O Cristo Redentor em um dia de sol: 2 milhões de visitantes anuais Imagem: Vitor Marigo/deposiphotos
Duelo aos pés do Cristo
Uma acusação de intolerância religiosa, o xixi de Oprah e outros vultos na disputa entre a igreja católica e o ICMBio pelo controle do cartão-postal carioca
Mesmo com a neblina e com a possibilidade de chuva, os turistas não paravam de subir ao alto do Morro do Corcovado, na manhã da última sexta-feira, dia 18 de outubro. Antes das 8 horas, centenas de pessoas já se espremiam na área de concreto fixada no topo da montanha para apreciar de perto o monumento do Cristo Redentor, que completara 93 anos dias antes. Com a névoa, não se via nada da cidade do Rio de Janeiro lá embaixo e mal se enxergava a cabeça do Cristo lá em cima. Mas isso também não evitou os clichês turísticos: gritos de “abriu” eram a deixa para as pessoas correrem para tirar suas selfies e gravar vídeos, quando a neblina permitia ver a estátua por completo. As poses para fotos com braços abertos dominavam o cenário. Feito o registro, os visitantes divertiam-se com a indecisão acerca de qual dos clássicos de Tom Jobim iria compor o story do Instagram: Corcovado ou Samba do Avião.
O monumento quase centenário é uma das primeiras grandes obras de Getúlio Vargas, um ano depois do golpe que o levou ao poder em 1930. “Christo reina, impera e livrará o Brasil de todos os males”, dizia a capa da segunda edição do jornal O Globo na data da inauguração da estátua em 12 de outubro de 1931. À parte o livramento de “todos os males”, a manchete acertou ao prever a importância e o reinado do monumento, principal cartão-postal do país, com mais de 2 milhões de visitantes a cada ano.
Há um outro elemento, este menos visível, pairando sobre o monumento: uma disputa para decidir quem manda no platô – a área de concreto no topo do Corcovado que inclui o monumento e a estrutura ao seu redor. A Mitra Arquiepiscopal do Rio de Janeiro quer assumir sozinha a gestão, atualmente feita em parceria com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, o ICMBio, órgão do governo federal que tem a palavra final sobre a área. Hoje, a igreja precisa pedir a bênção da instituição para as decisões mais cotidianas. Quer ter mais liberdade para promover eventos de marcas, cerimônias de casamento e ações de marketing, e assim aumentar o faturamento para aprimorar a estrutura turística do espaço.
Há dois projetos de lei no Congresso Nacional, um na Câmara e um no Senado, que defendem que a área do Alto do Corcovado (o pico do morro) seja excluído da área do Parque Nacional Da Tijuca, atualmente administrado pelo ICMBio, que perderia então a ascensão sobre o Cristo.
A ideia tem a discordância do Conselho Consultivo do Parque Nacional da Tijuca (CCPNT), composto por órgãos governamentais, instituições de ensino, e outras associações de cunho ambiental e social. No dia 17 de outubro, o órgão publicou duas notas de repúdio para cada projeto de lei, alegando que os projetos ferem “a ordem constitucional, o princípio da supremacia do interesse público e a gestão responsável do patrimônio natural e cultural brasileiro, além de apresentar graves riscos à utilização pública e republicana do Corcovado, símbolo nacional”.
A nota diz ainda que a Mitra não dispõe de qualificação técnica para gerir áreas de conservação ambiental nem para conduzir fluxos turísticos de grande porte. “Ceder território protegido a uma entidade privada, mesmo que esta possua vínculos religiosos, não se justifica à luz da supremacia do interesse público, sendo ainda mais alarmante quando a entidade em questão carece de expertise em gestão ambiental e turística”, afirma o texto.
A Mitra integrava o conselho até o dia anterior à nota, quando enviou um ofício anunciando seu desligamento do grupo. A Arquidiocese alega que sofreu ataques de intolerância religiosa nas últimas reuniões do conselho. “Nossos representantes foram alvo de ofensas infundadas, permeadas por um discurso de ódio e intolerância, que tentaram, de forma desrespeitosa, reduzir a Igreja Católica a uma mera entidade comercial, desconsiderando sua natureza e missão espiritual e social”, diz um trecho da carta, obtida pela piauí. A Mitra afirma que está recolhendo provas para entrar na justiça contra os membros que considera agressores.
O pleito da igreja alinha PT e PL em Brasília. Na Câmara, o projeto de lei 3208/2024 é de autoria do deputado federal Washington Quaquá (PT/RJ) e foi publicado em agosto. No Senado, o projeto de lei 3490/2024 tem como relator o senador fluminense Carlos Portinho, do PL, e chegou em setembro. Ambos se baseiam em dois argumentos principais: dizem que a Mitra não tem livre acesso ao santuário do Cristo por burocracias impostas pelo Instituto e que há falta de manutenção e modernização nas estruturas do ponto turístico. “A título de exemplo, equipamentos estão obsoletos e degradados, e o local não possui acessibilidade adequada a pessoas com deficiência. As escadas rolantes que dão acesso ao monumento chegaram a ficar inoperantes por três meses. Por três anos, o local ficou sem banheiros”, justifica o texto assinado por Portinho. Os sanitários ficaram fechados de 2019 até 2022.
“É humilhante para um cadeirante chegar aqui”, diz à piauí Claudine Milione, diretora jurídica da Arquidiocese do Rio de Janeiro, apontando para a escada rolante que dá acesso à parte mais elevada do monumento. “Todas as obras aqui em cima, esse elevador, as escadas rolantes, tudo foi a Mitra que fez”, conta Milione. Em outubro de 2022, o escritório de arquitetura Prochnik Arquitetura, contratado pelo ICMBio, relembrou no seu Instagram o “Projeto de Revitalização do Corcovado”, que contempla toda área no topo da montanha, ao redor do monumento. Um dos projetos foi executado em 2018 e teve apoio do BNDES, aprovado pelo IRPH, Iphan e ICMBio. A Mitra alega que não foi consultada à época. O vídeo da publicação na rede social mostra um projeto elaborado em 2010, mais ousado e suntuoso, com estruturas envidraçadas e modernas, e que contava com a parceria da Fundação Roberto Marinho, mas não saiu do papel. A legenda diz se tratar de “um projeto muito complexo em função da topografia, das questões ambientais e do patrimônio”.
O fato é que o serviço aos turistas está bem aquém da importância do Cristo Redentor. O único banheiro fica localizado em um canto em frente a duas caçambas de lixo. Até o ano passado, não havia opção para os visitantes beberem água. Depois do episódio em que a fã de Taylor Swift morreu devido ao calor durante o primeiro show da cantora na turnê pela cidade, a Mitra decidiu colocar uma máquina que vende água de caixinha. Além disso, há um filtro dentro da sede administrativa da Mitra (onde funcionava o antigo restaurante) para os peregrinos e os turistas que pedirem para matar a sede.
“É uma vergonha esse banheiro aqui. A gente tá falando do ponto turístico mais importante do país. Um dos mais procurados do mundo”, diz Carlos Lins, head de marketing do Santuário Cristo Redentor. Ele lembra de quando teve que levar, envergonhado, celebridades famosas para usufruir do local. “Eu tive que levar a Oprah [Winfrey] para usar esse banheiro”, lamenta. Em outras ocasiões, ele também conduziu Shawn Mendes e Bruno Mars para a experiência pouco agradável.
A diretora jurídica da Arquidiocese argumenta que, sem a igreja, tudo seria pior. Ela recorda que nos anos 1970 o espaço era repleto de vendedores ambulantes, que deixavam a circulação caótica. “Era como se fosse uma grande feira hippie aqui dentro. Aí Dom Eugênio, que era o cardeal, mandou construir essas lojinhas oficiais aqui no santuário. Todas essas instalações aqui dentro foi a igreja que colocou”, diz. “Como o ingresso é praticamente todo pro parque, a gente tem que pegar patrocínio para fazer alguns reparos e nada mais justo do que a gente conseguir mais parcerias.” O espaço onde funcionava o restaurante foi fechado na época da pandemia da Covid-19. No ano passado, a Mitra transformou o local numa pequena capela e em salas para o administrativo do santuário.
“É a privatização do espaço público”, queixa-se um profissional do ICMBio que preferiu não se identificar. Ele explica que essa ação configura um processo de desafetação, que ocorre quando uma área pública é alterada de destinatário. Comparou os projetos de lei que tramitam no Congresso com as propostas de PEC das Praias, de maio deste ano, que tornava legal o bloqueio do acesso a praias do país. “Eu acho que tem dois problemas principais: a monetização do espaço público e a abertura de precedentes. O Parque Nacional da Tijuca é conhecido por outras manifestações religiosas, que também vão ter o direito de exigir da gente um espaço para realizar suas expressões de fé”, explica à piauí. “A Mitra é poderosa. Ela afronta a gente por saber que o poder dela é muito maior que o nosso. Mas hoje quem manda lá em cima é o ICMBio”, conta.
Uma das reclamações dos ambientalistas, que também afeta os moradores do Cosme Velho, bairro localizado na subida para o Corcovado, é sobre as festas privadas que são realizadas no santuário e o fluxo de subida e descida que podem varar a madrugada. Um dos eventos mais recentes foi a renovação de votos do cantor Michel Teló e da atriz Thaís Fersoza, em 14 de outubro, uma segunda-feira. “O Michel Teló mandou um e-mail ao ICMBio pedindo a interdição da área. Ele falou que pagava o necessário, que comprava todos os ingressos, para que o parque fechasse às três da tarde. E ela negou, disse que é um espaço público e não pode impedir ninguém de entrar”, disse o profissional do ICMBio. A assessoria de imprensa do artista não comentou a informação.
A celebração foi realizada à noite, quando o santuário já estava fechado para a visitação do público e portanto não infringiu as regras de utilização da área. A solicitação, porém, não fazia sentido, já que não existe cobrança de ingresso para acessar a área do Cristo. Os custos são do transporte até o topo do morro, pelo Trem do Corcovado ou as Vans das Paineiras, ambos serviços concedidos pelo ICMBio. A exceção é aquele que deseja subir a pé ou de bicicleta: caso queira acessar o santuário é cobrada uma taxa de 55 reais, prática da qual a Mitra discorda. “Dá a impressão de que a gente está cobrando pra eles entrarem no Santuário, o que não é verdade. Essa é uma taxa do Parque”, diz Milione.
O ICMBio argumenta ainda que a restrição de uso do espaço por interesses privados é importante para evitar danos à paisagem cultural do Parque Nacional da Tijuca. “Com frequência os eventos instalam tendas coloridas e descaracterizam o Alto Corcovado para contratos de propaganda e marketing”, diz o Instituto em uma nota técnica. Como exemplo, listou eventos como a ação de marketing da RedBull e o show do cantor Gilberto Gil, que consideram prejudiciais à natureza “pela altura do som e do massivo trânsito de veículos em estradas internas”.
No ano passado, o ICMBio recolheu 66,8 milhões de reais em passagens nos transportes. As concessionárias somaram uma receita operacional bruta de 128,9 milhões de reais. Logo quando assumiu a gestão do Parque Nacional e por consequência o Corcovado, em 2007, uma das primeiras medidas do ICMBio foi controlar o acesso de quem subia no Cristo Redentor, que antes ocorria de maneira desordenada e abria brechas para esquemas de transporte fraudulentos. Foi quando surgiram as concessões do transporte, do Trem do Corcovado e as vans oficiais do Consórcio Paineiras Corcovado. A Mitra fez um acordo com as concessionárias para receber um valor de 1 dólar (5,69 reais, no fechamento de ontem) para cada bilhete vendido por bilhete de transporte, tanto da van quanto do trem.
Uma das contrapartidas pela exploração do serviço é o compromisso com a manutenção e otimização da infraestrutura do monumento, como banheiros, elevadores e escadas, como mostra a cláusula contratual: “Caberá ao concessionário toda a manutenção da sua área de atuação, incluindo a limpeza, manutenção de áreas verdes, instalações elétricas, hidráulicas, de logística e físicas; deverá arcar com os custos de limpeza e conservação, manutenção de áreas verdes, manutenção de gradis, instalação e manutenção de lixeiras e demais; operação e manutenção das escadas rolantes, elevadores e equipamentos no Alto do Corcovado.”
Com o controle dos transportes, a própria igreja precisou se enquadrar nos protocolos de acesso ao santuário e precisa enviar um ofício ao ICMBio sempre que quiserem subir ao espaço para qualquer evento. “A gente concordou com isso, mas foi escalonado a um outro patamar, a ponto de barrarem o Padre Omar [Raposo, reitor do Santuário Cristo Redentor, que chegava para um batizado]”, lembra Rodrigo Souza, advogado do Santuário Arquidiocesano Cristo Redentor. Esse episódio foi o estopim para o azedamento definitivo da relação entre a Igreja e ICMBio, que “foi deixando de ser uma parceira”, na visão de Souza. “Os caras vacilaram”, disse o padre Omar à piauí, ao pé do monumento, referindo-se ao episódio que ocorreu no dia 11 de setembro de 2021. “Pediram para revistar minha bolsa e barraram a van que levava as famílias [da criança a ser batizada]”, relembra.
Ele explica que um pilar do santuário é misturar o cultual ao cultural, ou seja, ações de cunho religioso e outras ações culturais e sociais. Todo dia tem algum projeto social ou evento no Santuário ou em sua sede da governança socioambiental, localizada em um prédio no Jardim Botânico, Zona Sul do Rio. Naquela sexta-feira enevoada, aos pés da estátua estava instalado um tatame de jiu-jítsu, para a apresentação do “Jiu-Jítsu Para Todos Maricá”, um projeto social do município fluminense, que se preparava para uma viagem a Abu Dhabi e foi receber as bênçãos do padre e do público. “O G20 tá chegando e todo mundo vai vir aqui. A grande foto com os chefes de estado vai ser aqui”, diz o padre.
Com o episódio de 2021, foi firmado um acordo de convivência no ano seguinte entre a Mitra Arquiepiscopal do Rio de Janeiro e o ICMBio na gestão do Parque Nacional da Tijuca e do Santuário Cristo Redentor. O documento foi assinado pelo então ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, e pelo arcebispo metropolitano do Rio de Janeiro, Dom Orani João Tempesta. Depois do acordo, não houve mais divergências quanto ao acesso ao santuário.
Com a chegada do Padre Omar à reitoria do espaço, os eventos de batizado e casamento no Cristo se tornaram mais populares. Só neste ano, até setembro, foram realizados 729 batizados e 81 casamentos no Santuário. Sem contar as missas e outros eventos realizados no monumento.
A piauí conversou com o deputado estadual pelo PSB, Carlos Minc, que foi por dois anos ministro do Meio Ambiente, no segundo mandato do governo Lula, de maio de 2008 a março de 2010. Para ele, o Parque Nacional é um espaço que pertence a todos os brasileiros e não deve ser concedido a uma instituição privada. “Uma igreja não é o poder público. É privado, é das pessoas daquela religião, que claro devem ser respeitadas, mas o Parque Nacional é um espaço público”, diz.
Minc lembra da importância do valor da arrecadação do ICMBbio com as visitações do Cristo Redentor para ajudar financeiramente outras unidades de conservação que não recebem visitação, e portanto tem menos recursos para se sustentar e ajudar. “Há um prejuízo prático que várias Unidades de Conservação vão ter, pois elas dependem da arrecadação que vem do Corcovado. É um momento em que a gente tem que aumentar a proteção delas e não reduzir.”
A Mitra contra-argumenta que, assumindo a gestão do Santuário, em nada mudaria a dinâmica de transportes e das concessionárias do ICMBio, que continuariam recebendo o valor dos ingressos.
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