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Civilização e barbárie

Jair Bolsonaro não é um candidato a mais na disputa

Miguel Lago | 16 jul 2018_09h45
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Não há dúvida de que as eleições de 2018 no Brasil serão polarizadas. São tantas as rixas que é difícil perceber qual a antinomia mais relevante. Esquerda x direita? Intervencionismo x liberalismo? Lulismo x antipetismo? Podemos elencar dezenas de antagonismos que dividem as opiniões de eleitores brasileiros, mas há uma disputa maior que todas, uma polarização tão polarizante que ofusca as demais: civilização e barbárie.

Não me refiro à versão clássica dessa oposição, que deu o tom da expansão colonial no Brasil, servindo como justificativa da escravidão e da exterminação de povos indígenas. Refiro-me a uma nova barbárie, gestada e incubada pela própria civilização, que agora cria asas e quer sair do casulo.

Na América Latina, “civilização” e “barbárie” demarcaram muitas disputas durante o processo de construção das identidades nacionais, como retratado pelo clássico Facundo, escrito por Domingo Faustino Sarmiento em 1845. Que modelo de sociedade deveria ser seguido? O das elites citadinas, escolarmente qualificadas, adoradoras da Europa? Ou seria o das elites campesinas, caudilhescas, ancoradas no uso da força e desprovidas de qualificação técnica?

Nos termos de Sarmiento, a civilização ganhou. Nossos países adotaram, ao menos formalmente, o modelo iluminista das sociedades ocidentais. Nele, aquilo que se entende como verdade é verificável e demonstrável por meio da ciência e dos fatos; nele, a racionalidade é um princípio básico e compartilhado, que fundamenta as decisões das atividades políticas e econômicas; nele, os Poderes devem ser divididos e balanceados, para evitar excessos de uma esfera de poder sobre as outras; nele, o governo deve ser eleito pelo povo e deve ser criticável por qualquer pessoa; nele, o valor fundamental e inalienável é a liberdade individual, adquirida através do respeito aos direitos humanos e sempre associado, desde sua criação, ao direito de propriedade. Ninguém, nem mesmo o Estado, pode estar acima da lei. Eis o modelo de sociedade burguês, liberal, iluminista que brotou na Europa a partir do século XVIII e foi importado para a América Latina ao longo dos últimos dois séculos.

A vitória da civilização, no entanto, só foi possível graças às barbaridades que ela cometeu. Foram as mesmas elites civilizadas que permitiram o genocídio indígena na Argentina e no Chile e a manutenção da escravidão no Brasil até 1888. Já no século XX, foi no bojo da civilização que surgiram os regimes militares responsáveis pela tortura e aniquilação de adversários políticos. Ao longo da nossa história, em diversos momentos, a civilização recorreu ao bárbaro. De dia, os belos discursos, os valores fundamentais dos citadinos. De noite, as atrocidades, o uso arbitrário da força e a crueldade dos caudilhos. Nos últimos anos, é possível perceber movimentos na sociedade por meio dos quais os carrascos – que fizeram o trabalho sujo da civilização – saíram do armário. Agora, querem que suas ações já não se deem mais às escondidas, e sim que sejam vistas como valores. Ao transformar em bandeira algumas das práticas atrozes cometidas na surdina pela civilização, reconfiguram a antinomia clássica e se tornam os novos bárbaros.

A nova barbárie é isso: a negação de todos os valores professados pela civilização. Em face dela, os demais antagonismos clássicos contidos no paradigma iluminista – socialistas, democratas-cristãos, liberais, conservadores – praticamente se equivalem. Esquerda, direita e centro se encontram no mesmo front.

 

Nas eleições deste ano, o fenômeno se cristaliza no Brasil. As mais diferentes candidaturas situam-se, no fundo, no mesmo polo. De João Amoêdo a Guilherme Boulos, de Marina Silva a Geraldo Alckmin, passando por Fernando Haddad e Ciro Gomes – todos eles são passíveis de críticas, por diferentes lados do espectro ideológico, mas operam a partir do paradigma clássico da civilização. São defensores do estado democrático de direito, dialogam a partir da lógica racional. Alguns podem até esticar e torcer a interpretação dos fatos, inclusive mentir quando convém, mas todos compartilham minimamente os valores do Iluminismo.

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Existe, no entanto, um candidato que surge dos grotões da história, saído do fundo das contradições do nosso sistema político, e que encarna a nova barbárie como alternativa para o país. Jair Bolsonaro desafia o modelo de sociedade iluminista que se construiu no Ocidente nos últimos três séculos.

Ao invés da lei, Bolsonaro prega a ordem. Prefere a força às instituições, a tortura aos direitos humanos, a negação da alteridade à liberdade individual. Com Bolsonaro, a liberdade de expressão é algo muito relativo: se veículos comunicam fatos que não sejam do seu agrado, são chamados por ele de “mídia fake news”. Ele afirma que não pagaria a mulheres salários que se equiparam aos dos homens, que “ninguém gosta de gays” e debocha abertamente da tortura sofrida por brasileiros e brasileiras durante a ditadura. Em sua página do Facebook, já postou, orgulhoso, um vídeo em que diz ao filho da jornalista Miriam Leitão, torturada com uma jiboia numa sala do Exército: “Coitada da cobra.”

Bolsonaro lembra os caudilhos descritos por Sarmiento: seu discurso nega o que já parecia estar sedimentado na civilização como conquista coletiva. A superstição, a apologia da violência, as conspirações delirantes, sem lastro na realidade, e a burrice, sobretudo, são valores em torno dos quais gravita seu discurso.

Um hipotético governo de Bolsonaro abriria a porteira para uma onda de execuções públicas, de linchamentos, de uma violência fratricida na sociedade. Além de representar o retorno dos militares a posições estratégicas e com decisões públicas tomadas em cima de rompantes delirantes, não de evidências.

O único líder ligeiramente parecido com ele no continente é o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro. Não à toa, Bolsonaro já disse que, se eleito, aumentará o número de ministros do Supremo Tribunal Federal, para poder nomear a maioria – o mesmo estratagema adotado por Hugo Chávez e seu sucessor para atropelar a lei e as instituições em nome de uma ordem definida por eles mesmos.

Nada é mais equivocado, portanto, do que tratar o ex-capitão como um candidato entre outros, ou associá-lo a algum perfil ideológico. Mais do que encarnar uma ideologia específica, Bolsonaro é a pura expressão do ódio irracional. Tratá-lo como uma opção entre outras equivale a normalizá-lo para confundir as pessoas. A tal ponto que é possível ouvir eleitores de esquerda afirmarem que não veem diferença entre Alckmin e o ex-capitão, e eleitores de direita considerarem seriamente votar em Bolsonaro, caso a outra opção seja Ciro Gomes.

A polarização definidora das eleições de 2018, e que precede todas as outras, se dá entre Bolsonaro e a civilização. Em outros termos, Bolsonaro contra todos os outros candidatos. Ele é a revanche do obscurantismo sobre as luzes, é a revanche do autoritarismo sobre os direitos do indivíduo. Diante dele, direita e esquerda se equivalem – Alckmin e Ciro se tornam quase indistinguíveis. Jair Bolsonaro não é, definitivamente, apenas um candidato a mais na disputa ao Palácio do Planalto.