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Questões da Ciência

Cobra mordida

A reportagem “Cobra criada”, publicada na piauí 83, relatou uma sessão de alimentação de surucucus mantidas em cativeiro no Núcleo Serra Grande, serpentário criado no sul da Bahia pelo médico Rodrigo Souza. No episódio, uma cobra foi atacada por uma colega gulosa. Na semana passada, Souza publicou em seu blog novidades sobre o estado de saúde da serpente.

Bernardo Esteves | 03 set 2013_14h47
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A reportagem “Cobra criada”, publicada na 83, relata um episódio de alimentação de surucucus mantidas em cativeiro no Núcleo Serra Grande, serpentário criado no sul da Bahia pelo médico Rodrigo Souza. O trecho segue reproduzido adiante. Assinantes têm acesso à íntegra da reportagem; a 83 segue nas bancas.

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Quando estive no Núcleo Serra Grande, no fim de abril, a maior parte das 35 serpentes do plantel não estava nos grandes viveiros cercados, mas em observação no chamado sistema intensivo de criação. É um procedimento comum nessa época do ano, quando os animais são recolhidos para acompanhamento individualizado, enquanto é feita a manutenção do serpentário.

Este ano, outro fator recomendava que as cobras fossem observadas de perto: o estoque de comida estava a perigo. No biotério do prédio anexo, havia naquele momento 240 ratos, que mal dariam para alimentar o plantel por um mês – cada cobra come em média um roedor por semana. “Está crítico”, disse Rodrigo Souza, franzindo a testa. Os roedores vivem em gaiolas empilhadas em várias estantes metálicas num galpão amplo. Alguns animais ficam soltos num grande espaço cercado por uma mureta de azulejos.

O sistema intensivo de criação é formado por uma série de barracas de camping da mesma marca das que Souza tem em casa. As barracas estão espalhadas por mais de um cômodo e comportam até três serpentes cada uma. “Colocamos as cobras nesses recintos para que a gente possa ficar atento ao seu estado nutricional e preparar a vermifugação”, justificou o médico.

Numa das barracas, ele exibiu Gisele Bündchen, a única cobra que tem nome no serpentário. “Ela tem um azulado no desenho que nunca tinha visto em outra cobra”, explicou. “É a surucucu mais bonita que já vi.”

Mais adiante, ele soltou três ratos numa barraca, um para cada animal ali dentro. A cobra do fundo foi a primeira a dar o bote. Certeira, provavelmente perfurou o coração ou o pulmão do rato com uma das presas e ele não tardou a morrer. Ela seguiu com a cabeça erguida, prendendo o animal com a boca enquanto aguardava a ação do veneno. A surucucu é o único viperídeo brasileiro com esse comportamento: jararacas e cascavéis dão o bote e soltam a presa, esperando queela agonize no chão. Souza acredita que seja um comportamento adaptado ao ambiente úmido da Mata Atlântica. “A surucucu não pode se dar ao luxo de deixar o rato sair para morrer a 40 metros dali e se perder numa poça.”

Quando a cobra sentiu que o rato estava morto, colocou-o no chão, aproximou-se para identificar os dois lados do animal e começou a engoli-lo pela cabeça. As serpentes não têm dentes adequados para partir ou triturar os alimentos e digerem os animais por inteiro. Ao cabo de alguns minutos, a surucucu já havia engolido praticamente todo o rato – só restava o rabo, escapando de sua boca como um espaguete.

A segunda cobra se alimentou sem problemas. Mas a serpente mais próxima da porta da barraca não tinha sido tão ágil. Seu bote foi menos preciso e o rato demorou mais tempo para morrer, esperneando na sua boca. Ela ainda não pousara o roedor no chão quando a primeira surucucu terminou sua refeição. Aparentemente insatisfeita, a cobra que já havia comido aproximou-se da colega menos hábil com sua presa. Quando suas fossetas loreais identificaram o rato ainda quente na boca da outra, ela não hesitou e avançou. Só que errou o bote e acertou a cabeça da parceira. Imediatamente as duas se enroscaram num novelo ruidoso. Alvoroçado, Souza entrou na barraca e trouxe o par engalfinhado para um canto do quarto onde pudesse manejá-lo com mais liberdade. Só então conseguiu desenganchar as presas de uma surucucu da cabeça da outra.

A cobra ferida tinha recebido o equivalente de uma punhalada no crânio e sangrava nas mãos de Souza, mas provavelmente não sofreria os efeitos do envenenamento – viperídeos e outras serpentes têm no sangue substâncias que neutralizam sua própria peçonha em caso de inoculação acidental. Souza levou a serpente acidentada à maternidade, que funciona também como sala de emergência. Ali, tratou o ferimento da serpente com iodo e, segurando-a pela cabeça na vertical, forçou-a a engolir o rato que ela não conseguira comer mais cedo. Guardou-a num aquário para observação. “Ela está correndo risco de vida nas próximas 48 horas”, disse, consternado. A serpente sobreviveu.

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Num post publicado na semana passada, Rodrigo Souza deu novidades sobre o estado de saúde da surucucu atacada: “passados 60 dias do incidente, [a cobra] emagreceu e está recebendo alimentação forçada. Seu crânio está visivelmente perfurado e permanecerá no regime intensivo de criação – nosso CTI – por período indefinido.”

(fotos: Bernardo Esteves)

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