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    Andrade assistiu a própria casa ser tomada pela chuva: "Um silêncio horrível se espalhou pelo espaço." Acervo pessoal de Graziela de Andrade

depoimento

“Como explicar a uma criança que a cidade dela morreu?”

A dor e a incerteza de uma família depois da tragédia causada pela chuva em São Sebastião

Graziela de Andrade | 02 mar 2023_13h30
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Em depoimento a Thallys Braga

 

Tenho 21 anos e moro há 12 na margem do Rio Camburi. Vinte minutos é o tempo que levo de bicicleta da Barra do Sahy, a região turística com pousadas e condomínios de luxo em São Sebastião, até Camburizinho, o bairro onde eu moro. Faço o trajeto todos os dias para voltar do trabalho para casa. Há muitos anos, os arredores do meu condomínio foram equipados com comportas para conter a água que vaza do rio quando chove. As ruas daqui sempre encheram, não é novidade para ninguém. Pessoas morrem o tempo todo. Pra gente, isso é normal. Mas a chuva nunca foi forte o suficiente para destruir toda a nossa vizinhança, como aconteceu na noite de 18 de fevereiro.

Naquele dia, eu achei estranho que uma água suja começou a subir pelo ralo do banheiro. Por mais que chova bastante, isso não acontece com frequência aqui. E a rua encheu muito rápido, logo no começo da chuva. Liguei para os meus pais e disse que eles viessem para casa imediatamente. Foi o tempo de eles chegarem para tudo piorar. O muro de trás do condomínio caiu, e a água veio com força para dentro da nossa casa.

As famílias que moram no térreo do condomínio subiram correndo para as casas dos vizinhos que moram em cima. Eu, meus pais e meu irmão, um menino de 8 anos, nos juntamos a outras duas famílias para se abrigar em uma casa do segundo andar. Isso foi às dez da noite, enquanto a chuva aumentava sem parar. Às três horas da madrugada do dia 19, não se via mais rua nenhuma. Passamos a madrugada inteira aflitos, assistindo ao nível da água subir, e subir, e subir. Não tínhamos mais internet, nem energia elétrica. A hora parecia não passar.

A destruição do bairro já era visível na madrugada. Nós pensávamos que aquela era mais uma das chuvas que atingem Camburizinho, só que dessa vez havia chegado com mais força. Nosso bairro aprendeu a lidar com tragédias. Sabíamos que era questão de tempo até nos reerguermos. 

Pela manhã, a vizinhança se juntou para tirar o excesso de lama que se espalhou pelas estradas. Ninguém tinha dormido ainda. Quando o caminho ficou um pouco menos sujo, já no fim da tarde do dia 19, saímos todos em direção aos hotéis e pousadas, na parte mais alta do bairro, que estavam disponibilizando as redes Wi-Fi para todo mundo acessar. Meus pais eram os únicos com bateria no celular. Quando eles se conectaram à internet, veio o susto: a chuva não tinha castigado só Camburizinho. Toda São Sebastião estava destruída de um jeito que nunca vimos. Um silêncio horrível se espalhou pelo espaço. Entre choros, começamos a procurar contato com os familiares que moram em outros bairros para saber se todos estavam bem, mas as respostas não chegavam. 

 

A casa do meu tio era um barraco de madeira. Quando a chuva chegou, foi tudo ao chão. Ele e os familiares estão abrigados agora na casa dos meus avós. A minha irmã mais velha também está lá com os dois filhos, enquanto procura uma casa para alugar em um bairro onde a probabilidade de alagamento seja menor. Minha prima, mãe de três filhos, perdeu tudo e não sabe como vai conseguir se restabelecer.

O chão da minha casa é torto porque o condomínio fica perto do rio, onde deveria ser um mangue. Todo mundo sabe que aqui não deveria ter moradias e sim um mangue. Como a água entrou com muita facilidade na minha casa, as roupas, os eletrodomésticos e os móveis foram todos estragados. Mas a estrutura continuou de pé, então continuamos tendo onde morar. 

Se em um dia choveu 626 mm em São Sebastião, por que nos outros isso não vai acontecer? É o que temos pensado o tempo todo. Não conseguimos pensar “foi só dessa vez, não vai ter outra vez”. Estamos tentando nos preparar para a próxima vez. Muitas pessoas aparentam estar bem porque ficam em silêncio. Mas, quando sentam para conversar, as expressões entregam que elas estão traumatizadas. Precisamos de ajuda psicológica. Muitas pessoas não conseguem falar da dor que estão sentindo.

Tem também aqueles que se recusam a pedir ajuda. Eu passei a pegar a minha bicicleta e ir com amigos às portas das pessoas, aconselhando que elas saiam de casa para se abrigar em um local seguro, ao menos à noite. Elas dormem em colchões molhados que acharam na rua depois de terem perdido os próprios para a correnteza da água.

Nenhum dia tem sido igual. Eu tento voltar à normalidade, àquela rotina de acordar, ir ao trabalho, voltar e dormir. Mas sempre que eu chego em casa, fico inquieta, listando mentalmente todos os vizinhos que precisam de ajuda. Por mais que eu não ganhe muito bem como vendedora de loja, estou usando todo o dinheiro para ajudar minha família a se reconstituir. E, nas redes sociais, não escondo de ninguém que a minha São Sebastião precisa de ajuda urgente. 

O meu irmão de 8 anos está no espectro do autismo. A escola dele parou e ainda não voltou a funcionar, então ele passa o dia conosco, fazendo perguntas. Ele ainda não sabe como tudo está destruído para além do nosso bairro. Mas como explicar a uma criança que a sua cidade praticamente morreu? 

De todas as minhas preocupações, a maior é com as pessoas que estão trabalhando para resgatar os corpos dos mortos. O solo está cada vez mais contaminado, meus vizinhos não podem e não deveriam ter contato com esse material. Além disso, muitas das doações de alimentos e água chegam de barco. Alguns quebraram com o excesso de cargas e agora os barqueiros precisam de ajuda para se recompor a tempo de levar comida a quem precisa. Hoje, eu não vi nenhum barco passando por aqui. Não sei como será amanhã.

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