Apreensão de pistolas Bersa no Paraná; armas viriam para o Rio - ILUSTRAÇÃO DE PAULA CARDOSO SOBRE FOTO DE DIVULGAÇÃO/PRF
Conexão Argentina – nova rota de armas frias
Pistola usada para matar marido de deputada saiu de Buenos Aires, passou pelo Paraguai e pelo Complexo da Maré antes de chegar a Niterói
No começo de junho deste ano, Flávio dos Santos Rodrigues, 38 anos, e um de seus irmãos mais novos, Lucas Cezar dos Santos de Souza, 18, cruzaram a ponte Rio-Niterói e rumaram para a favela Nova Holanda, no Complexo da Maré, Zona Norte da capital fluminense. Rodrigues queria comprar uma arma e adquiriu de um grupo de traficantes do local uma pistola Bersa, de origem argentina, modelo TPR9, calibre 9 milímetros – ainda não está claro o valor pago, mas o preço de uma pistola dessa marca no mercado paralelo do Rio varia de 6 a 7 mil reais. Poucos dias depois, na madrugada do dia 16 de junho, em Niterói, Rodrigues empunharia a arma contra o padrasto, Anderson do Carmo de Souza, casado com sua mãe, a deputada federal Flordelis dos Santos de Souza. Nove disparos atingiram o pastor evangélico na cabeça, no tórax e na região pélvica. Morte instantânea.
Reconstituir a trajetória da Bersa usada para matar o pastor é refazer o percurso que transformou a Argentina em nova fornecedora para o mercado paralelo de armas da capital fluminense – sempre em triangulação com o Paraguai. O território paraguaio é, há tempos, entreposto na venda de armas para o Brasil. Até maio de 2018, empresas paraguaias importavam grandes quantidades de armas leves dos Estados Unidos, com destaque para pistolas Glock, marca austríaca muito cobiçada pelo mercado norte-americano. Uma vez no Paraguai, lojas simulavam a venda da arma e repassavam-na para o mercado ilegal, com destino ao Brasil. Em 2017, o Paraguai foi o país da América Latina que mais importou armas dos Estados Unidos, 4,16 milhões de dólares no total, segundo dados da ONU.
Mas, em maio de 2018, o Paraguai, pressionado pelo governo norte-americano, suspendeu a importação de armas destinadas à venda para civis. Um estudo da Polícia Federal brasileira de 2017 divulgado pela Reuters revelou que a maioria das armas longas (como fuzis) ilegais apreendidas no país tinha origem nos Estados Unidos e chegava ao Brasil por duas maneiras. A primeira é a rota aérea direta Miami-Brasil, utilizada durante anos pelo traficante de armas Frederik Barbieri – em junho de 2017, a polícia apreendeu no aeroporto do Galeão, Rio, sessenta fuzis enviados por ele a partir da Flórida. A segunda rota se vale de países vizinhos, principalmente Paraguai e Bolívia, como pontos de passagem até o território brasileiro.
A suspensão do governo paraguaio segue em vigor. Como o crime não comporta vácuo – a demanda por armas ilegais no Brasil continua a todo vapor – os traficantes do Paraguai encontraram uma saída na vizinha Argentina. Pistolas produzidas pela Bersa, a maior fábrica argentina de armas, passaram a ser contrabandeadas para o território paraguaio e de lá para o Brasil, principalmente para o Rio de Janeiro. São armas mais baratas que a congênere Glock (10 mil reais no mercado ilegal), embora consideradas de menor qualidade. “Em Ciudad del Este, pistolas Bersa ilegais são oferecidas abertamente na rua”, diz Sérgio Koch, inspetor da Polícia Rodoviária Federal no Paraná. Na fábrica, uma Bersa custa cerca de mil reais, ou 14,5 mil pesos argentinos, enquanto na fronteira, segundo a Polícia Federal, cada pistola da marca argentina é adquirida por cerca de 1,5 mil dólares. De Foz do Iguaçu, afirma Koch, as armas costumam seguir para o Rio em compartimentos ocultos de automóveis (os chamados mocós) ou escondidas no corpo de passageiros de ônibus. Uma vez no Rio, pistolas e fuzis são itens fundamentais para o controle ostensivo de território, disputado entre narcotraficantes, bicheiros e milicianos cariocas.
A Delegacia de Homicídios de Niterói, que investiga o assassinato do pastor Anderson, já descobriu que a Bersa adquirida por Rodrigues na Maré entrou no Brasil pelo Paraguai. A arma foi encontrada dois dias depois do crime em cima do guarda-roupa do quarto de Rodrigues, em Niterói – a numeração da Bersa estava raspada, mas a perícia conseguiu identificar os dados por meio de processos químicos. Rodrigues e o irmão estão presos e foram denunciados à Justiça pelo Ministério Público por homicídio qualificado. A defesa de Rodrigues nega a participação dele no crime; a do irmão mais novo não foi localizada pela reportagem. A Polícia Civil segue investigando possíveis mandantes para o crime – a própria deputada Flordelis está entre os suspeitos.
Os números de apreensões da Polícia Rodoviária Federal (PRF) dão a dimensão dessa mudança na origem das pistolas contrabandeadas do Paraguai para o Brasil. Enquanto a média mensal de semiautomáticas Glock apreendidas nas rodovias federais caiu de 18,8 em 2017 para 10,6 neste ano, a de Bersa cresceu, no mesmo período, de 1,6 mensal para 14,5. Das 131 pistolas argentinas ilegais flagradas neste ano em estradas no Brasil, de janeiro a setembro, 102 foram nos estados do Paraná e Rio de Janeiro. Em setembro, policiais rodoviários flagraram vinte pistolas Bersa escondidas em mochilas, dentro de um automóvel no oeste paranaense. Preso, o motorista, morador de Copacabana, Zona Sul carioca, disse que as armas iriam para o Rio, sem dar mais detalhes. Algumas das pistolas Bersa apreendidas neste ano pela PRF vinham com mira laser acoplada. Com capacidade para até dezessete cartuchos, as pistolas Bersa são consideradas por especialistas mais precisas do que as fabricadas pela brasileira Taurus.
Atualmente, as facções criminosas rivais Comando Vermelho (CV) e Terceiro Comando Puro (TCP) dominam a rota entre Ciudad del Este, no Paraguai, e os morros cariocas, cada um com seus respectivos fornecedores no país vizinho. O TCP utiliza as rodovias Presidente Dutra e Rio-Santos, passando pelo estado de São Paulo, controlado pela facção aliada Primeiro Comando da Capital (PCC) – em setembro, a Polícia Rodoviária Federal apreendeu 37 pistolas Bersa em Itaguaí, na Rio-Santos, que seriam do TCP. Já o CV tem levado armas até a capital fluminense pela BR-040, passando por Minas Gerais – assim, contornam São Paulo, controlado pelo rival PCC. Milicianos também têm importado armas argentinas a partir do Paraguai, embora em menor volume, já que muitos deles são policiais da ativa e se valem das armas fornecidas pelo próprio estado. “É mais fácil transportar uma arma leve do que droga: tem menos volume e não tem cheiro”, compara Marcus Amim, delegado-titular da Desarme, delegacia especializada em armas do Rio. Procurada pela piauí, a Bersa, cuja fábrica fica na região metropolitana de Buenos Aires, não retornou aos pedidos de entrevista.
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