Elói Iglesias em uma de suas performances na Festa da Chiquita, em Belém Foto: Divulgação
Devotos do profano
Uma festa para o público LGBTQIA+ atrai fiéis (e também reprovação) no Círio de Nazaré
Janete Suellen, 36 anos, cria da Igreja Católica, aprendeu cedo a reverenciar Nossa Senhora de Nazaré, padroeira do Pará. A admiração pela imagem divina foi herdada do tio Ariosvaldo, um tradicional promisseiro, daqueles que não largam a corda que liga a santa aos seguidores do Círio de Nazaré, a festa religiosa de Belém. Ariosvaldo participa há trinta anos da cerimônia, que acontece sempre no segundo domingo de outubro.
O fato de Suellen ser uma mulher bissexual nunca foi um empecilho para sua devoção. Aos 25 anos, ela pagou sua primeira promessa a “Nazinha” – apelido que os paraenses deram à mãe de Jesus. O acordo divino foi selado em 2012. Na época, a jovem estava grávida e passava por maus bocados. “Minha segunda gestação foi de muita dificuldade. Por isso prometi que, se o meu filho nascesse com saúde, eu iria doar, todos os anos, cem garrafas d’água na procissão”, ela conta. “Além disso, eu estava num momento de muita dificuldade financeira, sentimental, espiritual… Fazer isso me fortaleceu.” O bebê nasceu saudável.
Há onze anos, Suellen organiza um almoço bem servido no domingo de Círio. Recebe em sua casa dezenas de devotos recém-saídos da principal procissão do dia, que acontece de manhã cedo, no Centro de Belém. É tão dedicada a Nazaré que seus amigos chamam-na de “Nazanete”, em vez de Janete, seu primeiro nome. A anfitriã serve maniçoba, pato no tucupi, açaí com farinha d’água e outros pratos paraenses. “É como se fosse Natal”, ela diz. “Decoro minha casa com coisas temáticas. Todos os anos vêm entre trinta e quarenta pessoas.”
O almoço na casa de Suellen entrou para o roteiro de festividades abertas à comunidade LGBTQIA+, que ainda sofre com preconceito de parte dos fiéis. Mas o principal evento voltado para esse público acontece no dia anterior ao Círio: trata-se da Festa da Chiquita.
Suellen comparece todo ano, sem falta, mesmo tendo que servir o almoço no dia seguinte. A Festa da Chiquita foi criada no final dos anos 1970 por Luís Bandeira, um sociólogo carioca, e na época se chamava Festa da Maria Chiquita. A ideia do folião era oferecer um evento com divertido e carnavalesco, ainda que associado à padroeira de Belém. O nome da festa foi inspirado em Chiquita Bacana, antigo personagem de marchinhas de Carnaval que foi resgatado por Caetano Veloso na música “A filha da Chiquita Bacana”, lançada em 1977.
O evento cresceu mesmo na década de 1990, quando passou a ser realizado na Praça da República com um line up diversificado de artistas. Só então se tornou um ponto de encontro da comunidade LGBTQIA+. Neste sábado, 7 de outubro, a festa começará por volta das onze da noite e terminará nas primeiras horas da manhã de domingo, quando, seguindo a tradição, parte do público irá direto para a procissão do Círio de Nazaré. Estima-se que 50 mil pessoas devam comparecer à Festa da Chiquita este ano. Entre elas, Suellen e seus amigos.
Elói Iglesias é um homem gay de 68 anos, olhos castanhos e totalmente careca. Figura conhecida na cena cultural de Belém há quatro décadas, ele teve uma carreira musical de relativo sucesso. É de sua autoria a música Pecados de Adão, que bombou nos anos 1980 e é muito conhecida até hoje. Iglesias é também um performer: em nome da arte, já se apresentou tomando um banho com 30 litros de açaí no salão da Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves. E é ele quem organiza, há mais de trinta anos, a Festa da Chiquita.
Em outubro de 2004, o evento foi reconhecido como parte das celebrações do Círio de Nazaré, que, naquele ano, foi tombado pelo Iphan, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Em 2013, a Unesco, partindo da decisão do Iphan, concedeu ao Círio o título de patrimônio imaterial da humanidade. A Igreja Católica, diferentemente do Iphan, não inclui a Chiquita na agenda oficial de homenagens a Nossa Senhora de Nazaré. A festa, considerada profana, encontra resistência entre fiéis conservadores. Por isso, a realização do evento numa praça pública já foi contestada. Ele conseguiu se manter, apesar das críticas.
Iglesias conta que a festa já sofreu intimidação de policiais e xingamentos na rua. Hostilidades desse tipo são velhas conhecidas do artista, que se maquia e veste fantasias extravagantes durante a celebração. Uma de suas vestes lembra uma armadura dourada, com duas ombreiras apontando para os lados e chifres na cabeça.
Ele minimiza os ataques, que, por mais numerosos que fossem, nunca inviabilizaram a festa. A aceitação tornou-se maior de uns anos para cá. “Só o fato de estarmos vivos, é uma felicidade. Significa que a gente conseguiu criar um território de discussão, de liberdade, para mostrar que nós estamos aqui e sobre um tapete vermelho. Saímos daquele momento que achávamos que tínhamos que ficar no armário. O armário foi quebrado”, diz Iglesias.
Entre os apoiadores mais célebres da Festa da Chiquita está a cantora paraense Fafá de Belém. Num vídeo recente, publicado no perfil de Instagram do evento, Fafá celebrou o que considera ser “a festa da diversidade”. Imodesto, Iglesias diz que “não tem mais jeito”: “as pessoas estão com a gente, o lugar onde a festa ocorre é um território nosso por direito.”
A Festa da Chiquita começa depois que se encerra, na noite de sábado, a quinta procissão do Círio de Nazaré, chamada de “Transladação”. É o momento em que a imagem de Nazaré chega à Catedral da Sé. É preciso energia para emendar a festa na sexta procissão – o Círio de Nazaré, propriamente dito. “A gente vai de uma festa profana pra uma festa religiosa e a fé continua, de uma maneira inexplicável”, diz Ederson Modesto. Ele é gay, tem 27 anos e frequenta desde 2019 a celebração organizada por Elói Iglesias. “A Festa da Chiquita, assim como o Círio, acolhe qualquer pessoa, independentemente de etnia, cor ou sexualidade.”
O evento foi se profissionalizando com o passar dos anos. Hoje os organizadores têm ajuda de uma assessoria, que auxilia no contato com os artistas e na divulgação. “Esse ano a gente conseguiu ter uma equipe profissional fazendo toda a imagem da festa. Fizemos isso com pouca antecedência, mas está dando certo”, disse Iglesias à piauí. “Estamos conseguindo nos fazer presentes nas redes sociais, mesmo que por enquanto seja uma coisa mais orgânica.”
Neste sábado, Janete Suellen vai, antes de tudo, pagar sua promessa. Levará cem garrafas d’água para refrescar os fiéis em procissão. Acertada a dívida com a santa, partirá para a Festa da Chiquita. De lá, para o almoço. A celebração só acaba mesmo na segunda-feira.
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