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    Fernanda Sung, 35, na fila para o teste diário de Covid - Foto: acervo pessoal.

depoimento

De volta ao isolamento

Diante de novo lockdown em Xangai, brasileira descreve sua rotina, com testes diários de Covid e troca de alimentos entre vizinhos

Fernanda Sung | 18 maio 2022_11h20
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Em março, a cidade chinesa de Xangai registrou um aumento de casos de Covid, com mais de 300 novos infectados por dia – a maior alta desde o início da pandemia, no começo de 2020. Na virada de março para abril, o número de casos explodiu para mais de dois mil por dia. A cidade entrou em lockdown e assim se mantém. Segundo o Xangai Fabu, boletim oficial da cidade, mais de 90% dos casos são assintomáticos. A metrópole chinesa registrou mais de 530 mortes por Covid, e as vítimas tinham em média 78,9 anos – a maioria não tinha tomado vacinas ou tinha comorbidades. A China vem registrando um aumento de casos da doença a partir de março e, desde então, intensificou a política de “Covid zero” em todo o país, plano que inclui medidas intensivas para interromper a propagação do vírus. O presidente chinês, Xi Jinping, defende as duras medidas adotadas no país, apesar do aumento da insatisfação pública e das fortes pressões econômicas.

O lockdown de Xangai, juntamente com as restrições em várias outras cidades chinesas, atingiu a segunda maior economia do mundo e interrompeu as cadeias de suprimentos globais. Quem sente o lockdown mais forte na pele é a população local. A empresária brasileira Fernanda Sung, de 35 anos, mora na China há dez anos e, entre idas e vindas, está isolada em casa há mais de dois meses. Em janeiro de 2021, ela contou à piauí como Xangai estava na contramão do mundo, com poucos casos de Covid, e passava a liberar a vida sem máscaras. Agora vive o inverso, e conta sobre sua vida em meio ao intenso lockdown.

Em depoimento a Marcos Amorozo.

*

Do começo de 2021 até fevereiro deste ano, a minha vida caminhava dentro de uma nova normalidade pós-Covid. Eu estava indo trabalhar todos os dias de bicicleta e podia encontrar alguns amigos em lugares abertos ou fechados. Máscaras apenas no metrô ou onde havia grande circulação de pessoas, como supermercados, shoppings e aeroportos. A vacinação estava avançada na população, eu já tinha tomado duas doses, pagando 100 yuans em cada uma – cerca de 73 reais. Só chineses e pessoas de países parceiros podem se imunizar de graça. Apesar dos cuidados, a gente não estava com muito medo de que a Covid fosse voltar, muito menos esperávamos que seria necessário fechar tudo novamente. 

Neste período, fiz muitas viagens dentro da China, mas não consegui visitar minha família no Brasil. A burocracia para o retorno de estrangeiros ao país é muito rígida e foi acentuada pela política anti-Covid, o que quase inviabiliza a nossa saída nos últimos dois anos. Foi no fim da minha última viagem, no final de fevereiro, que as coisas começaram a mudar. Eu estava numa região de praia no sudoeste da China e, depois de passar dez dias descansando, fui surpreendida no aeroporto. Apareceu um caso de Covid na cidade e descobri que não poderia voar naquele dia. Aí foi o caos: muita fila, muita gente e pouca informação; não sabia o que fazer. Precisei ficar mais dois dias na cidade e, depois de dois testes, pude voltar para Xangai.    

Em casa, comecei a ouvir de amigos e vizinhos que o número de pessoas infectadas na cidade estava crescendo e que alguns prédios estavam entrando em lockdown. A gente via que as pessoas que estavam saindo de casa para curtir o começo da primavera já estavam mais receosas e tomando mais cuidados do que em janeiro. Tanto que o meu último encontro com amigos foi num lugar aberto, para diminuir os riscos de contaminação.

Além do medo da contaminação em si, muitas pessoas tinham receio de testar positivo para a Covid e serem mandadas para algum centro de quarentena para onde o governo leva alguns infectados. Quem foi para lá diz que o ambiente não é nada acolhedor e que os pacientes são tratados como números. Geralmente são grandes galpões, com camas enfileiradas, a luz fica acesa o tempo todo e não há privacidade ou conforto algum. 

Foi em 16 de março que vi o filme de 2020 se repetir com o meu condomínio entrando em lockdown. A princípio, o isolamento seria por 48 horas e esse prazo me deu até um certo alívio na hora. Fiz yoga, descansei, li, botei as séries em dia, cuidei das plantas, limpei minha casa… virei a diva da quarentena. Só que as 48 horas não foram só 48 horas.

Acordei no segundo dia e fui avisada de que esticaram o lockdown por mais 48 horas. E por mais 48 horas. Quando terminou o sexto dia, eu enfim fui liberada parcialmente. As regras diziam que eu tinha que cumprir mais 12 dias de observação, podendo circular apenas na vizinhança. Aproveitei o afrouxamento para ir até o meu trabalho, consegui resolver algumas coisas e passei no mercado para repor a despensa. A cidade já estava bem mais vazia, todos os lugares de comprar comida estavam lotados de gente, mas vazios de comida. 

Após três dias de liberdade, acordo com a notícia de que teria que ficar em casa novamente. Algum vizinho testou positivo e nosso condomínio foi isolado. Quando a cidade toda fechou, eu já estava totalmente ambientada com o isolamento social. 

O fechamento geral do meu lado da cidade, a priori, iria de 1º a 5 de abril. Estamos na metade de maio e ainda estou em casa. Me sinto de mãos atadas, não tem como prever muito o que vai acontecer, as informações chegam e mudam repentinamente. Compro um pouco de comida e como também o que recebo do governo. É difícil administrar a geladeira e despensa sem saber quanto tempo ainda vou ficar em casa, além de não desperdiçar nenhuma comida.

Os kits do governo são variáveis. No primeiro, me mandaram dois repolhos, uma couve-flor, dois nabos, um outro vegetal que se chama “celtus” e um frango congelado. Eu estava cheia de comida na minha geladeira e acabei doando os meus itens. Umas amigas minhas mostraram por videochamada que tinham ganhado umas coisas muito melhores, tipo ovo, camarão, peixe, cenoura, tomate e batata. Recentemente, mandaram arroz, óleo, pepino e outros itens. 

Não há o que fazer. Saio de casa só para jogar o lixo fora e fazer testes diários de Covid. Estou sem trabalhar há mais de um mês, me mantendo com umas reservas que tinha. O abastecimento da cidade está meio parado, o que aumenta a sensação de anormalidade. Passamos a fazer trocas e vendas de comidas e outros itens dentro do condomínio, em grupos na internet. Num dia desses, um vizinho estava precisando de arroz e mandei um pouco do meu para ele; no outro, recebi uma cebolinha de uma vizinha. Está funcionando assim. 

Tem gente falando que em junho tudo vai voltar ao normal. Tem gente que está falando em julho. Eu acho mesmo é que as coisas vão demorar muito para voltar à normalidade. Antes, eu estava muito ansiosa querendo sair do lockdown. Mas já aceitei que a minha vida agora é uma vida em isolamento e estou um pouco menos tensa. Busco fazer outras coisas para me distrair e desencanar um pouco da situação enquanto sigo presa em casa.

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