FOTO: DIVULGAÇÃO
Desamor – sem perspectivas
Desencanto de Sem Amor, longa russo sobre casal divorciado que lida com o desaparecimento do filho, pode desfavorecê-lo na corrida do Oscar
Otítulo original do filme de Andrey Zvyagintsev é Neliubóv, literalmente Desamor, em português.Essa lição quem deu foi Luis Felipe Labaki, autor da notável dissertação de mestrado sobre os escritos de Dziga Viértov (como ele faz questão de grafar o pseudônimo de Denis Arkadievich Kaufman). Aprender russo foi necessário para fazer a pesquisa e redigir Viértov no Papel: Um Estudo sobre os Escritos de Dziga Viértov (disponível para download aqui).
“Liubóv”, Labaki explica, é amor, e “ne” a partícula negativa. Neliubóv, portanto, “é quase Sem Amor[título dado ao filme no Brasil], com a diferença de ser um único substantivo que pode indicar tanto algo mais ‘neutro’ (ou seja, ‘só’ a ausência de amor, uma indiferença) quanto um sentimento mais negativo em relação a algo, mais próximo de ‘desgosto’ etc. […] ‘Sem amor’, aliás, em russo seria ‘Bez liubví’.”
Mais econômica e bonita, além de literal, a palavra desamor exprime de maneira precisa o tema de Sem Amor, abrangendo desprezo, repulsão, indiferença e o desgosto que não só levam os pais de Alexei ao divórcio, como revelam a ausência de estima de Zhenya e Boris pelo filho pré-adolescente de 12 anos.
No início de Sem Amor, embora presente, o menino está de certa forma ausente – injuriado e desconsiderado, especialmente por sua mãe. Ele não demora, porém, a se ausentar de fato tornando-se onipresente. Alexei é uma nova versão de Anna, a personagem de A Aventura (1960), de Michelangelo Antonioni, que desaparece sem explicação durante um passeio de barco a Lisca Bianca, ilha vulcânica deserta do Mediterrâneo. Sem reaparecer, Anna paira sobre a relação do seu noivo, Sandro, com sua amiga, Claudia, e atormenta os dois de modo permanente durante todo o filme.
É isso o que acontece também com os pais de Alexei – já separados, Zhenya e Boris passam a ser atormentados pelo desaparecimento do filho, até atingirem seu estágio final de indiferença, ela correndo na esteira do terraço, ele assistindo pela televisão as notícias sobre a intervenção militar da Rússia na Ucrânia.
Outra semelhança entre Sem Amor e A Aventura é o cuidado de ambos em situar a ação em locais que traduzam visualmente os conflitos internos dos personagens e estabeleçam a atmosfera dos filmes. No caso de A Aventura, o percurso de Sandro e Claudia parte das ilhas Eólias, atravessa a Sicília, passa por uma pequena cidade fantasma, pela catedral barroca em Noto e chega à madrugada final no terraço do hotel San Domenico, em Taormina, com o monte Etna no horizonte.
A trama de Sem Amor, do seu lado, ocorre em Moscou, na periferia da capital, entre grandes conjuntos habitacionais, apartamentos de classe média, construções em ruínas e o parque à beira do rio. A ação se passa, em boa parte, no inverno, com neve caindo e cobrindo a paisagem. Na abertura e no encerramento do filme, formando um ciclo, galhos de árvores entrelaçados, sem folhagem, prevalecem – desolação visual que corresponde ao desespero de Alexei e ao desencanto de seus pais.
Já se tornou lugar comum reconhecer que “o cinema é uma mídia simplicadora” que tem dificuldade de lidar com temas complexos. Uma personagem de J. M. Coetzee expressa com clareza essa convicção: “O cinema é uma mídia simplificadora. Essa é sua natureza; você pode se convencer disso de uma vez. Ele trabalha com grande traços.” (Elizabeth Costello, 2003.)
Cineastas que recusam evidências como essas costumam sobrecarregar seus filmes de metáforas cujo sentido muitas vezes escapa ao espectador. Para esclarecer que Sem amor “é especificamente sobre a desumanização da Rússia”, por exemplo, Zvyagintsev destaca em uma entrevista o fato da palavra Rússia estar impressa em inglês no moletom vermelho que Zhenya usa na cena, mencionada acima, em que ela “corre em vão na esteira”, e ainda pergunta: “Sacou?”
De minha parte, responderia que, ao menos no Brasil, dificilmente algum espectador atribuiria qualquer significado especial ao nome do país não estar escrito em russo (a entrevista completa de Zvyagintsev está disponível aqui).
No artigo publicado em 14 de fevereiro na New York Times Magazine, Karl Ove Knausgaard investiga “quais são as histórias que os russos estão contando para si mesmos, na terra de Tolstói, Turgueniev e agora Putin”.
Na viagem de trem rumo a Kazan, Knausgaard conversa com Natalya que estava com duas amigas a caminho de Izhevsk, “onde fabricam as Kalashnikovs”. Ela contou que “foi criada em um orfanato, não lembrava dos seus pais, e tinha uma irmã de quem tinha sido separada e nunca mais viu. Ela procurou por essa irmã a vida toda mas continuava sem saber aonde estava”.
Sergei Lebedev, autor de romances e jornalista, de 36 anos, tornado ativista cívico nos últimos tempos, disse a Knausgaard no bar de um hotel, em Moscou, “ser importante entender que as autoridades precisam de uma cortina de fumaça para esconder o fato de que elas não são nada mais do que um bando de cleptocratas”.
Ao caminharem pela praça da Revolução, Lebedev apontou para a entrada da estação de metrô. No subterrâneo, em plataformas ao longo das paredes, há enormes estátuas heróicas de bronze de figuras humanas. “A primeira dessas figuras carregava rifles e cinturões de cartucheiras – eram os revolucionários. Mas aí vieram as pessoas comuns, homens e mulheres, jovens e velhos, camponeses, pescadores, operários industriais – toda a fascinante, primorosa série, terminando com uma criança segura no alto, um símbolo do futuro.”
Para Knausgaard já não importava saber que era propaganda “por que essa era a visão de uma vida, de uma terra, de um futuro, e não era falso, apenas bonito”.
Cem anos se passaram entre a criança segura no alto, simbolizando o futuro, e o menino desaparecido de Sem Amor. Hoje, Alexei sumiu e seus pais sequer sonham com “uma vida melhor para todos”.
O desencanto de Sem Amor não parece favorecê-lo na competição, com outros quatro concorrentes, ao Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira. Previsões indicam probabilidade de 16/1, enquanto The Square – A Arte da Discórdia é o favorito com probabilidade de 3/1.
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