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    Ilustração: Carvall

questões de segurança

Cresce força de PMs na política

Entre profissionais da segurança pública que se candidataram, proporção de eleitos triplicou de 2010 a 2018

Renato Sérgio de Lima e Samira Bueno | 19 out 2020_14h25
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O Fórum Brasileiro de Segurança Pública acaba de divulgar a 14ª. edição de seu anuário, e nele há uma informação que ajuda na compreensão da força das polícias e dos militares na política brasileira. Segundo dados compilados no relatório, extraídos da Receita Federal, do TSE e do IBGE, policiais e membros das forças armadas, ativos e inativos, totalizavam 5.605.466 pessoas, ou 3,8% do eleitorado nacional em 2018.

Esse número, já alto, torna-se maior considerando que esses profissionais são casados, têm filhos e outros parentes, e que o tamanho médio da família brasileira é de 3,3 pessoas. Ou seja, potencialmente, cerca de 18,5 milhões de pessoas estariam diretamente ligadas às famílias policiais e militares.

Assim, quase 9% da população brasileira está diretamente associada às agendas e aos temas que, desde 1988, foram sendo negligenciados por governos e pelas políticas públicas. Nos últimos anos, integrantes desse grupo têm buscado eles próprios assumirem posição de destaque no processo decisório nacional, ocupando cargos eletivos nas Câmaras Municipais e Assembleias, e, mais recentemente, até como chefes do Executivo.

Não à toa, entre 2010 e 2020, ao menos 25.452 policiais e membros das Forças Armadas candidataram-se a cargos de natureza eletiva no Brasil, o que corresponde a 1,6% do total de candidaturas do país no mesmo período. Desses, 1.860 se elegeram até 2018. Um exemplo do que isso significa é a deputada federal Kátia Sastre, cabo da Polícia Militar de São Paulo, que foi eleita em 2018 com mais de 264 mil votos após a grande repercussão do episódio no qual ela matou um assaltante na frente da escola da filha, na Grande São Paulo.

Mas outros fatores parecem explicar essa avalanche de policiais na política. Por um lado, o crescimento vertiginoso da violência nas últimas décadas alçou o tema às prioridades do debate público. O medo de ser vítima de um crime, a dor de ter a vida de alguém próximo interrompida pela violência e a sensação de impunidade que reina em tantos casos parecem impulsionar as candidaturas daqueles que dedicam a vida ao dia a dia da segurança pública.

Porém, os dados divulgados pela 14ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública revelam outro aspecto, menos debatido, desse cenário. É possível supor que os 25.452 candidatos tenham na grande quantidade de integrantes de suas carreiras a sua principal base eleitoral. Até aqui as análises políticas focavam mais no efeito da ação das polícias na opinião pública e acabaram por enfraquecer os olhares que contemplam o policial como sujeito político e não apenas como operador dos interesses alheios.

E é evidente que tanto as associações policiais como os partidos políticos perceberam o potencial de voto da família policial e passaram a incentivar a migração desses profissionais para a política. Até porque, ao contrário dos integrantes do Ministério Público ou do Poder Judiciário que precisam renunciar a suas carreiras caso queiram se candidatar, a legislação brasileira permite que policiais disputem eleições sem a necessidade de saírem de suas carreiras nas polícias ou que estejam sujeitos a regras de transição.

A autorização para militares das Forças Armadas ou das Polícias Militares com mais de dez anos de serviço concorrerem às eleições, sem precisar renunciar ao posto militar, está prevista na Constituição de 1988. Só devem renunciar se forem eleitos, entrando automaticamente para a reserva.

Já os militares com até dez anos de serviço precisam se afastar permanentemente do posto antes de se candidatarem, o que difere substancialmente das regras de outros países, tais como Chile, Estados Unidos, França, Inglaterra e Portugal, que têm regras para impedir candidaturas de militares ou policiais como mecanismo de conter a politização das polícias.

Assim, é inegável constatar que, diante de um grande segmento da população associado ao cotidiano dos policiais e dos militares, bem como da inexistência de grandes barreiras às candidaturas policiais, há crescimento da proporção de representantes da segurança pública eleitos nas últimas eleições. Em termos eleitorais, cerca de 8% dos profissionais da segurança pública que se candidataram nas eleições de 2018 foram eleitos, percentual três vezes superior ao registrado no pleito de 2010. Em 2016, ano de pleito municipal, o percentual foi ainda maior, com 11,8% dos candidatos policiais eleitos.

O que os dados do TSE sugerem, contudo, é que, associado ao peso das famílias policiais e militares, o crescimento do fenômeno dos policiais na política precisa ser matizado pelos múltiplos movimentos do campo. Um desses movimentos é o sucesso de uma narrativa que tem conseguido resumir a política à guerra contra o mal, na qual os policiais são vistos como os guerreiros que irão repor a ordem, a moral e os bons costumes. E, de forma adicional, guerreiros injustiçados e desvalorizados pelos “governos de esquerda”, “que só se preocupam com o direito dos bandidos”. 

Isso faz com que os integrantes de organizações policiais/militares tendam, em sua maioria, a se identificar com posições mais conservadoras da sociedade. Ao agregarmos as agremiações partidárias em que policiais concorreram nas eleições ocorridas entre 2010 e 2018 nas categorias esquerda, centro-esquerda, centro-direita e direita, veremos que, em média, 81,8% dos profissionais das forças de segurança do país que concorreram durante as eleições entre 2010 e 2020 o fizeram por partidos de direita e centro-direita, tradicionalmente mais vinculados às bandeiras conservadoras da sociedade. Em 2018, 89,9% destes profissionais concorreram por partidos à direita do espectro político.

 

 

Agora, considerando as candidaturas de 2020, há uma mudança digna de destaque. Se, em 2018, houve uma explosão de candidaturas por partidos de direita, neste pleito há o crescimento de candidaturas de centro-direita, o que pode ser lido como a volta do protagonismo do Centrão. E a escolha do desembargador Kassio Nunes Marques para o Supremo Tribunal Federal pelo presidente Jair Bolsonaro seria mais uma evidência da volta desse protagonismo. Ao que tudo indica, os policiais candidatos parecem se realinhar à lógica da realpolitik conservadora vigente até 2016.

Diante de todos esses elementos, mesmo que, na prática, Jair Bolsonaro não esteja fazendo um governo que consiga contemplar as demandas de reforma feitas pelos policiais brasileiros, é importante constatar que ele ainda é visto como o político que mais ouve e compreende as famílias policiais e militares brasileiras. São as expectativas dessas famílias que ajudam a dar sustentação ao discurso de ultradireita estruturado na promessa de ordem, criminalização da esquerda/movimentos sociais e de conservadorismo nos costumes. 

Mas um ponto relevante de análise é que a incorporação desses atores no cenário político não parece ocorrer de forma orgânica. Pelo contrário, ela ocorre por um processo oportunista dos partidos políticos, que notaram o potencial de voto das famílias policiais e militares, o que se aplica às siglas de direita e de esquerda. Neste último caso, ainda temos o agravante de que os partidos de esquerda e centro-esquerda não perceberam que não adianta emular o discurso e incentivar o mesmo discurso de ordem da direita para tentar cooptar alguns policiais para seus projetos.

Em suma, uma reforma da área que se pretenda efetiva precisa estabelecer divisas mais explícitas entre polícia e política e, sobretudo, nos pressiona a focar menos no policial e mais nos padrões operacionais e na arquitetura legal que lhes dão suporte. Só assim poderemos falar de condições de vida e trabalho de modo conectado aos padrões operacionais e estruturas existentes. Até lá, é sempre bom lembrar que os episódios recentes da Alemanha e da França, países que detectaram e agiram para conter movimentos extremistas formados por policiais e ex-policiais, mostram a importância estratégica de se cobrar controles democráticos daqueles que representam a face mais forte do Estado.

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 Nota metodológica: Siglas que mudaram de nome estão duplicadas para manter a nomenclatura de cada pleito. Foram considerados de esquerda PC do B, PCB, PSOL, PSTU e PT; de centro-esquerda, PDT, PSB, PV e Rede; de centro DEM, MDB, PP/Progressistas, PPS/Cidadania, PSD E PSDB; de centro-direita Avante, DC, Novo, PATRI, Patriota, PEN, PHS, PL, PMB, PMN, PODE, PPL, PR, PRB, PROS, PRP, PRP, PRTB, PSC, PSDC, PSL, PTdoB, PTB, PTC, PTN, Republicanos, Solidariedade.

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