Na última sexta-feira, 8 de maio, Luana de Santana saiu de casa às seis da manhã para trabalhar. Ela é educadora em um abrigo para crianças e adolescentes em São Mateus, distrito vizinho a São Rafael, onde mora – ambos são parte da periferia Leste da cidade de São Paulo. Luana não pode fazer home office, pois seu trabalho, além de essencial, é presencial – ela tem de ir até o abrigo, cuidar da higiene e das atividades das crianças e auxiliar na organização da casa. Naquela manhã, Luana não conseguiu carona e precisou esperar por um ônibus que em vinte minutos a deixaria no trabalho. O ônibus veio lotado. Tão lotado que ela precisou entrar pela porta de trás do veículo. A única coisa que fazia Luana lembrar que a cidade estava em quarentena por causa da epidemia de Covid-19 eram as máscaras que ela e os outros passageiros usavam no rosto. Fora isso, do transporte cheio às lojas abertas, tudo parecia normal. Naquele dia (8), o índice de isolamento na cidade de São Paulo foi de 46% – o menor desde que as medidas de distanciamento começaram a ser implementadas, no dia 24 de março. Com a implementação nesta segunda-feira (11) do rodízio de veículos mais restritivo na cidade,a lotação dos transportes públicos tende a piorar.
Luana trabalha doze horas por dia, em dias intercalados. “No começo da quarentena as ruas estavam mais vazias”, conta Luana. Agora, ela observa pontos de ônibus cada vez mais cheios, lojas de roupas e móveis abertas e bares lotados. “As pessoas estão anestesiadas”, explica. Isso acontece justamente em um momento crítico para a periferia. No final de abril, dos dez distritos com maior taxa de mortes por Covid-19 a cada 100 mil habitantes, cinco eram na Zona Leste. Na última semana do mês, a taxa de morte que mais acelerou foi a do distrito de São Rafael – o crescimento chegou a 7% por dia. Na semana anterior, era um crescimento de 1% por dia. No último dia 30, São Rafael tinha 15,7 mortes por Covid-19 a cada 100 mil habitantes. Um mês antes, no dia 28 de março, a prefeitura notificou as duas primeiras mortes do distrito. Nesse curto período de tempo, a taxa de mortes por 100 mil habitantes já ultrapassou as de homicídios e acidentes de trânsito de todo o ano de 2017, somadas. Apesar de não ter um número muito alto de casos – o que pode esconder uma realidade muito pior graças à subnotificação e à falta de testes – o ritmo de crescimento das mortes na região de São Rafael é preocupante, principalmente quando se leva em conta a infraestrutura de saúde local.
Com cerca de 160 mil habitantes, São Rafael é um distrito de classe média e média baixa. As construções são majoritariamente horizontais, com casas contíguas e ruas sinuosas. A população é equivalente à de São Caetano do Sul, município da região metropolitana de São Paulo, a cerca de 11 km de São Rafael. Enquanto São Rafael não tem sequer um hospital no distrito, São Caetano tem sete, e um foi transformado em hospital de campanha para tratar exclusivamente pacientes de Covid-19. No dia 23 de abril, São Rafael tinha 86 casos da doença, entre confirmados e suspeitos. São Caetano tinha 612. Uma semana depois, no dia 30, São Rafael tinha 25 mortes e São Caetano, 23. Ou seja, mesmo com menos casos de Covid-19, o número de óbitos no distrito da Zona Leste já era maior. As últimas informações das mortes em cada distrito são do dia 30 de abril e foram fornecidas pela Prefeitura de São Paulo. A assessoria da prefeitura informou à piauí que não tem dados atualizados e não publicará mais boletins semanais – que, diferentemente dos boletins diários, mostram os casos e mortes separados por distrito. A partir de agora, esse tipo de informação só estará disponível a cada duas semanas.
Até o dia 30 de abril, São Mateus, onde Luana trabalha, era o terceiro distrito com maior número absoluto de mortes, 72. Ficou atrás somente de Brasilândia, com 103, e Sapopemba, região próxima à São Rafael que já tinha 101 mortes. O ritmo da doença é diferente na periferia, e a doença é mais letal nas regiões mais pobres – embora ainda não seja possível afirmar que as regiões mais ricas já atravessaram totalmente a crise. O Alto de Pinheiros, distrito de classe média alta da Zona Oeste, tinha, até o dia 30, a sexta maior taxa de mortes por 100 mil habitantes da cidade, 48,8. Isso é quase sete vezes a taxa de homicídios e acidentes de trânsito de todo o ano de 2017 somadas. E nada garante que os bairros vizinhos estejam imunes a uma segunda onda de contágio e mortes.
Até ontem, dia 11 de maio, a cidade de São Paulo concentrava 28.089 casos e 2.305 óbitos, segundo o boletim diário da prefeitura. As UTIs estão com uma taxa de ocupação de 82%. Segundo os dados fornecidos pela assessoria da Secretaria de Saúde, o hospital de campanha do Pacaembu já está com 71% dos leitos ocupados. O hospital de campanha do Anhembi está com 30%.
Na semana passada, Luana ficou sabendo pelo Facebook de mais uma morte no seu bairro – por enquanto, só conhecidos distantes adoeceram. “Mas eu sempre espero o pior”, conta. Para ela, as coisas não vão melhorar tão cedo. Como precisa sair de casa e, consequentemente, se expõe à contaminação, ela deixa a filha de 4 anos na casa da mãe, em quarentena. Na sua quebrada, Luana diz não ver medidas de apoio à população por parte do poder público. “Parece que dificultam de propósito”, desabafa. A única campanha de conscientização é feita nos postos de saúde, com cartazes e orientações. Segundo Luana, são movimentos praticamente imperceptíveis. As pessoas que precisam de alguma renda para sobreviver continuam a sair de casa. Mas às vezes também saem sem necessidade. Ao voltar do trabalho na última sexta-feira, o vizinho estava dando uma festa. Luana contou cerca de quinze pessoas reunidas. “Aqui na periferia as pessoas já estão acostumadas com essas tragédias”, diz. “Isso já não afeta mais.”