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    "Os dados podem ser como um espelho que distorce a imagem. Às vezes, as informações não são necessariamente falsas, mas desproporcionais", disse Vo, na abertura do festival Foto: Marcelo Saraiva

festival piauí de jornalismo

Como não cair nas armadilhas do jornalismo de dados

As ideias de Lam Thuy Vo, jornalista do The Markup, para os repórteres que querem se embrenhar no mundo das estatísticas e da inteligência artificial

Amanda Gorziza | 02 dez 2023_14h47
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Em uma reportagem publicada em 2018 no BuzzFeed, a jornalista Lam Thuy Vo contou a história de Ramon Hernandez, um homem de 105 anos que vivia no Harlem, bairro de imigrantes em Nova York, e tornou-se alvo de reclamações de vizinhos por barulho. A polícia bateu em sua porta várias vezes, interrompendo partidas de dominó que ele organizava com amigos. Os policiais agiam baseados em dados: em três anos, aquele quarteirão registrou mais de 3 mil reclamações por barulho. O que os números não mostravam, no entanto, é que as milhares de reclamações tinham sido feitas por um grupo pequeno de pessoas – no caso, moradores brancos e mais ricos que tinham acabado de chegar ao bairro. Um retrato da gentrificação que acontece nos Estados Unidos e em tantos países.

“Em razão daquela quantidade imensa de dados, a população do Harlem teve que mudar sua maneira de viver”, contou Lam Thuy Vo, convidada da mesa de abertura do Festival piauí de Jornalismo, que acontece neste final de semana na Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Ela foi entrevistada no sábado (02) pelos repórteres da piauí Angélica Santa Cruz e Tiago Coelho. A conversa girou em torno dos riscos e vantagens do uso de novas tecnologias no jornalismo. A história de Ramon Hernandez, para ela, é exemplar de como o jornalismo deve buscar as histórias por trás dos amontoados estatísticos.

Os dados são um recurso extraordinário para fazer jornalismo, mas não se deve enganar: assim como outras fontes de informação, eles têm viés e podem levar a conclusões falsamente objetivas. “Dados são como uma cápsula do tempo que registra o que a sociedade valoriza em determinado momento”, alertou a jornalista. De família vietnamita, Vo nasceu na Alemanha e vive nos Estados Unidos, onde passou por diferentes redações, como BuzzFeed News, The Wall Street Journal e Al Jazeera America. Hoje, é repórter do The Markup, veículo que investiga como instituições públicas e privadas estão transformando a sociedade por meio da tecnologia.

“Os dados têm vieses, temos que ser céticos ao analisá-los. Imagine-os como um espelho que distorce a imagem. Às vezes, as informações não são necessariamente falsas, mas há nelas uma desproporção”, explicou Vo, habituada a grandes investigações jornalísticas com base em dados. 

Agora que o uso de inteligência artificial (IA) se dissemina nas redações, segundo Vo, é preciso cautela para trabalhar dados gerados por IA, já que a maioria deles são coletados nos Estados Unidos, onde operam as grandes empresas de tecnologia. Muitas vezes, portanto, o que parece uma estatística de dimensão global é, na verdade, o retrato de uma sociedade específica.

Autodidata em ciência de dados, Vo é especialista em ensinar jornalistas a lidar com o enorme volume de informações criado pelas redes sociais. Curtidas, reações e comentários geram o que Vo chama de pegada digital. São rastros deixados pelos usuários. Segundo ela, em 2013, cada pessoa produzia 5 gigabytes de informação digital por dia. Se bem trabalhada, essa fonte de informações pode embasar grandes reportagens, permitindo traçar linhas do tempo precisas e esmiuçar detalhes da vida de personagens. “O arquivo digital é um assistente de memórias. Às vezes, a pessoa não lembra de acontecimentos, mas os dados que coletamos dela, sim”, disse Vo. 

 

Lam Thuy Vo é uma das administradoras do “Journalists of Color”, um grupo no Slack que permite a jornalistas não brancos se conectarem e compartilharem informações sobre suas carreiras, as dificuldades que encontram no mercado, os episódios de racismo. Mais de 5 mil profissionais colaboram com a plataforma, que recebeu em 2019 o prêmio ONA Community Award, oferecido pelo Online Journalism Awards. 

“Na comunidade, vemos quais são as necessidades dos jornalistas não brancos. Trabalhamos buscando igualdade, cobrindo comunidades marginalizadas e empoderando essas pessoas dentro das redações”, explicou Vo. O site serve de amparo para muitos jornalistas, mas Vo pondera que, no mundo ideal, os próprios veículos de comunicação proveriam esse tipo de apoio aos seus funcionários.

Com o mesmo intuito do “Journalists of Color”, Vo ajudou na criação do Guia de Recursos para Jornalistas de Cor, um manual compilando informações de todo o tipo sobre o mercado jornalístico. Ele informa, por exemplo, os salários pagos por grandes empresas de comunicação. A ideia é que, com isso, jornalistas não brancos tenham bons parâmetros na hora de negociar seus trabalhos ou pedir aumento.

Eloquente e carismática, Vo riu ao citar os questionamentos sobre a importância desse tipo de iniciativa. A essa altura, disse, já se trata de ponto pacífico: a diversidade no jornalismo não só é um tipo de justiça social, como também um investimento na qualidade do noticiário. “Ter uma multiplicidade de vozes nas redações que seja proporcional ao perfil de leitores melhora o acesso a algumas pautas e a um entendimento mais completo da sociedade, além de evitar estereótipos.”

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