Decifrar o invisível
Documentário premiado em Amsterdã desvenda a atuação de personagens coniventes com o apartheid
Graças ao artigo semanal de Amir Labaki no Valor, soube sexta-feira passada (25/11) que Filme Particular, de Janaína Nagata, havia recebido o Beeld & Geluid IDFA ReFrame Award no recente Festival Internacional de Documentários de Amsterdã, encerrado há dez dias. O texto de Labaki informa que o prêmio é “destinado ao mais criativo uso de material de arquivo” e inclui informações sobre a origem do projeto, realizado a partir de um filme 16 mm, silencioso, comprado por Nagata. A apreciação circunstanciada e precisa de Filme Particular, feita por Labaki, causou em mim a vontade de assistir o quanto antes ao documentário premiado, cuja estreia internacional havia sido em julho, na mostra Outras Joias do Festival Internacional de Cinema de Marselha.
Satisfazer esse desejo não demorou, graças à gentileza de André Manfrim, produtor com Julia Alves de Filme Particular. Em resposta ao meu e-mail perguntando se seria possível ter acesso ao filme, ele enviou o link necessário na própria sexta-feira.
Uma vez assistido ao filme, constatei que a justificativa dos jurados para atribuir o prêmio a Filme Particular, citada também por Labaki, era certeira: “Por combinar imagens antigas e novas tecnologias em uma jornada única, onde o privado se torna público, e por abordar a complexidade do racismo de forma investigativa, permitindo ao espectador a experiência ativa de pesquisa e reconstrução, tornando-a divertida e emocionante.” Segundo o júri, a seleção de concorrentes incluía filmes “empenhados em reviver, redefinir, recortar e ressignificar material previamente existente, e assim nos fez continuamente reconsiderar, repensar, reimaginar e reconectar.” Entre os demais diretores concorrentes estavam Gianfranco Rosi, Mark Cousins, Sergei Loznitsa, Annie Ernaux e David Ernaux-Briot, nomes consagrados que valorizam ainda mais o prêmio atribuído ao filme de Nagata, diretora estreante em longa-metragem.
Um carretel comprado pela internet para testar um antigo projetor 16 mm, anunciado como “CARRETEL + FILME PARTICULAR”, veio acompanhado de um filme silencioso já editado, informa a legenda no começo de Filme Particular, após ter esclarecido que isso ocorreu em São Paulo, em 2018. A seguir, os 19 minutos iniciais do material contido no carretel são reproduzidos, sem “qualquer manipulação ou edição” da parte de Nagata, mas “acompanhados de uma trilha sonora”. Concluída essa abertura, as mesmas cenas são mostradas de trás para frente em alta velocidade. Concluída a volta ao ponto de partida, tem início, sequência por sequência, minuciosa exegese das imagens à medida que a projeção avança – procedimento narrativo básico de Filme Particular do qual resulta um viés peculiar. O tema do filme não é circunscrito de antemão e o próprio assunto só é descoberto à medida que a projeção avança.
Desse modo, o propósito inicial de Filme Particular é decifrar suas próprias imagens, sem descurar, ao mesmo tempo, de esclarecer seu significado profundo. Para isso, lança mão de plataformas e sites como Google e YouTube, por exemplo, além do PimEyes de reconhecimento facial. Subdivide a tela e mostra ao espectador, lado a lado, o frame pesquisado e a investigação em curso para desvendar o que está além da superfície do que é imediatamente visível.
A pesquisa identifica lugares precisos onde a filmagem foi feita na África do Sul, quem são algumas das pessoas filmadas, além de vários outros detalhes. Mais relevante, porém, é revelar práticas racistas e desvendar a atuação de personagens que propuseram, lideraram e foram coniventes com o regime de segregação racial implantado no país e adotado durante décadas, conhecido como apartheid. Desse modo, Filme Particular ilumina algo monstruoso, oculto e protegido pelo encanto de imagens amadoras coloridas que aparentam se movimentar.
A pesquisa vista no filme como se estivesse sendo feita em tempo real foi, na verdade, recriada pela edição, pois de outro modo seria impraticável. Trata-se, portanto, de uma reencenação sem qualquer prejuízo ao documentário, conforme Nagata explica em entrevista ao site do Festival de Marselha:
A pesquisa realizada em Filme Particular reflete e ao mesmo tempo não reflete minhas próprias descobertas durante o desenvolvimento do projeto. O processo de pesquisa na internet foi realizado durante período longo e foi acompanhado por uma intensa investigação histórica que não é apresentada no filme. O extenso plano do desktop em Filme Particular é uma ilusão garantida pelo processo de edição e é conduzido pelo roteiro narrativo criado por Clara Bastos e por mim. Foi concebido para conduzir a atenção do espectador, para levá-lo a prestar atenção em determinados detalhes das imagens. Ao mesmo tempo, essa sequência comprida atua ao lado de uma estrutura dispersiva criada para produzir simultaneidade, com a tela bipartida que acarreta contraste e comparação, voltada para ressignificar o próprio found footage. Mas mesmo depois de uma pesquisa obsessiva, há muito mistério não resolvido e lacunas que não conseguimos preencher. Tivemos a preocupação de interpor certas barreiras entre o espectador e o filme: trilha sonora barulhenta, voz do Google, propaganda trash, problemas de tradução, movimentos lentos (entrevista completa disponível em https://fidmarseille.org/en/entretien-filme-particular/).
Depois de estrear em junho no Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, Filme Particular participou dos mencionados festivais de Marselha e Amsterdã, mas só deve chegar ao circuito comercial de salas no próximo ano.
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Destaque (XIX):
Homenagem a Erasmo Carlos (1941-2022), em memória de sua breve, mas marcante participação no filme O Cavalinho Azul.
Cowboy (Erasmo Carlos), Vicente (Pedro de Brito) e Maria (Ana Cecília), no curral, em Valença, RJ, onde O Cavalinho Azul (1984) foi filmado no ano anterior. A adaptação da peça de Maria Clara Machado foi dirigida por mim com roteiro de Sura Berditchevsky e meu (EE). Foto de Zeca Pinheiro Guimarães/Divulgação.
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