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    Henri Campeã estima que a maratona de desenhos lhe tomará os próximos dois anos. Desde janeiro do ano passado, oito capas já foram aprovadas pela editora americana Vintage Books Foto: Acervo pessoal

questões visuais

Desenhando Murakami

Quem é a jovem paulistana escolhida para ilustrar todos os clássicos do autor japonês, prestes a serem relançados nos Estados Unidos

Leandro Machado, de São Paulo | 09 abr 2025_09h03
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No conto Sono, do escritor japonês Haruki Murakami, a protagonista – uma mulher sem nome, de 30 anos, casada, mãe de um menino – acorda assustada de um pesadelo. Vira o rosto e, ao lado da cama, se depara com um homem velho e magro, o rosto coberto por um capuz. Como se ainda estivesse num pesadelo, ela se levanta para falar com o sujeito misterioso. Indiferente, em silêncio, o velho passa a jogar água nos pés dela. A cena, nas palavras da mulher, foi “um tipo de sonho que não era exatamente um sonho”. Depois dessa noite, ela passa dezessete madrugadas insone, vigiando o quarto. Na rotina tediosa, enquanto o marido e o filho dormem, ela resolve reler Anna Kariênina, de Tolstói, e repensa a própria vida. É uma história comum a outros personagens de Murakami: determinados sonhos são, para eles, tão marcantes, que transformam a trama do livro.

Fã do autor japonês, a ilustradora paulistana Henri Campeã leu esse conto na pandemia. “Eu estava com umas ideias sobre o sono, sobre sonhos, que são temas que permeiam meu trabalho. Desenhava para refletir sobre mim e meus pensamentos”, relembra ela (Campeã se reconhece como pessoa não binária e aceita tanto os pronomes masculinos quanto os femininos). Inspirada na história, a ilustradora desenhou uma capa alternativa para o conto de Murakami. Até hoje, Sono teve apenas uma edição no Brasil, pela editora Alfaguara, e portanto só uma capa.

A ilustração de Campeã mostra uma cama amarela de pés enormes, sobre a qual se vê a silhueta de uma mulher sentada. Ao fundo, o escuro da noite e a Lua. Campeã diz que foi influenciada pela série de quadrinhos Little Nemo, um clássico que circulava em jornais americanos no começo do século XX. Depois de deixar o desenho na gaveta por alguns anos, resolveu publicá-lo no Instagram e em plataformas de portfólio online em janeiro de 2023.

Meses depois, recebeu um e-mail intitulado “haruki murakami”, assim mesmo, em caixa baixa. A remetente era Megan Wilson, diretora de arte da Vintage Books, um selo da tradicional editora Penguin. “Ela me explicou que a Vintage ia republicar todos os livros de Murakami nos Estados Unidos e me convidou para fazer as capas. Foi uma maluquice. São mais de trinta livros. Liguei para a minha agente e ficamos sem acreditar”, relembra Campeã. “Depois bateu uma insegurança. Pensei: ‘Fodeu. Não sou capaz.’”

 

Haruki Murakami, 76 anos, é um popstar da literatura japonesa contemporânea, traduzido para mais de cinquenta idiomas e relembrado todo ano quando se especulam os favoritos ao Nobel de Literatura. Começou a escrever profissionalmente no final da década de 1970, tornando-se um fenômeno literário no Japão e produto de exportação. Sua vasta obra – só no Brasil, são 24 títulos publicados pela Alfaguara – tem boa reputação na crítica e público fiel. Algumas de suas histórias já foram adaptadas para o cinema, caso de Drive my car, que levou o Oscar de Melhor Filme Internacional em 2022. O enredo é baseado em um conto homônimo de Murakami, publicado no livro Homens sem mulheres (2014).

A prosa do autor japonês é por vezes delirante e frequentemente melancólica. Como a maioria dos artistas, costuma reincidir em temas que lhe fascinam, característica que faz com que alguns leitores mais habituados brinquem na internet de identificar esses elementos nas suas histórias. Criou-se um bingo informal em que se procura sexo estranho, poderes sobrenaturais, mulheres misteriosas, fetiche com orelhas e gatos desaparecidos.

“Tento não desenhar essas coisas, porque são muito óbvias”, diz Campeã. Em Kafka à beira-mar, contudo, a ilustradora se rendeu aos felinos, que têm papel central na trama repleta de elementos oníricos. No romance, que será o primeiro dos livros relançados pela Vintage Books, um idoso excêntrico e analfabeto de nome Satoru Nakata tem o dom de conversar com gatos. Um talento antigo, que adquiriu depois de perder a consciência e passar dias dormindo durante o cerco dos americanos ao Japão, na Segunda Guerra Mundial, e que veio a calhar quando uma vizinha o contratou para achar sua gata desaparecida. 

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Habitualmente, quando começa a compor uma capa, Campeã lista os principais temas do livro e a maneira como se relacionam com o protagonista. Mistura referências e imagina a capa como se fosse uma carta de tarot. “Você tem um desenho representando uma ideia, como a morte, e tem o personagem em um cenário tal. A carta te permite interpretar. Ela tem elementos da história, mas não mostra exatamente algo que acontece no livro.” 

Os esboços são feitos a mão. Campeã filtra os melhores, os colore no iPad e envia três opções para Megan Wilson. “Com outros artistas, eu muitas vezes faço uma seleção antes de mostrar o resultado aos editores e publishers. Mas, no caso da Henri, eu mostro tudo para eles. O processo de seleção em grupo, então, se torna um delicioso dilema”, disse Wilson por e-mail à piauí. Murakami não participa da decisão final. Segundo a editora de arte, no entanto, o autor “recebeu todas as ilustrações” da brasileira e um PDF que detalhava o processo de elaboração dos desenhos. “Ele, é claro, adorou.”

A capa de Sono que chamou atenção dos editores americanos (Crédito: Reprodução)

 

Henri Campeã, 32 anos, viveu boa parte da vida na Parada Inglesa, Zona Norte de São Paulo. Hoje mora na Santa Cecília, bairro boêmio na região central frequentado por artistas, baristas, livreiros, jornalistas da Folha de S.Paulo, estudantes universitários e Rita Cadillac. “Tenho uma superstição”, me disse Campeã, quando conversamos pela primeira vez, sentados em um bar perto de sua casa. “Toda vez que vejo a Rita Cadillac na rua, sei que vai ser um dia bom pra mim.” Rita Cadillac passou por nós naquela tarde de dezembro.

A ilustradora me contou que, há pouco tempo, foi diagnosticada com transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH). “Tem sido um processo de descoberta de aspectos intrínsecos meus. Entendi que o desenho, por exemplo, é minha forma de hiperfoco. Quando eu era criança, passava as aulas desenhando no caderno, porque isso me ajudava a ouvir e a prestar atenção”, ela disse. “Então fui criando meu mundo paralelo, meus personagens, o que de certa forma me tirava da realidade.”

A mãe, Rosangela, sempre a incentivou, deixando que a filha desenhasse até nas paredes de casa. Aos 11, Campeã se matriculou em um curso de história em quadrinhos. Na adolescência, estudou comunicação visual em uma Escola Técnica Estadual (Etec) e, mais tarde, design gráfico na Universidade Belas Artes. Passou por algumas agências de comunicação (“uma experiência não muito legal”, ela diz) até optar pela vida de freelancer. “Criei uma lista com dezenas de e-mails de gente que eu conhecia e admirava. Me apresentei e enviei algumas artes. Com o tempo, as propostas começaram a aparecer.”

Campeã desenha para marcas – da Apple a empresas de café artesanal – e faz parte de um grupo de ilustradores brasileiros que têm obtido reconhecimento na imprensa americana (caso de Camila Rosa, artista de Santa Catarina que desenhou uma das capas comemorativas do centenário da revista The New Yorker). Campeã aprendeu a fazer pequenas animações que já usou para ilustrar reportagem do New York Times, do Washington Post, do Politico e da própria New Yorker (a última foi publicada em dezembro e retratava a relação entre a linguagem e nossa maneira de pensar). A nova coleção de Murakami pela Vintage Books é a estreia de Campeã no mundo das capas de livros. 

Seus desenhos remetem a sonhos multicoloridos, minimalistas, com formas geométricas e proporções inesperadas. Contêm um tom infantil e, ao mesmo tempo, parecem debochar daquilo que estão retratando – caso, por exemplo, de uma animação para a Columbia Magazine em que um celular recebe uma enorme quantidade de lixo por um funil e transforma tudo em vídeos e artigos de jornal. Uma de suas inspirações é o animador japonês Hayao Miyazaki, responsável por obras-primas como A viagem de Chihiro e O Menino e a garça, que levaram um Oscar cada uma. “Alguns ilustradores usam técnicas e acabamentos mais rebuscados do que eu. Meus desenhos são simples. Linha, preenchimento, cor. Pra mim, conta mais a ideia do que a finalização”, diz a paulistana.

Kat Irannejad, sua agente nos Estados Unidos, é menos econômica ao comentar o trabalho de sua protegée. Explica que a arte de Campeã “tem sempre uma resposta visceral, porque não se trata da estética pela estética. Há sempre uma ideia, um sentimento, um comentário, um humor inteligente, uma ação ou reação”. Irannejad, filha de pais iranianos nascida nos Estados Unidos, também é artista visual e fundou, em 2023, a agência Totally Reps, sediada no Brooklyn e responsável pela carreira de algumas dezenas de artistas. Ela diz que Campeã e Murakami se “combinam magicamente”. “Ambos têm uma forma mágica e não linear de compartilhar uma história – uma com palavras e narração, e outra com arte. Há muita profundidade, mas nada didático ou entediante. Os dois te desarmam.”

 

Embora seja celebrado internacionalmente como o maior nome da literatura japonesa contemporânea, Murakami tem uma imagem ambivalente no Japão. A tradutora Rita Kohl, que transpôs para o português cinco de seus livros, conta que não foi bem recebida quando quis fazer um mestrado sobre o escritor na Universidade de Tóquio, há alguns anos. “Caçando carneiros foi o primeiro romance de literatura japonesa contemporânea que eu li. Eu tinha 20 e poucos anos, e o livro me impactou. Viajei para o Japão com a ideia de pesquisar a recepção do Murakami em outros idiomas, como o português. Mas meu orientador respondeu: ‘Melhor não, vamos estudar outra coisa?’ Acabei conduzindo uma pesquisa sobre teoria da tradução, que não tem nada a ver com o Murakami”, ela diz.

Entre especialistas e aficionados pela leitura japonesa, é comum ouvir a crítica de que Murakami é um autor muito ocidentalizado, que ignora os clássicos do próprio país. Abundam em seus livros citações a filmes europeus, romances ingleses e americanos, Édipo Rei, Nietzsche, Beethoven e principalmente clássicos do jazz. (Antes de virar escritor, Murakami teve um bar de jazz em Tóquio. No Spotify, um de seus leitores criou uma playlist de 33 horas contendo só o “jazz noir que poderia tocar em um dos bares de Murakami”.)

“Murakami leu muita coisa em inglês, e também é tradutor. Ele conta que começou a escrever em inglês e depois voltou ao japonês”, explica Kohl. “Há estruturas peculiares do japonês que são difíceis de traduzir para o português, mas o texto do Murakami não tem muito isso. É objetivo, direto. Isso acaba facilitando um pouco a vida do tradutor.” Kohl morou quatro anos em Tóquio e conta que, por lá, o mercado editorial diferencia muito claramente a literatura “séria” e a popular. “Isso se reflete nos prêmios. Murakami vende muito, mas nunca ganhou os prêmios mais importantes, reservados à alta literatura.”

Outra crítica frequente a Murakami é de que o escritor retrata as mulheres com um viés machista, sexualizado. No romance Kafka à beira-mar, por exemplo, as quatro personagens femininas mais importantes na história aparecem quase exclusivamente em cenas de sexo ou ajudando os homens em momentos de dificuldade. No conto Homens sem mulheres, um personagem reflete sobre outro tema recorrente na obra de Murakami: o abandono da mulher amada. Ele afirma que, depois de levar o primeiro pé na bunda, o homem sempre desconfia das mulheres. “Mesmo que depois você encontre outra mulher, por mais encantadora que ela seja, você sempre estará pensando no momento em que irá perdê-la.”

No Brasil, os romances de Murakami começaram a ser traduzidos diretamente do japonês no início dos anos 2000 pela Estação Liberdade, editora especializada em literatura japonesa. Os direitos de publicação foram adquiridos depois pela editora Objetiva, mas em pouco tempo foram parar nas mãos da Alfaguara, selo de ficção do grupo Companhia das Letras. De 2006 para cá, a editora publicou 24 livros de Murakami. A empreitada mobilizou, além de Rita Kohl, tradutores como Leiko Gotoda, Eunice Suenaga e Lica Hashimoto.

Marcelo Ferroni, publisher da Alfaguara, diz que The city and its uncertain walls, o mais novo romance de Murakami (ainda sem título em português), publicado no Japão em 2023, ganhará uma versão em português no ano que vem. A edição americana será lançada ainda em 2025, pela Vintage Books, com capa (ainda não divulgada) de Henri Campeã. 

As capas da Alfaguara são muito distintas das que Campeã desenhou para a editora americana. Feitas por diferentes ilustradores, elas frequentemente fazem referências explícitas ao Japão, incluindo os raios da Bandeira do Sol Nascente – símbolo nacional associado à era imperialista japonesa, quando o país avançou sobre a Coreia e a China. Não se trata da famosa bandeira branca com um círculo vermelho no centro, e sim aquela em que o círculo, deslocado à esquerda, irradia dezesseis raios vermelhos. O símbolo adquiriu uma conotação tão negativa que, antes das Olimpíadas de Tóquio, em 2021, políticos sul-coreanos pediram que a bandeira fosse proibida nos estádios. Não foram atendidos: os organizadores argumentaram que o desenho não tinha significado político.

Campeã estima que ficará mais dois anos dedicada à maratona de desenhos para Murakami. Desde janeiro do ano passado, oito capas já foram aprovadas pelo comitê da Vintage Books. Em Kafka à beira-mar, Campeã desenhou o velho Satoru Nakata refletido na sombra de um gato; acima dele, um corvo – referência a Kafka (“corvo”, em tcheco) e a um dos personagens do romance, o Menino Chamado Corvo. Já a capa de Homens sem mulheres mostra um sujeito curvado bebendo sozinho em um bar; do outro lado, refletido também em uma sombra, um casal vive um encontro amoroso.

O desafio, segundo Campeã, tem sido criar cartas de tarot que sejam parecidas entre si, conferindo unidade ao todo, mas que também se destaquem individualmente. “As primeiras capas foram as mais difíceis, porque tive que criar uma linha que eu seguiria em todos os livros”, ela diz. “Normalmente os protagonistas de Murakami são pessoas comuns, solitárias e introspectivas que entram em uma jornada fantástica de autodescoberta. Então pensei sempre em ter uma silhueta por trás, talvez o personagem, com outras coisas acontecendo no entorno. É como se eu pintasse sobre como o narrador se relaciona mentalmente com a história, ou como se o personagem estivesse contando a própria história em um sonho.”