ecossistema marinho.

“Por incrível que pareça, em Ubatuba, apesar de existir uma quantidade grande de veleiros, não existe muita infraestrutura de apoio para a manutenção. Retirar o barco da água e transportá-lo costuma gerar custos significativos”, observa Galembeck. “Quando o Gian viu meu barco, o ciclo entre pesquisa básica e aplicação começou a se fechar.”

 

O processo que culminou com a invenção de Galembeck é resultado de um acúmulo de conhecimento científico de décadas, e que se deve sobretudo ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Materiais Complexos Funcionais (Inomat). Fundado em 2008, o Inomat une pesquisadores de grandes universidades brasileiras, como Unicamp, USP e UFBA. São linhas de pesquisa financiadas, na maioria dos casos, com verba pública. Só na Unicamp, existem atualmente mais de 1,3 mil empresas-filhas, o que desde 2003 gerou 47 mil empregos e 25 bilhões de reais em faturamento. Não se trata de um caso isolado: todas as universidades brasileiras de ponta abrigam projetos semelhantes.

Em Ubatuba, depois do teste inicial, Galembeck ofereceu a tecnologia a Gian Jaque, que aplicou a tinta em seu veleiro oceânico Blue Peace, modelo SUD 27.5, com 9 metros de comprimento e capacidade para seis tripulantes. O chileno virou adepto, e logo o boca a boca fez com que outros velejadores do litoral paulista se interessassem pela tinta.

A tinta ERG recebe apoio financeiro não só da Fapesp, mas também das pró-reitorias de extensão da Unicamp, USP e Unesp. O produto foi patenteado pela empresa da família de Galembeck, a Galembetech, mas, tendo nascido dentro de uma universidade pública, não tem ambições meramente comerciais. Ele abre o caminho para outras linhas de pesquisa científica envolvendo o ERG e obedece à lógica do extensionismo – isto é, a meta das universidades de se aproximarem da sociedade e seus problemas práticos.

Na fase de testes, que ainda está em curso, pescadores de Ilhabela (SP) puderam usar a tinta ERG de graça. O projeto recebeu o nome de Obras Vivas. Doou o equivalente a 10 mil reais em tintas com diferentes formulações, para que os resultados pudessem ser comparados. No mercado, tintas anti-incrustantes custam entre 400 e 2 mil reais.

Os pescadores autônomos, que geralmente têm menos recursos e usam barcos de madeira, costumam comprar tintas mais baratas e de menor qualidade. “Além disso, misturam outros produtos para fazer a tinta render mais, piorando os resultados. Isso faz com que eles precisem fazer a manutenção dos barcos com mais frequência”, diz Galembeck. “Juntar 500 reais para comprar um galão de tinta é difícil para eles.”

A ideia, explica o cientista, é oferecer um produto eficiente e acessível – porque “o eficiente e caro não serve”. A tinta à base de grafite esfoliado, 100% brasileira, colabora para o desenvolvimento nacional, diz Galembeck, orgulhoso. Longe do laboratório, a invenção está pronta para ganhar escala internacional. De Ubatuba para o mundo.

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