Coppola fez questão de visitar uma das estações-tubo da cidade, marco urbanístico da gestão do ex-prefeito Jaime Lerner, de quem foi amigo Foto: Anderson Tozato/SEEC/Governo do Paraná
O poderoso busão
Lições e frustrações de Francis Ford Coppola numa quinta-feira em Curitiba
Cléber de Souza, empresário e ex-garçom, acordou mais cedo que de costume. Cumpriu sua rotina matinal, se vestiu e partiu para uma das raras lojas que ainda revelam fotografias em Jaraguá do Sul (SC), onde mora. Pagou por uma única foto, tirada 21 anos atrás. Nela, aparece de camisa branca e gravata borboleta ao lado de um sorridente senhor de barbas brancas, que vestia uma camisa rosa estampada com coqueiros. Era Francis Ford Coppola. O cineasta americano visitou Curitiba em 2003, ano da foto. Numa estadia de três semanas, passou cinco vezes no restaurante italiano A Pamphylia, onde Souza trabalhava. Foi tietado pelos funcionários e até criou uma pizza personalizada, feita em massa grossa com mussarela, molho de tomate fresco, azeite e manjericão. O sabor é servido até hoje, com seu nome.
Coppola circulava pela capital do Paraná, naquele ano, em busca de inspirações para o filme que vinha tentando produzir desde a década de 1980: Megalópolis. A película acaba de ser lançada, e por isso o diretor resolveu retornar à cidade, que o atraiu anos atrás graças aos dotes urbanísticos. Dessa vez, permaneceu por apenas um dia. Souza, cioso de reencontrar o antigo freguês nessa estreita janela de 24 horas, pegou a fotografia e percorreu, na tarde de 31 de outubro, os 160 km que conectam Jaraguá do Sul a Curitiba.
Coppola e Cléber de Souza no restaurante A Pamphylia, em 2003 (Foto: Acervo pessoal)
Megalópolis conta a história de um arquiteto visionário (interpretado por Adam Driver) que tem um plano para revitalizar a fictícia Nova Roma, construindo em seu lugar uma cidade utópica que leva o nome do filme. Na tentativa de emplacar o projeto, o arquiteto entra em rota de colisão com o prefeito, interpretado por Giancarlo Esposito. Quem bancou a produção foi o próprio Coppola – cerca de 120 milhões de dólares. O filme, até o momento, arrecadou pouco mais de 10% desse valor, considerando as bilheterias do mundo todo.
De manhã cedo, naquela quinta-feira, centenas de pessoas já se enfileiravam em frente ao Teatro Guaíra, na região central de Curitiba. Clara Trentino, a primeira da fila, aportou ali às seis e cinquenta da manhã. “Quis pegar a primeira fileira do teatro, pra ficar cara a cara com ele”, disse a estudante de cinema, que não era nascida quando Coppola visitou a cidade pela primeira vez. “Gosto muito dele e consumo todos os seus trabalhos, mas sou muito fã da filha dele [a também cineasta Sofia Coppola].”
O americano combinou de dar uma palestra para estudantes de cinema e outras artes. A procura foi tanta que, no dia anterior, o local do evento precisou ser alterado duas vezes. O plano inicial era que Coppola falasse a um público restrito de alunos da Universidade Tuiuti do Paraná, que ele também visitou em 2003. Depois se anunciou que a palestra seria no Guairinha, auditório de 472 pessoas no Teatro Guaíra. Por fim, decidiu-se pelo Guairão, o maior auditório disponível naquele teatro, onde cabem aproximadamente 2 mil pessoas.
Marcada para as dez e meia, a palestra atrasou. Depois de vários minutos de uma conversa entre dois entrevistadores que, na ausência do entrevistado, agiram de improviso no palco, uma assessora do governo estadual pegou o microfone. Explicou que Coppola havia tirado uns minutos para fotografar a Rua XV de Novembro, um dos cartões postais de Curitiba; uma estação-tubo de ônibus, inovação arquitetônica que recebe ônibus do estilo BRT; e uma unidade do Farol do Saber, biblioteca pública construída em formato de farol. A plateia curitibana riu e, provavelmente sentindo-se lisonjeada, demonstrou tolerância com o atraso.
A rua de petit-pavé, as paradas de ônibus e as bibliotecas são paisagens que se devem, em boa parte, à gestão do ex-prefeito e ex-governador Jaime Lerner (1937-2021). Apesar do tempo escasso, Coppola fez questão de admirá-las. “Ele queria rever a cidade. Preferia não ter tanto compromisso”, diz Ilana Lerner, filha do ex-prefeito e diretora do Instituto Jaime Lerner. Ela ajudou a guiar Coppola nesse passeio. “Não avisamos nada a ninguém porque ele não queria ser o centro das atenções.” A perambulação durou pouco, mas rendeu cliques nas redes sociais. Os curitibanos acharam graça de ver o diretor de O poderoso chefão (1972) numa modesta estação de ônibus.
Coppola enfim chegou ao Teatro Guaíra. Vestia um terno azul claro, sapatos pretos e meias nas cores verde e azul. No pulso esquerdo, um relógio digital. Na gravata, uma ilustração do mapa de Napa Valley, condado da Califórnia onde é dono de uma vinícola. Integrantes do governo, da Tuiuti e fotógrafos se apinharam ao seu redor para um momento solene: a entrega de um certificado de “palestrante honorário”. Mas Coppola não deu bola. Microfone em mãos, começou a conversar com a plateia e perguntou se todos compreendiam seu inglês. O entourage tentou novamente presenteá-lo com o certificado, ao que o americano reagiu com alguma rispidez. “Eu não quero fazer isso agora. Eu vim pra cá para fazer uma conversa com estudantes. Levem esse prêmio para longe.” A plateia riu quando Coppola disse que não falaria mais nada se o certificado não fosse tirado do palco.
“Cinema é uma arte tão nova que todos nós que fazemos cinema somos um pouco estudantes”, disse modesto o cineasta, retomando o raciocínio. Falou de Megalópolis, mas dedicou a maior parte da palestra a questões mais amplas do fazer cinematográfico. Recomendou aos alunos que escrevam todos os dias sem exceção, já que um bom roteiro é tudo, e que só revisassem os textos ao final do processo. “Escolham um momento do dia para isso. Eu escrevo logo cedo porque de manhã ainda não feriram meus sentimentos.”
Coppola abriu a sessão a perguntas da plateia, o que não estava previsto. Ao responder uma delas, contou que segue um critério simples ao selecionar seus elencos: se o ator grudou na sua cabeça depois do teste, está aprovado. Porque “se grudou na minha cabeça, vai grudar na do público também”, explicou. Disse também que, ao escrever uma história, tenta defini-la em uma palavra-chave, que passa então a servir de filtro para as novas ideias. “Em O Poderoso Chefão a palavra para mim era sucessão. Em A Conversação (1974), era privacidade.”
A palestra durou menos de uma hora. Nos minutos finais, o cineasta recebeu quatro avisos de que era preciso encerrar. Os primeiros vieram de sua equipe, os quais ele ignorou – disse que ele é quem manda nos seus contratados, e não o contrário. O último aviso veio dos funcionários do teatro. Só então Coppola deixou o palco – não sem antes responder uma última pergunta e se curvar à plateia, em agradecimento.
De lá foi direto para o Palácio Iguaçu, sede oficial do governo do Paraná. Ratinho Junior (PSD), o governador, o aguardava em companhia de alguns convidados. “Um almoço estrelado”, celebrou o peessedista no Instagram. Batidos os pratos, Coppola foi conduzido até o Salão Nobre, ambiente decorado com móveis no estilo Luiz XV e Luiz XVIII. Recebeu das mãos do vice-governador Darci Piana (PSD) a Ordem do Pinheiro, medalha concedida a figuras que se destacam em suas profissões e contribuem para a divulgação e o crescimento do Paraná. Fazem parte desse seleto grupo, ao lado de Coppola, o atleta de vôlei Ricardinho, o deputado federal Osmar Terra (MDB-RS) e a ex-deputada federal Joice Hasselmann.
Resistente às formalidades, o cineasta se recusou a sentar na cadeira branca que lhe foi indicada e ocupava posição de destaque no salão. Preferiu uma cadeira verde igual à dos demais convidados. Enquanto Piana rasgava elogios a Coppola, uma versão instrumental de Wave, música de Tom Jobim, preenchia o ambiente, executada por uma banda de policiais militares. O cineasta agradeceu os encômios num discurso ligeiro. “De todas as coisas extraordinárias que aconteceram nos meus 85 anos de vida, nada é mais belo do que visitar um lugar e ver a criatividade brotar de modo que ajude os outros seres humanos”, disse. “E um dos lugares onde vi isso brotar é Curitiba, de um jeito que tenta fazer a vida das pessoas melhorar e esse é o maior objetivo que nós temos.”
Seguiu-se uma rápida coletiva de imprensa, em que a dezena de jornalistas presentes pôde fazer apenas duas perguntas. A primeira: o que em Curitiba havia inspirado seus filmes? “Algo que tomei da Curitiba de Jaime Lerner foi como ele olhava para um problema e descobria que tinha nele mesmo a solução ao usar criatividade”, respondeu. “É algo que o mundo pode aprender: usar algo que já temos de maneira criativa ao invés de embarcar em uma destruição competitiva.” Irritou-se com a segunda pergunta, porque a jornalista disse que Coppola havia descrito Megalópolis como “uma fábula distópica contemporânea”. “Eu chamei de uma fábula. Eu nunca usei a palavra distopia”, retrucou o cineasta. “Vocês jornalistas não devem usar o que outro veículo publicou como sua fonte. Não é confiável.”
Depois tratou de responder. Defendeu que a arquitetura do futuro, tal qual retratada em Megalópolis, seja integrada à natureza e às florestas – que duram mais do que pedra, concreto e aço. “Temos que aprender a colaborar com a vida das plantas e das florestas. Assim podemos controlar as condições dos elementos, do solo e do crescimento. Ter uma arquitetura viva e que cresce.” Terminou a coletiva, Coppola foi embora. A música-tema de O Poderoso Chefão, composta por Nino Rota, fez-se ouvir nos alto-falantes do palácio.
Foi notícia em todo canto que Coppola não vinha a Curitiba desde 2003, mas ele fez uma rápida escala na cidade em 2008, antes da filmagem de Tetro (2009), em Buenos Aires, para visitar Jaime Lerner, e o fez com discrição.
Lerner era engenheiro, arquiteto e urbanista. Foi prefeito de Curitiba por três mandatos não consecutivos, o primeiro deles iniciado em 1971. Elegeu-se governador do Paraná em 1994 e se reelegeu em 1998. Entre seus feitos está a criação do sistema de ônibus expresso, ou BRT, com faixas exclusivas, cobrança externa de tarifa e embarque no nível da plataforma. Está também a filosofia de uma cidade linear. Lerner pregava que Curitiba deveria crescer pelos eixos estruturais – isto é, constituindo corredores que partem do Centro e são ocupados por moradias, lojas e serviços, possibilitando um fácil deslocamento pela cidade.
Também foi na sua gestão que o Jardim Botânico e a Ópera de Arame, cartões postais de Curitiba, foram construídos e inaugurados. O calçadão da Rua XV de Novembro, idem. Lerner proibiu o trânsito de carros naquele trecho e trocou o asfalto por calçamento, criando uma das primeiras vias exclusivas para pedestres em grandes cidades brasileiras. Quando Coppola visitou a cidade em 2003, o ex-prefeito estava afastado da política e se dedicava novamente à arquitetura. Morreu em 2021, por complicações de uma doença renal crônica.
Os dois se tornaram bons amigos. “Uma vez viajei com meu pai para São Francisco, nos Estados Unidos, e tomamos café juntos com o Coppola. Uma outra vez, meu pai foi na casa dele”, lembrou Ilana. O ex-prefeito recebeu, ao longo dos anos, cópias impressas das primeiras versões do roteiro de Megalópolis. Coppola aproveitou a passagem por Curitiba desta vez para autografá-las. “Ele folheou os textos e disse que nem lembrava o que estava escrito. Disse que tiveram umas duzentas versões do roteiro”, contou a filha de Lerner.
Ela ciceroneou Coppola pelos corredores do Instituto Jaime Lerner, no bairro do Juvevê. A entidade, criada pelo ex-prefeito, ainda hoje desenvolve projetos urbanísticos em linha com seu pensamento. Ali, acompanhado de um petit comité, o cineasta se sentiu à vontade. “Foi um lugar para ele relaxar. Sem compromisso, sem imprensa, sem ninguém atrás dele”, disse Ilana. Segundo ela, a ideia era oferecer um happy hour, mas a visita foi muito cedo.
Coppola disse se lembrar da arquitetura das salas do instituto, toda feita de apenas três materiais: concreto, vidro e madeira. Durante a visita, perguntou se os curitibanos ainda pegavam ônibus, se o serviço havia melhorado e qual havia sido o resultado das eleições municipais. “Ele lembrava daqui e de outros lugares, mas acho que queria ter ficado muito mais anônimo na cidade”, concluiu Ilana. “Ele não gosta dessa coisa de homenagem. O que ele queria era rever Curitiba. Fiquei com pena que a gente não pode satisfazê-lo.”
Por volta das cinco da tarde, Cléber de Souza estacionou seu carro próximo à Pamphylia, onde serviu clientes por mais de vinte anos. Entrou no salão carregando a fotografia que revelou em Jaraguá do Sul, mas logo descobriu que Coppola havia cancelado a visita ao restaurante. “Me disseram que ele pediu desculpas, mas teve que cancelar a reserva porque os outros compromissos estavam atrasados”, disse o ex-garçom.
Já que estava em Curitiba, Souza decidiu insistir. Rumou então para o Cine Passeio, único cinema de rua da cidade, inaugurado em 2019 e mantido pela prefeitura. Coppola faria dali a pouco uma aparição na sessão de estreia de Megalópolis, às 18h45. Mais de uma centena de pessoas se espremia nas calçadas estreitas em frente ao cinema, disputando uma chance de espiar o cineasta americano e quiçá obter um autógrafo, um abraço, uma selfie. A Superintendência de Trânsito de Curitiba interditou o fluxo de carros na rua.
Coppola chegou quase uma hora atrasado e desceu do carro já no estacionamento do cinema, frustrando a multidão. Acenou para ela e caminhou até a primeira sala de exibição, reservada para convidados que ganharam ingressos do governo. Fez um discurso de poucos segundos. “É um filme pessoal com um grande orçamento. Então não esperem um Homem-Aranha ou qualquer coisa assim”, brincou o cineasta, provocando algumas risadas. “A emoção não está lá [na tela], a emoção está em você. Então quando você vai assistir um filme, é muito importante que você entre pela porta certa. A porta do filme é bem pequena. É uma fábula. Você pode rir dela, você pode gritar com ela, você pode ficar com raiva dela, você pode chorar, se quiser. Mas você não precisa ficar sério. Eu não fui [sério], mas eu fui.” Coppola se despediu com um “obrigado” em português e “aproveitem o filme”.
Entre os convidados estava a atriz Letícia Sabatella. Coppola a cumprimentou antes de se dirigir à segunda sala do cinema, onde estava reunida a plebe que pagou pelos ingressos. O discurso foi o mesmo. Houvesse tempo, Coppola teria visitado o acervo e as demais salas do Cine Passeio, mas tudo foi feito com pressa para que ele não perdesse o voo de volta para os Estados Unidos naquela mesma noite. “Eu não vou fazer mais nada, quero ir embora”, disse a certa altura o cineasta de 85 anos, aparentando cansaço.
Quando o carro que transportava Coppola estava prestes a deixar o estacionamento, um funcionário do Cine Passeio agarrou um pôster de Megalópolis e o entregou a Marden Machado, curador do cinema, que abordou o cineasta às pressas e conseguiu sua assinatura. “Agora precisamos guardar isso em um cofre”, brincou outro funcionário, depois da correria.
Souza, só mais um na multidão, não conseguiu reencontrar o antigo cliente, com quem pretendia tirar uma nova foto. Mas, graças à habilidade de puxar conversa com qualquer um, produto de seus anos como garçom, se enturmou com outros fãs de Coppola. Conversa vai, conversa vem, ganhou dois ingressos para a segunda sessão, às 22h20. Decidiu ficar para assistir.
As críticas a Megalópolis estão divididas. O Letterboxd, rede social que agrega avaliações e resenhas de filmes feitas por pessoas comuns, registra até agora uma média de 2,4 estrelas de um total de cinco. O Rotten Tomatoes, site que agrega críticas especializadas, marcou 46% de aprovação. O cineasta Eduardo Escorel, na piauí, classificou o filme como “uma extravagância artística e um desastre comercial, mas [que] merece admiração e respeito”.
Souza adorou. “É um filme diferente de todos os filmes que já assisti na vida, inclusive os dele. Ele não acontece na tela, mas dentro da sua cabeça”, disse. “O Coppola sabe de onde vem a humanidade e para onde vai. E ele tentou descrever nesse filme.”
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