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    Paulo Betti e Debora Bloch em 'O Debate' - Foto: Divulgação

colunistas

Desova cinematográfica

Filme de Caio Blat explicita proposta de intervir na campanha presidencial

Eduardo Escorel | 31 ago 2022_08h46
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“Engarrafamento cinematográfico” foi a manchete da primeira página no Segundo Caderno do jornal O Globo, em 10 de agosto. O que vem ocorrendo com filmes brasileiros em lançamento, no entanto, é mais parecido com uma desova – ato de “dar sumiço” ou “esconder em local ermo cadáveres, carros roubados etc.”, conforme ensina o Dicionário Houaiss.

Quinta-feira passada (25/8), além de Marte Um (2022), de Gabriel Martins, ao qual foi dedicada a coluna da véspera, estreou também O Debate (2022), de Caio Blat, baseado no livro homônimo de Guel Arraes e Jorge Furtado – nesse caso atípico, com um anúncio de meia página no jornal durante a semana. Amanhã (1/9) estreiam, por sua vez, além do admirável documentário Segredos do Putumayo (2020), de Aurélio Michiles, comentado aqui em 7 de outubro de 2020, A Viagem de Pedro (2021), escrito e dirigido por Laís Bodanzky, Maria – Ninguém Sabe Quem Sou Eu (2022), de Carlos Jardim, centrado em Maria Bethânia, e possivelmente mais alguns a que não assisti.

Só pude ver O Debate tarde demais para escrever a respeito antes da estreia. Meu interesse pelo filme fora despertado ao ler a entrevista de Caio Blat, dada a Maria Fortuna, na qual ele diz que “a urgência dos fatos é tanta que provocou a necessidade de o cinema se antecipar e refletir imediatamente”. Segundo o diretor, O Debate “nasceu da urgência artística de participar desse movimento político num momento em que a história está em jogo, de, através do nosso trabalho, lutar pela democracia”. Na mesma matéria, o corroteirista Furtado afirma ser “a primeira vez que a gente fala sobre algo que está para acontecer” – declarações ainda mais instigantes sabendo que o filme iria estrear quarenta dias depois de concluídas suas filmagens (Segundo Caderno, O Globo, 16/8).

A proposta de intervir a quente no evento crucial do momento – a campanha eleitoral em curso para a Presidência da República – por si só é digna de louvores. Projetos como esse são raridades no cinema brasileiro, submetido a circunstâncias adversas que costumam obrigar filmes primeiro a levar anos até serem produzidos e, depois, a ter que esperar outros tantos para chegar à tela dos cinemas.

O Debate venceu essa barreira. A ambiguidade do título, porém, põe em questão o propósito de “participar desse movimento político…, de, através do nosso trabalho, lutar pela democracia”. O fato de o filme se passar durante um debate ao qual se faz sucessivas referências sem mostrar, entre candidatos anônimos, no último dia do segundo turno de uma eleição presidencial não identificada, enfraquece, mesmo sem romper de todo o elo que poderia estabelecer entre ficção e realidade. Nesse sentido, a segunda frase da legenda com a qual O Debate tem início, antes mesmo dos créditos de abertura, é contraproducente, por ser arriscado confiar que a sagacidade do espectador lhe permita concluir o oposto da afirmação feita em letras brancas sobre fundo preto: “… Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.”

No livro de Arraes e Furtado que deu origem ao filme, os nomes do atual e do ex-presidente da República são citados à vontade. Menções decisivas para ancorar na realidade a discussão de Paula (Debora Bloch) e Marcos (Paulo Betti), mesmo se tratando de “obra de ficção”, assim definida por seus autores. O texto publicado em 2021 tem uma substância que falta ao filme, em especial as respectivas opiniões políticas e posturas profissionais dos personagens, assim como os temas da atualidade brasileira discutidos, da pandemia ao aborto e da corrupção ao papel da religião.

Ao tornar o debate político-eleitoral no final do segundo turno uma abstração descontextualizada, fica explícito que a referência principal feita no título do filme não é à campanha, mas à DR de Paula e Marcos, ela apresentadora, ele editor-chefe de uma emissora de televisão, formando um casal que se separou há pouco tempo, após dezessete anos em que trabalharam e viveram juntos.

Outra mudança significativa em relação ao livro que resulta prejudicial ao filme é a ruptura da unidade de tempo e espaço do texto original, com repetidas voltas ao passado identificadas com legendas, intercaladas com as cenas que se passam durante o debate eleitoral e os breaks recorrentes da transmissão televisiva. Esse ir e vir recorrente fica cada vez mais previsível e impede o recurso narrativo de se sustentar ao longo dos 76 minutos de O Debate.

Tampouco beneficia o filme a tentativa de tornar a DR dinâmica. A hipermobilidade dos personagens e os planos curtos terminam dificultando uma escuta e compreensão melhor do debate sem fim, nem sempre interessante, de Paula e Marcos.

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Não imagino que a estreia de A Viagem de Pedro (2021), de Laís Bodanzky, possa ter sido planejada quando o projeto começou a ser concebido para ocorrer na semana que antecede a comemoração de o bicentenário da Independência do Brasil declarada por Dom Pedro, personagem título tratado no filme apenas como Pedro (Cauã Reymond). Creio ademais que a autora do roteiro, diretora e também uma das produtoras, nunca previu que o lançamento ocorreria quando o coração do imperador estivesse no Brasil, trazido há pouco de Portugal dentro de uma urna de madeira e exposto no Palácio Itamaraty, em Brasília.

Cauã Reymond – Foto: Divulgação/Fabio Braga

Tampouco sei se ao começar a reunir os consideráveis recursos necessários para produzir o filme o objetivo de Bodanzky incluía se contrapor a alguma instância específica de poder político. É patente, no entanto, que mesmo Dom Pedro I tendo sido um governante autoritário, A Viagem de Pedro resulta de visão oposta à do evento realizado em 23 de agosto, no qual o presidente da República, com sua mulher ao lado, recebeu o órgão muscular do imperador. Na comemoração, houve sobrevoo da Esquadrilha da Fumaça, desfile dos Dragões da Independência, 21 disparos de canhões e alunos de uma escola pública de Ceilândia acenando bandeirinhas verde-amarelas. Celebração que mostraria, segundo o ministro das Relações Exteriores, sabermos “honrar a memória daquele jovem cujo coração hoje nos visita” (O Globo, 24/8, p.18). À grotesca veneração da relíquia humana se contrapõe o retrato de um homem frágil com falhas graves de caráter, feito por Bodanzky. A esse respeito, ela deu declaração recente inequívoca: “o governo atual flerta com ideais militares. Pedir o coração emprestado é uma forma ufanista e superficial de comemorar os 200 anos de uma independência que, de fato, nunca aconteceu. Podemos não ser mais colônia de Portugal, mas ainda somos uma colônia”.

O Pedro de Bodanzky, conforme apresentado no filme, parte do Brasil em 1831, após ter renunciado ao trono, deixando no Rio de Janeiro seu filho de 5 anos, Dom Pedro II. Viaja em uma fragata inglesa para combater Miguel I, rei de Portugal (Isac Graça), seu irmão mais moço. Pedro tem em vista propiciar que o trono português seja assumido por sua filha Maria, no filme uma menina ainda. Viúvo aos 28 anos da imperatriz Maria Leopoldina da Áustria (Luise Heyer), está casado de novo há dois anos com a princesa da Baviera, Amélia de Leuchtenberg (Victoria Guerra), e durante a viagem declara ter dezesseis filhos. É um homem solitário, rude, mandão, violento, rejeitador, mulherengo, dado a alucinações, obcecado por sexo, impotente há sete meses – nada heroico, em suma. Parte do Brasil ouvindo um grito distante: “Imperador de merda!”. É ameaçado de excomunhão e desde 1822 os portugueses o consideram um traidor.

A Viagem de Pedro transcorre quase todo na fragata inglesa durante a travessia do Atlântico – uma proeza e tanto em termos de produção e de filmagem, para o sucesso da qual as contribuições do diretor de fotografia espanhol Pedro J. Márquez e do diretor de arte Adrian Cooper são consideráveis. No espaço confinado, além do casal de monarcas, está reunido um grupo representativo da estratificação social da época – o comandante Talbot (Francis Magee) e a tripulação, serviçais negros, alguns ex-escravos, e adeptos do candomblé pelo qual Pedro é atraído. Assim, além de um perfil individual, o filme retrata o conjunto da sociedade na primeira metade do século XIX, outra façanha nada desprezível.

Menos satisfatórias, porém, resultam diversas cenas em que Pedro lembra de momentos ou situações do passado intercaladas ao longo do transcorrer da viagem. Roteiro e montagem falham ao não se mostrarem capazes de criar um código que torne as idas e vindas no tempo facilmente compreensíveis. Por menor que seja, a perturbação que podem causar mais prejudica do que favorece o fluxo da narrativa.

Um dos maiores tormentos de Pedro durante a viagem são textos em alemão na voz em off de Leopoldina. Às vezes parecem ficcionais, outras vezes parecem ser autênticos. Um deles, em especial, que proviria de uma carta deixada por ela ao morrer, faz um retrato severo do imperador: “Caro Pedro, a violência dos seus atos me fez uma mulher de palavras duras. Se você fosse o herói que imagina ser teria me deixado viver como uma mulher capaz de enfrentar qualquer guerra. Mas não. Você preferiu que eu fosse assim, frágil, como todos os homens covardes, medíocres, gostam. Na sua próxima guerra eu não irei. Você não merece mais nenhuma linha do meu pensamento. Eu não vou mais fazer parte desse teu jogo cruel, de homem manipulador, egoísta. Você vai seguir sozinho. Mas eu tenho certeza que a minha voz, os meus pensamentos e a minha raiva vão estar sempre com você, ecoando na sua mente. Não porque eu queira, mas porque a culpa vai brotar em você. E ela sim é que vai ser sua grande companhia até o fim dos tempos. Ela, a culpa, é a mulher que você merece.” São somente cerca de 90 segundos que começam aos 72 minutos de A Viagem de Pedro. Pouco depois, o filme chega ao fim com o belíssimo plano em que Pedro e Amélia, depois de desembarcarem na areia escura da praia, diante da elevação vulcânica, sobem caminhando até quase desaparecerem no ponto mais elevado, com os créditos finais superpostos à imagem. É um fecho tão longo e inconclusivo quanto marcante.

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Maria – Ninguém Sabe Quem Sou Eu (2022) chega também amanhã (1/9) às telas dos cinemas. Personificação da dignidade, Maria Bethânia é uma pessoa e intérprete de exceção, em especial neste país onde imperam outros valores. Em especial, mas não só, entre políticos.

Maria Bethânia em entrevista ao filme ‘Maria’ – Foto: Divulgação

Com roteiro e direção de Carlos Jardim, Maria – Ninguém Sabe Quem Sou Eu (2022) é um valioso testemunho em que Bethânia fala de si mesma, sem deixar de ser discreta, com breves comentários sobre seus padrinhos e suas madrinhas, de Nara Leão a Mãe Menininha do Gantois, de Reynaldo Jardim a Chico Buarque, entre outras e outros, sem esquecer seu irmão: “Caetano é o mestre do meu barco”, ela declara.

Não falta uma rara tomada de posição: “O artista é tratado como nocivo ao Brasil. E a arte é a salvação, não só do Brasil como do mundo. A arte vai vencer. Vamos nos salvar”, Bethânia garante.

Carlos Jardim agrega um precioso recital às palavras da intérprete. Reúne trechos de grande valor documental, filmados ou gravados a partir do final da década de 1970. Temos assim, lado a lado, a voz da sabedoria e a trajetória da cantora desde a juventude até se tornar, com toda justiça, uma estrela de primeira grandeza.

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Destaque (VII)

“John Stuart Mill disse: ‘Aquele que conhece apenas o seu próprio lado sabe pouco a respeito’ e nos exortou a desencavar pontos de vista discordantes ‘de pessoas que realmente acreditam neles’. As pessoas que pensam de forma diferente e estão dispostas a se manifestar discordando de você o tornam mais inteligente, quase como se fossem extensões do seu próprio cérebro. As pessoas que tentam silenciar ou intimidar seus críticos se tornam mais estúpidas, quase como se estivessem atirando dardos em seu próprio cérebro… Se não fizermos grandes mudanças logo, então nossas instituições, nosso sistema político e nossa sociedade poderão entrar em colapso durante a próxima grande guerra, pandemia, colapso financeiro ou crise constitucional… Não podemos esperar que o Congresso e as empresas de tecnologia nos salvem. Devemos mudar a nós mesmos e nossas comunidades… Como seria viver em Babel nos dias após sua destruição? Nós sabemos. É um momento de confusão e perda. Mas é também um tempo para refletir, ouvir e construir.” Resumo drástico do artigo “Why the Past 10 Years of American Life Have Been Uniquely Stupid”, de Jonathan Haidt, em The Atlantic, maio de 2022. Disponível na íntegra em https://www.theatlantic.com/magazine/archive/2022/05/social-media-democracy-trust-babel/629369/.

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