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questões cinematográficas

Cosmópolis – o poeta traído

O melhor de Cosmópolis são os créditos iniciais, inclusive por durarem apenas 52 segundos. Projetados pelo designer Justin Stephenson e realizados pelo estúdio Cuppa Coffee Animation, de Toronto, têm também a vantagem de estarem disponíveis na internet, dispensando a ida ao cinema.

| 20 set 2012_10h52
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O melhor de são os créditos iniciais, inclusive por durarem apenas 52 segundos. Projetados pelo designer Justin Stephenson e realizados pelo estúdio Cuppa Coffee Animation, de Toronto, têm também a vantagem de estarem disponíveis na internet em http://vimeo.com/44402332, dispensando a ida ao cinema.

A câmera parece se deslocar da esquerda para a direita sobre uma superfície que passa, em dégradé, de marrom escuro, na parte de cima, para bege, no centro, e vai sendo salpicada de tinta preta e em tons de cinza, à medida que, na metade superior do quadro, os créditos se sucedem, acompanhados pela música de Howard Shore executada pela banda de rock Metric. Sem que se veja os gestos característicos da action painting, mantidos fora de quadro, a composição final, à maneira de Pollock, sugere a representação abstrata de uma cosmópole. Nada muito original, mas bonito, eficaz e breve.

O título, em letras pretas, surge no fim dos créditos de abertura, seguido de um fade-out e, sobre o fundo escuro, em letras brancas, a mesma epígrafe do romance homônimo de Don DeLillo – uma citação de Zbigniew Herbert: “um rato se tornou a unidade monetária”. Só faltou adotar também Relatório da cidade sitiada, que além de ser o livro de Herbert onde DeLillo foi buscar a epígrafe, pode ser considerado a premissa tanto do romance, quanto do filme roteirizado e dirigido por David Cronenberg.

Chamado por Czeslaw Milosz de “poeta da ironia histórica”, Herbert atinge, segundo seu compatriota, “uma espécie de equilíbrio precário atribuindo sentido aos padrões da civilização, apesar dos seus horrores.”

Para outro compatriota e poeta – Adam Zagajewski, a poesia de Herbert é “sobre a dor do século vinte, sobre aceitar a crueldade de uma época desumana, sobre um extraordinário senso da realidade. E o fato que, ao mesmo tempo, o poeta não perde nada do seu lirismo ou do seu senso de humor – esse é o incomensurável segredo de um grande artista”.

Quase dez anos antes de DeLillo, um então jovem cineasta brasileiro já recorrera a Herbert em Dois poemas, de 1992. Outro exemplo da virtude de ser breve – o curta-metragem dura 5 minutos. Começa com um depoimento de Milosz, na sua própria voz: “…imensa riqueza do mundo cria uma sensação de mistério, por que nunca podemos esgotar todas as possibilidades do mundo. Nós sempre escrevemos com um sentimento de insuficiência, tentando alcançar a realidade que constantemente nos escapa”. Na tela, em forma de legendas, esse mesmo texto é reproduzido, ladeando um detalhe animado do afresco Adão e Eva expulsos do Paraíso, de Masaccio – repetido três vezes, o rosto de Eva, de boca aberta, parece lançar um grito desumano.

Seguem-se dois poemas de Herbert na voz de Antonio de Franceschi – Estudo do objeto e O dado de madeira – e esculturas de Sérgio Camargo ao som do lancinante segundo movimento do Trio em mi bemol maior, Opus 100, de Schubert.

De Estudo do objeto há tradução de Rogério Bettoni disponível em http://umbigodascoisas.com/2011/11/18/estudo-do-objeto/: “o mais belo / é o objeto que não existe / ele não serve para carregar água / nem para preservar as cinzas de um herói / não foi acalentado por Antígona / nem nele um rato se afogou / de orifício, nenhum resquício / pois é completamente aberto /visto / de todos os lados, / quase não é / antevisto / os feixes de todas as suas linhas / confluem num jato de luz  / nem / cegueira / nem/  morte / podem roubar o objeto que não existe […]”.

O dado de madeira é intercalado em Estudo do objeto, nome também da coletânea de Herbert na qual foram publicados:

“Um dado de madeira só pode ser descrito por fora. Estamos assim condenados à eterna ignorância de sua essência. Mesmo quando de um golpe é cortado em dois, instantaneamente seu interior se torna uma parede e súbito ocorre a transformação vertiginosa de um mistério em uma pele. Por essa razão, é impossível estabelecer a psicologia para os fundamentos de uma esfera de pedra, de uma barra de ferro, de um cubo de madeira.”

Segue-se a continuação do Estudo do objeto: “marque o lugar / onde repousava o objeto / que não existe / com um quadrado negro / ele será / um simples réquiem / à bela ausência / viril lamento / aprisionado / em um quadrilátero”

“agora / todo espaço / se dilata como um oceano / um furacão fustiga / a vela negra / as asas de uma nevasca giram / em torno do quadrado negro / e a ilha submerge / sob a proliferação salina”

“você possui agora / espaço vazio / mais belo que o objeto / mais belo que o lugar que ele / deixa / é o mundo anterior / um paraíso branco / de todas as possibilidades / você pode entrar nela / gritar / verticais-horizontais / raios perpendiculares / golpeiam o horizonte nu / podemos parar aqui / de toda forma você já criou um mundo”

Quem se interessar pelos primeiros passos do caminho que levaria João Salles a Santiago, encontrará Dois poemas entre os extras do DVD.

Um pequeno conjunto de poemas de Herbert foi publicado na piauí_20, em maio de 2008, com o título A fidelidade das coisas. Na breve apresentação, Joseph Brosky diz que por não oferecer a seus leitores “concessões estéticas nem éticas, esse poeta os salva da pobreza que serve tão bem a todas as formas de mal”.  Em pelo menos dois desses poemas – Abandonado e Despertando – há ecos de uma cidade “que não é uma cidade / sem matutinos / sem vespertinos”, com “avenidas de prédios queimados”, tomada pelo “lixo-lodo”, temas que é possível vislumbrar em Cosmópolis.

A quarta estrofe de Apollo e Marsias, por sua vez, um dos 79 poemas de Herbert publicado em Collected Poems, escolhidos e traduzidos por Czeslaw Milosz e Peter Dale Scott, terminava na edição original com três as seguidos (“Aaa”), o primeiro maiúsculo e os seguintes minúsculos. Segundo Alissa Valles, editora e tradutora da nova edição dos Collected Poems (Harper-Collins e-books, 2006), porém, “apesar desse poema ser ‘composto’ em torno a um grito de dor, Herbert não o pronuncia explicitamente no poema, mas aponta para ele e o retrata numa série de metamorfoses – uma paisagem, um coro, um rouxinol petrificado”.  Traduzir o “A” final para “Aaa”, como fizeram Milosz e Scott na edição original, seria eliminar “ambiguidades vívidas no poema […]”.

Podemos concluir, por um lado, que para a poesia de Herbert, a diferença entre três as (“Aaa”) e um a (“a”) é uma diferença que faz diferença. E, de outro, que entre Herbert, DeLillo e Cronenberg há um abismo intransponível. A apropriação truncada da epígrafe, no romance e no filme, parece portanto indevida. Os versos completos são: “Segunda-feira: lojas estão vazias um rato é / agora a unidade monetária […]”.

De fato, o que sobrevive de Herbert em DeLillo é o menos importante – algumas imagens e temas que Cronenberg, na adaptação para o cinema, além de acentuar, banalizou ainda mais.

O corte feito na epígrafe não é gratuito. E indica a contradição que afeta o romance e vulgariza o filme. O que atrai DeLillo é a imagem explícita da degradação da moeda e do mundo – ratos, transformados em unidade monetária, em arma por dois jovens manifestantes numa lanchonete e em fantasia numa demonstração de protesto.

Ratos vivos, seguros pelo rabo, as patas da frente pedalando, sendo girados sobre a cabeça e gritos de “alguma coisa sobre um espectro”. Atirados, os animais batem, ricocheteiam e correm pelas paredes esganiçando, “e os homens correm também, levando com eles para a rua o grito deles, o slogan ou aviso ou mantra”.

A prosa fluida e detalhista de DeLillo, permeada por um realismo grotesco, é movida, como escreveu John Updike, por “conceitos que seus personagens declamam uns para os outros em forma de ensaios espertos e rápidos”. Personagens que, na formulação de James Wood, são “recipientes para transportar teorias”.

DeLillo sente necessidade de justificar sua epígrafe, mais um traço que o afasta de Herbert. Para isso faz do trilhardário administrador de ativos financeiros Eric Packer, de 28 anos, colecionador compulsivo de pintura abstrata, e apreciador dos efeitos tranquilizadores de Satie, um improvável leitor de poesia nas noites de insônia que passa no quarto rotativo do seu triplex de 48 quartos, na mais alta torre residencial do mundo.

Dessa maneira, DeLillo acredita tornar verossímil que em um dia de abril, do ano 2000, durante a travessia da cidade na limousine branca com piso em mármore de Carrara, a caminho do barbeiro, ao conversar com seu analista de investimentos, Michael Chin, garoto de 22 anos graduado em economia e matemática – que o aconselha a se desfazer das suas aplicações em yens, Eric mencione o poema em que “um rato se torna a unidade monetária”, e os dois imaginem como seria interessante o impacto que o nome causaria, passando a delirar com a queda do rato em relação ao euro, a desvalorização do rato russo, ratos brancos, ratos grávidos, a liquidação de ratos russos grávidos, a conversão para o rato da Grã-Bretanha, o padrão rato estabelecido pelos Estados Unidos, a conversibilidade do dólar em rato, ratos mortos, o estoque de ratos mortos considerado ameaça global à saúde.

Ao adaptar Cosmópolis, Cronenberg apenas acentua o que DeLillo tem de pior, sem fazer nenhuma contribuição para atenuar o desastre.

Omite referências à data e cidade em que a ação se passa, pretendendo talvez evitar que a situação narrada pareça circunstancial. E substitui a moeda que arruina Eric Packer, trocando o yen pelo yuan, com a intenção aparente de sintonizar o filme com o poderio atual da China.  

Fora isso, Cronenberg cria um universo paralelo, habitado por robôs que recitam enunciados vazios.

Voltemos à epígrafe truncada de Herbert – busca de status cultural típica do chamado cinema independente. Pretendendo situar Cosmópolis acima do comercialismo dominante, o que Cronenberg faz é iludir o espectador e trair o poeta

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