Ana Maria Gonçalves na mostra Um defeito de cor, em São Paulo: enquanto escreve, ela costuma ouvir gravações de dois ruídos que acha apaziguadores, o da chuva e o das máquinas de costura CRÉDITO: TAMARA DOS SANTOS_2024
Como Ana Maria Gonçalves escreveu Um defeito de cor
A trajetória da escritora e por que o romance se tornou um clássico
Um defeito de cor – clássico da literatura brasileira sobre a escravidão – tem 951 páginas e figura entre os romances mais longos da literatura nacional. Para concebê-lo, a mineira Ana Maria Gonçalves trabalhou arduamente por cinco anos. Gastou os dois primeiros só em pesquisas. Levou mais um ano redigindo a versão original do livro e outros dois na batalha de reescrevê-lo. A trama, que se passa durante quase todo o século XIX, enfoca a trajetória mirabolante de Kehinde (pronuncia-se Quéindé). A africana, escravizada na Bahia, compra a liberdade depois de inúmeras desventuras e ascende à condição de empresária. Coalhado de reviravoltas, o romance entretém, arranca lágrimas e indigna à medida que oferece um panorama do que significa ser negro numa sociedade escravagista. Apesar de caudalosa, a saga se divide em apenas dez capítulos. Nem a autora é capaz de informar quantos personagens há no livro. Ela já tentou enumerá-los, mas desistiu. “Contei uns 450 até o oitavo capítulo. Depois, entreguei os pontos.”
Em 2006, assim que o épico chegou às lojas, um crítico literário definiu Kehinde como o “Riobaldo-Diadorim dos subterrâneos da história brasileira”, uma referência a Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Pouco depois, o romance faturou o prestigioso Casa de Las Américas, prêmio outorgado pela instituição cubana de mesmo nome. Em 2022, no bicentenário da Independência, uma enquete da Folha de S. Paulo com 169 intelectuais colocou Um defeito de cor entre os duzentos livros fundamentais para a compreensão do país. A narrativa mereceu o sétimo lugar da lista. Quarto de despejo, célebre diário que Carolina Maria de Jesus publicou há seis décadas, conquistou o primeiro.
As aventuras de Kehinde não angariaram somente o apreço da intelectualidade. Em 13 de maio de 2020, enquanto o governo de Jair Bolsonaro relacionava a abolição da escravatura à benevolência da Princesa Isabel e não à luta dos negros, o hoje presidente Lula elogiou o épico. “Uma obra que li na prisão e recomendo sobre a questão do racismo é Um defeito de cor. Tem quase mil páginas, mas vale muito a pena”, enfatizou no X, que à época se chamava Twitter. O ator Lázaro Ramos frequentemente se declara fã da saga. “É meu livro definitivo – o que mais dou de presente, o que mais indico, o que mais me abriu o olho para a situação dos pretos em nosso país”, costuma dizer.
Quando lançou Um defeito de cor, a autora – descendente de pretos, indígenas e brancos – estava com 35 anos, não exibia grandes credenciais acadêmicas e praticamente debutava no mercado. Antes, escrevera Ao lado e à margem do que sentes por mim, romance independente que despertou pouca atenção da crítica. Embora sem um currículo notável, a escritora ousou abraçar um projeto bem mais ambicioso e logrou que um conglomerado influente, o Grupo Editorial Record, topasse publicá-lo. As peripécias de Kehinde se destacam, ainda, por antecederem as discussões sobre negritude que atualmente incendeiam o país. Com um quê de pioneirismo, o livro logo seduziu um número expressivo de leitores e, em dezoito anos, não perdeu fôlego comercial. Vendeu mais de 150 mil exemplares e alcançou a 41ª edição. No último Carnaval, serviu de inspiração para o desfile da Portela, uma das mais tradicionais escolas de samba cariocas. Um defeito de cor também norteia a exposição homônima que o Sesc Pinheiros, em São Paulo, abriga até dezembro.
O sucesso inesperado do épico assustou e travou a autora, que ainda não conseguiu terminar um novo livro. De 2006 para cá, Gonçalves criou espetáculos teatrais, contos e roteiros cinematográficos, mas não arrematou nenhum dos trinta romances que começou. Uns avançaram bastante, sobretudo o juvenil Quem é Josenildo?, híbrido de policial e ficção científica. Outros se limitaram à sinopse. “Durante muito tempo, Um defeito de cor me pesou. Eu receava virar prisioneira dele”, confessou numa das cinco entrevistas por vídeo que concedeu à piauí. “Nunca o reneguei, claro, mas o enxergava como uma montanha altíssima que deveria escalar duas vezes. Pensava: tenho de escrever algo tão consistente quanto Um defeito de cor. Só que, no fundo, sabia estar me impondo uma tarefa irrealizável. Agora vejo as coisas com mais leveza porque aprendi uma lição essencial: a literatura é uma arte em que a prática não conduz obrigatoriamente à evolução. Hoje você pode criar uma história excelente e, amanhã, uma péssima. Não existe a certeza – nem a necessidade – de subir degraus. O importante é persistir no ofício e fazer o melhor, dentro do possível.”
Livre do encargo de superar Um defeito de cor, Gonçalves se sente mais à vontade para assumir a missão de “guardiã do romance”. “Entendi que preciso tomar conta dele com o máximo de dedicação e alegria. Divulgá-lo sempre e me orgulhar dos voos incríveis que alçou.”
Na piauí deste mês, Armando Antenore traça o perfil da autora, descreve como ela fez o romance e explica por que a obra virou um clássico. Leia a íntegra da reportagem aqui.
Editor da piauí, é autor de Júlia e Coió, Rita Distraída e Sorri, Lia! (Edições SM)
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