Ilustração: Carvall
Cinco mudanças da inteligência artificial na pesquisa científica
E cinco paradoxos envolvidos nisso
Os norte-americanos gostam muito de dizer que determinadas coisas são game-changers. Mudam o jogo. Enquanto se perde tempo debatendo pequenas coisas, como o futuro das provas online e a engenhosidade dos alunos para o plágio, o ChatGPT (em breve o Bard) e as diversas inteligências artificiais (IAs) disponíveis para a pesquisa acadêmica estão mudando o jogo. Todo o paradigma atual da pesquisa científica está em plena alteração diante de nós.
Agora temos “robôs” capazes de interagir relativamente bem com seres humanos e responder em uma linguagem razoavelmente humana. Além disso, eles podem executar diversas tarefas, como escrever e-mails, preencher formulários, criar textos padrão, traduzir, resumir, criar sínteses, organizar e estruturar textos, transcrever áudios, “criar” e corrigir scripts de programação, entre outras. A maneira como pensamos, executamos e compartilhamos a pesquisa acadêmica está para ser profundamente alterada.
Este texto não busca problematizar as questões envolvidas nas IAs em si – uso da internet como treinamento, privacidade, vieses e afins. Aqui, um excelente texto sobre o funcionamento do ChatGPT e sobre limites e potenciais, e outro sobre reflexões mais profundas a respeito da inteligência artificial e os limites dos humanos. O objetivo aqui é tratar sobre os impactos práticos para a pesquisa acadêmica. Apresentamos cinco mudanças no fazer científico e cinco paradoxos a serem considerados.
- Busca e seleção de artigos: as IAs ajudam de modo decisivo na busca de tópicos, pesquisas e artigos acadêmicos. Plataformas digitais como OA.mg, R Discovery, Consensus, Elicit, Perplexity permitem examinar diversos indexadores e bases de artigos para obter referências. A pesquisa pode ser no formato de uma pergunta ou a partir de um PDF de seu computador. Em todos os casos, a principal diferença é que essas plataformas não apenas dão uma lista de referências, mas também apresentam trechos dos artigos relacionados e insights sobre esses artigos.
Algumas, como o Connected Papers, Inciteful, Litmaps já geram mapas de referências, mostrando as redes de citações de artigos e literaturas. Em praticamente todas é possível criar sua biblioteca pessoal dentro do aplicativo e ir alimentando a inteligência artificial, aprimorando as buscas e as sugestões. Outros ainda, como o scite, mostram o impacto de determinadas pesquisas, os trechos refutados ou apoiados pela literatura acadêmica. Em resumo, todos esses aplicativos de IA podem acelerar as revisões de literatura, indicando de maneira mais rápida os artigos mais promissores a serem lidos.
- Leitura dos artigos: também a leitura do material acadêmico irá mudar. Não apenas leremos o texto, faremos grifos e comentários pessoais. Agora, também pediremos que a inteligência artificial analise os textos e PDFs e indique os trechos principais, e vamos fazer perguntas à IA sobre os textos. Para esse processo, programas como Scholarcy, Resoomer, Elicit, Paper Digest, Scispace, Humata, ExplainPaper, PaperBrain, ChatPDF realizam o papel de resumir ou mesmo de “conversar” com o arquivo. Ou seja, o usuário pode perguntar o que quiser para a AI sobre aquele upload e com isso destrinchar ainda mais aquele documento, questionando por exemplo a quantidade de casos analisados, a metodologia, a principal conclusão ou quais são os principais conceitos chave dos textos. Em suma, teremos resumos automáticos de artigos acadêmicos. E, diferentemente de nossa leitura humana em gerenciadores de referência ou leitores de PDF, essas plataformas nos permitem visualizar vários artigos simultaneamente.
- Análise dos dados: também tende a ser fortemente impactada pelas IAs. O ChartGPT e o PandasAI elaboram gráficos de forma automatizada. Softwares acadêmicos para pesquisa qualitativa (Atlas.ti) e quantitativa (Tableau) estão incluindo ferramentas de AI em suas opções. Com a vindoura integração de IA ao Office e ao Google Docs, teremos IA indicando possíveis testes, cruzamentos e análises a serem realizadas. Você poderá inclusive “dialogar” com a AI tratando exclusivamente de seus dados.
- Escrita: diversas plataformas, a exemplo de Cohere, PaperPal, ResearchRabbit, Writefull, Word Tune e QuillBot, entre tantas outras, fazem correções gramaticais, ortográficas e estruturais nos textos, oferecendo uma espécie de co-piloto para a escrita acadêmica. Elas irão revisar e aprimorar sua escrita, especialmente em inglês, durante o próprio processo. Além de gramática e ortografia, ainda avaliarão linguagem (tom), estrutura, dados, tabelas e referências dos manuscritos. Será comum em pouco tempo que nenhum resumo ou título, por exemplo, não tenha sido elaborado ou testado com a ajuda de IAs.
Além disso, todos apresentam o que tem sido definido como co-pilotos: uma inteligência artificial que vai “lendo” e fazendo sugestões ao seu texto. Ela é alimentada por outros textos que você inseriu e por seu próprio estilo de escrita. E, obviamente, ao exemplo do ChatGPT, Bard e afins, ela poderá gerar textos para o usuário. Evidentemente não é ético usá-las diretamente, sobretudo porque o material gerado é repetitivo – mas isso afetará de modo significativo a escrita acadêmica. Uma vez que elas também editam e melhoram nossos textos, a própria questão da autoria e separação das IAs será cada vez mais difícil, por mais que já existam alguns modelos de detecção, como Writer, Writefull, ZeroGPT.
- Apresentação dos dados: O ChatGPT 4 já é capaz de gerar tabelas e informações em diversos formatos. Também já existem IAs capazes de elaborar tabelas, gráficos, infográficos, posters (como DataGPT). O momento é tão surpreendente (e assustador!) que já há ferramentas como o Gamma e Tome, que com poucas palavras criam uma apresentação inteira sobre determinado assunto, usando o ChatGPT para criar os textos e o Dall-e ou Midjourney para criar as imagens. O próprio Canva já cria automaticamente uma apresentação, bastando você prover o texto para ele e já tem uma IA para sugerir textos nas apresentações e também para geração de imagens.
A quebra de paradigma do próprio modo de pesquisar, ler, resumir e elaborar pesquisas está bem diante de nossos olhos. Em outras palavras, estamos falando de IAs selecionando, resumindo, apontando pontos principais, fazendo conexões com a literatura e respondendo perguntas dos pesquisadores, isso tudo como parte regular do processo da pesquisa acadêmica para os próximos anos.
O objetivo deste texto não é refletir se essas mudanças serão necessariamente boas ou ruins, mas alertar que elas irão acontecer. Já existe uma corrida pelos melhores chatbots e usos da inteligência artificial. Apresentamos algumas ferramentas e seu impacto na pesquisa acadêmica – e agora trazemos reflexões para o futuro próximo da atividade acadêmica.
- Autoria: como visto, a tendência é que tais IAs estejam no cerne da pesquisa e elaboração dos textos. A preocupação excessiva com a “cola” provavelmente aponta para a direção errada. A questão tem mais a ver com autoria, direitos autorais e fontes. Tudo isso tenderá a ficar cada vez mais nublado, mesmo com as novas IAs apresentando melhor as fontes de suas respostas. Provavelmente, o melhor caminho é uma reflexão sobre os limites dos usos de tais tecnologias, incluindo uma regulação nacional e em cada instituição de pesquisa. Agora, a proibição em si só deixará nossa pesquisa ainda mais atrasada em relação aos grandes centros. A nosso ver, a discussão deve girar em torno de um uso inteligente e ético de tais tecnologias.
- Custos e colonialismo de dados: boa parte dessas ferramentas ou é paga ou cobra por opções avançadas. Não é difícil imaginar que o mesmo ocorrerá com o ChatGPT e similares. Em breve discutiremos se os recursos das universidades devem ir ou não para o uso de tais aplicativos e plataformas. Enquanto isso pode soar como inadequado para o momento, já normalizamos o pagamento por servidores (Microsoft, Amazon etc.), softwares (NVivo, Atlas.ti, Stata, SPSS, Endnote, Office etc.) e pelo simples acesso a determinadas plataformas de artigos. Se, por um lado, há todos os vieses e problemas relacionados a isso, incluindo o aumento de nossa dependência de tecnologias desenvolvidas por países que concentram a pesquisa acadêmica e aumentando o nosso papel como país colonizado em termos de apenas entregarmos dados e não exportarmos tecnologia; por outro lado, os grandes centros de pesquisa, usando as tais IAs, vão abrir ainda mais vantagem na comparação com o resto do mundo.
- O paradoxo da internacionalização da pesquisa: se nada for feito, a tendência é ficarmos cada vez mais dependentes dessas plataformas, entregando dados e não recebendo muito em troca. A produção científica brasileira (e do sul global) pode se internacionalizar de maneira considerável com as IAs. O Grammarly já funciona como AI para correção de textos em inglês, o Deepl é um tradutor consideravelmente melhor que o Google Translate e aprende com suas traduções. Todas as ferramentas apresentadas de escrita ajudarão fortemente para a correção de textos em inglês, como os supracitados Writefull e Quillbot. A necessidade da revisão por um profissional não deve cair nos próximos anos (ou mesmo nunca), mas certamente haverá maior facilidade para nossos pesquisadores traduzirem ou mesmo escreverem direto em outras línguas.
- O paradoxo centro/periferia. Além de democratizar o acesso a publicações internacionais, quebrando barreiras linguísticas e permitindo que falantes não nativos de inglês escrevam com fluência e correção, a tecnologia também democratiza o papel dos assistentes de pesquisa, que normalmente só estavam disponíveis para pesquisadores conhecidos e aqueles em grandes instituições acadêmicas, notadamente na Europa e nos Estados Unidos. Com ferramentas de IA, os pesquisadores podem realizar anotações, arquivamento de citações, preparação de manuscritos, edição de manuscritos, preenchimento de formulários, transcrição de áudio, redação de e-mail, criação de lista de tópicos, tradução de texto e criação de apresentações – tarefas constantemente relegadas aos ditos assistentes. Isso pode diminuir o “gap” entre o fôlego dos pesquisadores entre o centro e a periferia – mas, ao mesmo tempo, pode aumentar esse “gap”, visto que os pesquisadores centrais serão igualmente empoderados. Isto pode colocar em risco modelos distintos, tradicionais e regionais de fazer ciência ao mesmo tempo em que descola as pesquisas dos grandes centros de qualquer chance de serem alcançadas, quiçá igualadas.
- O paradoxo da produção de conhecimento: como já aconteceu com a calculadora científica, o computador pessoal, a internet e o google, as IAs claramente apresentam opções mais acessíveis para todas as pessoas. O paradoxo disso está no fato de IAs só reproduzirem conhecimentos já disponíveis. Se, por exemplo, havia uma forte tendência acadêmica de aumentar o aprendizado em linguagens de programação, esse movimento pode frear, uma vez que o ChatGPT e similares podem “gerar” os códigos de maneira mais fácil e rápida. Em outras palavras, dominar os protocolos de pesquisa das IAs poderá ser mais importante que aprender a programação em si. Se de uma ponta as IAs tornam mais acessíveis ferramentas e opções para pessoas que não dominam linguagens de programação, da outra, concentram ainda mais o poder de decisão entre empresas e indivíduos que controlam as inteligências artificiais.
O mesmo vale para outros campos. Em suma, os futuros pesquisadores provavelmente saberão ainda menos de autores e fontes. Dominarão ainda menos a literatura acadêmica e a base dos métodos de pesquisa e programação. Simultânea e paradoxalmente, provavelmente conseguirão lidar com bases de dados muito maiores e gerar resultados mais rápidos e em certos pontos mais precisos e substantivos.
Certamente, é difícil saber se tais impactos serão positivos ou não. Nosso ponto é afirmar que tais efeitos irão acontecer no curto prazo e que a academia e ciência brasileira precisam se preparar para tanto. A simples negação ou proibição dessas ferramentas não ajudará o debate, não colocará o Brasil numa posição de liderança em novas tecnologias e nem nos permitirá fazer um debate sério sobre a regulação da inteligência artificial, algoritmos e plataformas de redes sociais no futuro próximo.
Periódicos de alto impacto, como Nature, Science, e The Lancet, já iniciaram a discussão. Pesquisadores de AI da América Latina levantaram pontos iniciais interessantes para nosso contexto. Este texto do professor André Lemos, da UFBA, apresenta reflexões importantes. O Brasil é um dos países do mundo que mais confia (ou menos desconfia) no desenvolvimento recente em AI. Deslumbramento ou desconhecimento? Este momento em que o Brasil discute regulação sobre as plataformas e fake news pode ser a oportunidade para incluir a regulação de IAs no país, inclusive porque ela já aconteceu de forma equivocada. A saída nos parece ser o debate ampliado, considerando realidade, especificidades e necessidades do contexto brasileiro.
* Agradecemos ao professor Márcio Telles pela colaboração neste artigo.
**Mantemos acompanhamento diário de aplicativos e plataformas de IA dedicadas à pesquisa acadêmica. Mas, pela velocidade do processo, é muito possível que em pouco tempo o leitor considere desatualizados apps e sites citados aqui.
Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Paraná. Pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD).
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPR.
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