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    Pelé durante uma entrevista em São Paulo, em 2016 Foto: Adriano Vizoni/Folhapress

anais do futebol

Conhecendo Pelé

O rei do futebol não era um homem fácil de se entender, mas podia ser generoso de maneiras inesperadas

Brian Winter | 30 dez 2022_09h02
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Na primeira vez que encontrei Pelé, eu, como a maioria dos mortais, não sabia realmente o que dizer. Uma editora americana me contratou para ajudá-lo a escrever um livro para a Copa do Mundo de 2014, que o Brasil sediou, mas eles não queriam apenas mais um livro tradicional de memórias do futebol, contando sobre os antigos gols e outras glórias. (Pelé já tinha publicado dois livros desses em inglês – o primeiro em 1977, ano em que se aposentou do New York Cosmos e também, coincidentemente, o ano em que eu nasci.) Então, quando nos sentamos no escritório dele em Santos, cercados por fotos envelhecidas e troféus, decidi tentar uma abordagem diferente, mais pessoal:

“Pelé, eu vi uma foto da década de 1970 em que você estava numa mesa no Studio 54 com Rod Stewart, Mick Jagger, Liza Minnelli e Andy Warhol. Como foi isso? Você se lembra?”

Pelé sorriu – aquele sorriso grande e icônico. “Rod Stewart! Grande cara! Ele amava futebol, amava o Brasil. Sempre rápido com uma piada. Muito divertido. Ótimo rapaz.”

Esperei um pouco. Isso foi tudo?

Sim, foi tudo.

Ok, pensei, talvez as coisas tenham sido meio loucas nos anos 1970. O que acontecia no Studio 54 ficava no Studio 54? É justo. Vamos tentar outra:

“Pelé, você foi à festa de aniversário de 18 anos de Michael Jackson. Como foi isso? Como Michael mudou ao longo dos anos? Como você se sentiu quando ele morreu?”

Aquele sorriso de novo. “Michael Jackson – grande cara! Amava o Brasil, amava a dança do nosso povo. Ele sempre queria falar sobre o Brasil, sobre as nossas tradições. Realmente, um cara espetacular.”

Isso continuou mais ou menos do mesmo jeito por mais uma hora, e saí daquela primeira reunião me sentindo totalmente consumido pelo pânico. Por causa da maneira agonizantemente lenta como os livros são produzidos e impressos, e uma certa temeridade inexplicável de nosso editor, teríamos apenas nove semanas para fazer as entrevistas, escrever e editar esse livro. Onde eu iria conseguir o material? Contei nossa conversa para alguns amigos de confiança, e todos tiveram a mesma reação: Pelé estava senil? Ou simplesmente não era muito inteligente?

Logo descobri que, na verdade, quem não era muito inteligente era eu. Pelé era uma das pessoas mais famosas do mundo desde que levou o Brasil a ganhar sua primeira Copa do Mundo, com apenas 17 anos, em 1958. Nas décadas seguintes, Pelé cruzou caminhos com a rainha Elizabeth, Muhammad Ali e os Beatles. Ele conheceu vários papas e todos os presidentes dos Estados Unidos desde Lyndon Johnson. Estrelou um filme de Hollywood ao lado de Sylvester Stallone e Michael Caine. O que quer dizer: é claro que Pelé não se lembrava muito daquela noite no Studio 54, porque provavelmente não lhe causou muita impressão. Ele conheceu todas as celebridades da segunda metade do século XX em diante, e nenhuma era mais famosa que ele.

Então, em nosso encontro seguinte, deixei de lado as fofocas de celebridades e tentei conhecer o homem em seus próprios termos. Eu teria sucesso apenas em parte: Pelé havia sido queimado por muitas pessoas ao longo dos anos, perdendo toda a sua fortuna não uma, mas duas vezes em maus investimentos e fraude total. Ele aprendeu da maneira mais difícil a não confiar em agentes, contadores, escritores e outros que supostamente estavam lá para ajudá-lo. Pelo que pude deduzir, não era a fama extrema que representava os maiores desafios para Pelé – na verdade, ele era tão famoso havia tanto tempo que isso era tudo o que conseguia se lembrar, e ele me disse que tinha pesadelos sobre ninguém se lembrar de quem ele era. Não, o que mais incomodava Pelé eram os amigos e outros que viviam em busca de dinheiro, favores, ingressos, uma apresentação. Ele me tratou educadamente, mas com cautela, como se eu fosse mais uma pessoa que inevitavelmente iria decepcioná-lo.

Apesar dessas barreiras, aprendi que havia duas coisas com as quais Pelé parecia verdadeiramente se importar.

A primeira coisa, é claro, era o futebol. Nada animava tanto Pelé quanto as histórias de seu tempo dentro e ao redor do campo – seus três títulos inigualáveis da Copa do Mundo, a era do Santos go-go, os anos crepusculares de sua carreira, quando ele foi o rei inquestionável da cidade de Nova York nos anos 1970 e apresentou o futebol para muitos americanos pela primeira vez, jogando pelo Cosmos. Pelé claramente contou algumas dessas histórias milhares de vezes e, francamente, algumas delas podem não ter resistido aos rigores da verificação de fatos dos dias modernos. Mas ele parecia gostar mais das histórias de seus primeiros tempos, de um mundo antes do advento das comunicações de massa ou da cultura pop, um mundo que não existia mais para ele – ou para qualquer pessoa.

Ele me contou que passeou pelas ruas da Suécia, país-sede da primeira Copa de que participou, em 1958, ao lado de seus companheiros da seleção, entre eles o querido Mané Garrincha, que, como Pelé, era uma espécie de caipira naqueles primeiros anos. Eles avistaram uma invenção inédita no Brasil, os rádios a bateria, e começaram a testar os alto-falantes. Garrincha torceu o nariz e declarou que jamais compraria aquilo. Um dos jogadores mais velhos, surpreso, perguntou por quê.

“Não entendo nada do que ele diz!”, respondeu Garrincha. A voz que vinha do rádio era, claro, em sueco. Os outros jogadores tentaram explicar que o rádio “falaria” português no Brasil, mas Garrincha não acreditou. “De jeito nenhum.” Cerca de sessenta anos depois, as lágrimas de riso ainda vieram aos olhos de Pelé – junto com uma certa nostalgia.

A segunda coisa que preocupava Pelé talvez fosse mais surpreendente. Apesar de toda a exploração ao longo dos anos, apesar dos incontáveis encontros com torcedores em êxtase, chefes de Estado e outras celebridades, Pelé ainda parecia ter uma alegria autêntica em se conectar com as pessoas. Nem todo mundo, veja bem – adultos comuns, com suas agendas ocultas, não lhe causavam grande interesse. Mas com crianças, e especialmente com os doentes e vulneráveis, vi esse homem repetidamente se esforçar para entender o que as pessoas queriam e depois ser generoso o suficiente para lhes dar. Em visitas a hospitais e em seus projetos de caridade, ele passava tempo, tempo real, conversando com as pessoas. Muitas eram, como eu, jovens demais para tê-lo visto jogar futebol – mas mesmo crianças pequenas pareciam entender intuitivamente que ele era uma pessoa de magia e carisma especiais. Perguntei a Pelé se ele já se cansara de autógrafos e conversa fiada. “Às vezes”, ele admitiu. “Mas acho que Deus me colocou aqui para tentar fazer as pessoas felizes.” Se isso soa piegas ou decorado para você, eu entendo. Mas acredito que ele foi sincero.

Acredito nisso em parte porque, como quis o destino, minha família experimentou esse lado de Pelé em primeira mão. Durante o curto período em que ele e eu trabalhamos juntos, minha irmã mais nova, de apenas 30 anos, foi diagnosticada com um câncer altamente agressivo. Enquanto trabalhávamos no livro, Pelé perguntava sobre ela regularmente. Quando as coisas ficaram realmente difíceis, ele tirou uma foto de si mesmo – sorrindo, é claro – segurando uma placa com o nome dela e uma mensagem: “Mantenha a bola rolando.” Minha irmã simplesmente não conseguia acreditar. “Meu Deus, adorei”, ela respondeu. Foi a última mensagem que recebi dela. Sei que Pelé tocou centenas, e provavelmente milhares, de pessoas da mesma forma, longe dos holofotes e das câmeras.

Foto que Pelé tirou para minha irmã: “mantenha a bola rolando” (Imagem: Acervo pessoal)

 

Nada disso fez dele um santo, é claro. No Brasil, onde morei naqueles anos, era comum ouvir as pessoas dizerem que amavam Pelé, mas não gostavam de Edson Arantes do Nascimento – fazendo uma distinção entre o ícone do futebol e o ser humano da vida real. Sua recusa durante anos em reconhecer uma filha nascida fora do casamento, mesmo depois que os testes de DNA provaram que era dele, afastou muitos fãs. Outros reclamavam de seu mercantilismo crasso, de sua constante necessidade de lucrar ao longo dos anos com a marca Pelé: café, chocolates, farmácias e até gado. Para os mais próximos, ele podia ser distante e indiferente, mostrando pouco da generosidade que dedicava a estranhos.

Suponho que Pelé, como todos nós, teve que conviver com as consequências de seus fracassos e deficiências. Tudo o que posso dizer é isto: pessoalmente, não consigo imaginar viver a bizarra trajetória de vida do atleta superstar, cuja fama e poder aquisitivo atingem o pico por volta dos 20 anos, apenas para passar as próximas quatro, cinco, seis décadas sendo solicitado a reviver velhas histórias que, com o passar dos anos, devem parecer que aconteceram com outra pessoa. Passei minha carreira trabalhando com presidentes e outras figuras famosas; nenhuma delas gerou nada remotamente parecido com a pura histeria que Pelé provocou em pessoas aparentemente normais. Vi homens crescidos chorarem, e suas mãos tremerem, na presença dele enquanto contavam algum gol que ele marcou pelo Santos nos anos 1960.

Em retrospecto, parece inteiramente plausível que mesmo Rod Stewart e o jovem Michael Jackson possam ter, no auge da celebridade de Pelé, apenas conseguido dizer algumas palavras sobre amar o Brasil e a “dança do seu povo”. Talvez a lembrança de Pelé daquelas conversas no Studio 54 fosse realmente exata. Não me surpreenderia.

O livro que Pelé e eu escrevemos juntos, Why Soccer Matters (Por que o futebol é importante), foi publicado – no prazo, milagrosamente – às vésperas da Copa do Mundo de 2014. Não era a novidade incrível que o editor esperava; em vez disso, narrava principalmente velhas histórias, aquelas que Pelé queria contar e que todos queriam ouvir. Perdemos contato logo depois; eu o conheci apenas brevemente. Mas a observação mais honesta que já ouvi veio de seu assessor mais próximo, José Fornos Rodrigues, conhecido como “Pepito”, um verdadeiro cavalheiro em quem, segundo todos os relatos, ele confiava totalmente. “Nesta fase da sua vida”, Pepito me disse, “Edson é um ator que faz o papel de Pelé.”

Sim, foi uma atuação, mas uma atuação genial, em que ele se entregou mais do que precisava, mesmo quando quase ninguém estava assistindo. Ele fez muita gente feliz. Que descanse em paz.

Tradução: Luiz Roberto M.Gonçalves

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