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    Ilustração de Fernando Carvall

questões prisionais

Deus, Sazon e cigarro de palha

Com visitas proibidas, quase dobra o número de cartas entre presos e seus parentes durante a pandemia

João Batista Jr. | 03 nov 2020_09h49
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“Saudades dos meus filhos. Estou com medo, acho que eles podem me esquecer. Só Deus sabe quando vou ver eles de novo”, diz a carta enviada por um dos presos do Centro de Detenção Provisória de Jundiaí, a 50 km da cidade de São Paulo, para sua mulher. “Eu fiquei muito FELIZ por saber que está esperando uma menina, parabéns. Por favor, pode mandar um lençol para mim?”, parabenizou e pediu outro preso em mensagem para a irmã caçula. “Mãe, pode pegar fotos do Instagram da Paloma e me mandar? Estou com muitas saudades. Creio que Deus vai me tirar daqui, tenho fé que vou passar o Natal com todos vocês”, registrou um terceiro. “Por favor, mãe, não esquece de me mandar [tempero] Sazon e [cigarro de palha] Arapiraca”, pediu o quarto detento. 

Essas frases foram extraídas de cartas escritas a próprio punho, e escaneadas para serem enviadas por e-mail aos respectivos destinatários, por quatro detentos do Centro de Detenção Provisória de Jundiaí. Eles fazem parte das estatísticas que mostram um aumento de 85% no número de correspondências trocadas entre presos e familiares, nos últimos meses, no estado de São Paulo.

Desde março, quando foi determinada a suspensão das visitas por causa da pandemia de Covid-19, os 214 mil prisioneiros do estado deixaram de poder encontrar seus familiares. O efeito colateral foi imediato. Entre 26 de junho e 26 de outubro, foram recebidas 1.519.462 cartas pelo projeto Conexão Familiar. “No começo de abril, criamos um sistema para familiares enviarem mensagens de até 2 mil caracteres para seus parentes”, explica Alexandre Apolinário, diretor da unidade de Jundiaí. Com 1.082 presos, a unidade da cidade recebia até a pandemia 700 cartas físicas por semana. Hoje, recebe cerca de 500 cartas físicas – mais outras 800 correspondências eletrônicas de parentes, toda semana. “Não se trata de agrado: é direito do preso ter essa comunicação, que também faz parte do processo de ressocialização.” 

Em Jundiaí, o agente penitenciário Valmir Morales tem a missão de ler todas as cartas eletrônicas para então fazer uma triagem. Menos de 1% não é aprovada. Ficam retidos na peneira textos que registrem nomes de policiais responsáveis por alguma investigação, números de telefone ou que contenham relatos de supostos casos de adultério matrimonial da esposa em liberdade. As correspondências aprovadas chamam a atenção pela presença das palavras “saudade” e “Deus”. “Eu diria que essas duas palavras estão em 99% das cartas”, conta Morales. 

As cartas eletrônicas são impressas e entregues aos presos em suas celas. Cada interno pode receber duas cartas por semana. Eles podem respondê-las no verso do mesmo papel, em canetas nas cores verde ou vermelha, que então Morales digitaliza para enviar por e-mail aos parentes. “No começo da pandemia, recebemos muitas ligações de mães pedindo ajuda para abrir PDF”, lembra o agente. 

Ao contrário das cartas físicas, as correspondências eletrônicas têm menor apelo amoroso e sexual. “Aquela coisa de mandar foto, perfumar o papel e colocar coraçãozinho ficou de lado”, diz Morales. Faz sentido que seja assim: 70% dos remetentes eletrônicos são mães e irmãs dos prisioneiros. Os presos têm até cinco dias para responder. Muitos ultrapassam esse tempo para ficar com o papel em mãos, lendo e relendo. “As cartas ajudam a passar os dias”, conta Cristiano Aparecido dos Santos, de 30 anos, condenado por homicídio. Loiro e de porte atlético, ele cumpre pena há três anos e três meses, de um total de dezoito anos. “Minha irmã me visitava a cada quinze dias.”

Com as constantes greves dos Correios, os presos ficaram sem receber cartas e caixas de Sedex com itens como produtos de higiene e cigarros. A importância da correspondência eletrônica, portanto, cresceu – e também o número de mensagens trocadas. “Neste momento em que eles assistem pela tevê que os casos de mortes pela Covid estão diminuindo, há uma ansiedade para o retorno das visitas”, conta Alexandre Apolinário. 

Alguns estados já retomaram as visitas dentro do sistema prisional, de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional, a exemplo do Acre, Amapá, Ceará, Maranhão, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Outros, como o Paraná, permitem visitas virtuais, por videochamada. Em São Paulo, familiares de presos organizaram um protesto em agosto para pedir o retorno das visitas, sem sucesso. A Secretaria de Administração Penitenciária do estado diz cumprir ordem judicial para seguir com a suspensão das visitas.

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