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questões cinematográficas

De menor nas telas

Foi preciso esperar 10 meses para De menor, dirigido por Caru Alvez de Souza, chegar às telas do circuito comercial. Isso, depois de ter sido premiado, em 2013, como melhor filme de ficção do Festival do Rio, ex aequo com O lobo atrás da porta, de Fernando Coimbra, e da atriz Rita Batata ter recebido prêmios em dois festivais, um deles no exterior.

| 01 set 2014_14h43
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Foi preciso esperar 10 meses para , dirigido por Caru Alvez de Souza, chegar às telas do circuito comercial. Isso, depois de ter sido premiado, em 2013, como melhor filme de ficção do Festival do Rio, ex aequo com O lobo atrás da porta, de Fernando Coimbra, e da atriz Rita Batata ter recebido prêmios em dois festivais, um deles no exterior.

À parte suas credenciais, cujo valor não deve ser superestimado, a demora do lançamento de De menor é sintomática da distorção do mercado exibidor brasileiro, incapaz de acolher como merecem produções cujo propósito não é fazer estardalhaço. É o caso do filme de Caru Alvez de Souza que estreia na próxima quinta-feira, 4 de setembro – rara demonstração de sensibilidade e talento que se situa entre o que tem sido produzido de melhor entre nós nos últimos anos.

Já comentado neste blog no ano passado, ao rever o filme agora, além de confirmar a primeira impressão, o fundamento da sua qualidade parece repousar na singular estrutura dramática do roteiro, escrito por Fabio Meira e Caru Alvez de Souza a partir de argumento da diretora, e na excepcional harmonia entre encenação, câmera e interpretações, com destaque para a atriz Rita Batata.

Conforme escrito no post anterior, o tratamento realista dado à experiência de vida de uma defensora pública de menores infratores no Fórum de Santos é a base concreta que “serve de suporte para uma sensível transfiguração ficcional narrada em tom menor – combinação rara no cinema brasileiro. Retratando um mundo em ruína, sem perda da contundência, evita com grande habilidade transformar a tragédia social em espetáculo.”

A primeira imagem do prólogo é de dois pés femininos descalços, com unhas pintadas de bordô, sobre areia escura. Feito com a câmera na mão, o plano único, sem cortes, dura cerca de 1’24”. Quando a água invade a cena, cobrindo os pés, a câmera é movimentada. O ponto de vista subjetivo inicial passa a ser objetivo ao enquadrar uma mulher de costas, com seus cabelos castanhos compridos em primeiro plano, diante do mar, onde há um cargueiro na linha do horizonte. A câmera volta a se mover, percorrendo o corpo da mulher de cima a baixo, pausando nos joelhos e seguindo até os pés. Ela se agacha e parece se inclinar para pôr as mãos na água. O apito do navio soa duas vezes, chamando a atenção dela. 1’10” se passaram quando entrevemos pela primeira vez seu perfil. Ela vira de lado e, depois, de frente para a câmera até um fade enbranquecer a imagem e se transformar no fundo para o título do filme em letras pretas. Sem diálogo ou música, conjugando o movimento do corpo da atriz e da câmera, a cargo do diretor de fotografia Jacob Solitrenick, o prólogo é um primor de mise-en-scène, na qual a pensativa personagem principal é apresentada.

A essa abertura irá se contrapor o plano final do filme. No início e no fim, Helena, a personagem principal, está na água. Primeiro, até os tornozelos, diante do mar, no espaço aberto que sugere um campo de alternativas. No final, imersa, com o corpo nu dobrado sobre si mesmo, cabeça baixa, confinada na banheira com água pela metade, sem saída.

No segundo plano do filme, depois do prólogo e do título, a câmera na mão e a atriz fazem longa e elaborada coreografia que dura cerca de 3’33”. Helena inicialmente é perseguida pelas costas, enquadramento mais usual em documentários; caminha pela calçada e passa por um portão gradeado. Uma faixa pendurada na janela anuncia que a casa está à venda. Ela vai até a porta, abre e entra, passando a ouvir música reproduzida em volume alto; grita “Caio!”, parecendo se dirigir a alguém no segundo andar; vai até a sala e abre a janela na qual, do lado de fora, a faixa anunciando a casa está pendurada, tapando a visão; tira a saia, ficando de calcinha, e sobe a escada acompanhando o ritmo da música que vai ficando cada vez mais alta; tira a camiseta,  ficando vestida com outra que usa por baixo; esboça um sorriso em direção ao que parece ser a fonte da música; veste um short, deita na cama de casal e solta o cabelo; tira o relógio de pulseira dourada e chama de novo “Caio!”, no momento em que a câmera enquadra o box do chuveiro, através da porta aberta do banheiro, onde uma silhueta toma banho dançando. Helena tira uma corrente do pescoço, enquanto no fundo do quadro a silhueta continua o banho dançante; vai até o banheiro, pega roupas jogadas no chão e sai de quadro, à esquerda, momento em que há o primeiro corte para ela diante do espelho embaçado. Ela desliga a música, e ouve-se um “Ouu!”, misto de decepção e protesto vindo do chuveiro.

Até esse momento, não há como saber qual é a natureza exata da relação existente entre Helena e Caio, apresentado tomando banho. A deliberada ambiguidade só é esclarecida adiante, mantendo no ar, por cerca de um terço do filme, a tensão entre afeto e agressividade, mediada pela solidão dela, a dependência financeira dele, sem abrir mão da pulsão erótica de ambos.

Atuando como defensora pública de menores infratores, Helena demonstra sensibilidade humana no convívio profissional com situações dramáticas, e é capaz de sair dos seus cuidados em busca de ajuda para evitar que um menor seja condenado a ficar internado por prazo indefinido.

O que ela só percebe tarde demais é que o mundo à sua volta está ruindo. É dessa descoberta que trata com tato, dosando habilmente a progressão do drama e revelando até onde pode chegar a ilusão de Helena. Quando termina, lança o espectador na tragédia que está para ter início. O filme não se fecha sobre si mesmo, ao contrário, permite vislumbrar o que está por vir.

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