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    Brigadistas caminhando sobre uma das áreas devastadas pelo incêndio em Itatiaia, em agosto de 2010 Foto: Luiz Coslope

diário

Memórias de fogo e câimbra

O que aprendi como brigadista voluntário em um incêndio no Parque Nacional do Itatiaia

Pablo Casella, especial para a piauí | 06 ago 2024_08h07
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Em agosto de 2010 eu era analista ambiental no Parque Nacional da Chapada Diamantina já havia mais de sete anos. Durante seis deles, fui colega do Luiz Coslope, com quem aprendi tudo que sei sobre incêndios florestais e construí uma relação fraterna típica do clichê “o irmão que nunca tive”. Nessa data, havia pouco tempo que o Luiz, conhecido entre os amigos brigadistas da Chapada como “seu Lula”, tinha sido transferido para o Parque Nacional do Itatiaia. Ele chegou com uma missão muito interessante, cuidar da parte alta do Parque, o Planalto do Itatiaia, e para isso residia numa casa construída toda em pedra, nos anos 1930, para Getúlio Vargas – a famosa “Casa de Pedra”. Na primeira visita que fiz ao amigo, durante as minhas férias, nos deparamos com o velho e indesejado conhecido, um incêndio florestal.

O episódio foi marcante para mim e, gosto de acreditar, de alguma forma trouxe um bom legado para o Itatiaia. Logo após essa experiência, escrevi um relato para, quem sabe, publicá-la na seção diário da piauí, motivado por algo que já naquela época me mobilizava, a vontade de compartilhar esse universo tão magnífico quanto desconhecido do combate a incêndios florestais. O relato não saiu na época e, quatorze anos depois, trilhei outro caminho para um propósito semelhante, a publicação do romance Contra Fogo (editora Todavia).

Lembrei das minhas anotações quando soube do incêndio florestal ocorrido no Planalto do Itatiaia em meados de junho deste ano (suas circunstâncias são pouco claras: cadetes do Exército faziam um treinamento no local onde o fogo começou, fato que está sendo investigado pelo Ministério Público Federal). O relato, me parece, ainda cumpre o papel de trazer esse universo – com suas angústias, aventuras e emoções – para mais perto das pessoas que nunca tiveram qualquer familiaridade com o tema. E agora talvez funcione como um interessante registro histórico.

 

13 de agosto de 2010

6h05: Arrumo uma pequena muda de roupa numa pequena mochila. Por economia de espaço e exercício de desprendimento, escolho somente o essencial. Deixo as frutas secas na casa da minha mãe, afinal, estou no Sudeste, onde é relativamente fácil encontrar frutas secas e castanhas e comidas vegetarianas gostosas em mercadinhos. Como minha ida à casa do Luiz tem como propósito o lazer e o deleite que a fronteira entre urbanidade exacerbada e ambiente natural podem oferecer, imagino que por lá comeremos coisas bacanas depois de boas horas de esforço físico nas caminhadas e escaladas que o Itatiaia oferece.

6h30: Depois de devolver o carro do Beto, que peguei emprestado dias antes, chego a tempo de embarcar no ônibus para a cidade de Engenheiro Passos.

7h30: O Luiz me busca no ponto de ônibus. Apesar da saudade, o encontro é muito familiar – de fato não faz tanto tempo que ele partiu de Palmeiras [onde vivíamos, na Bahia]. Seguimos em direção à casa dele por uma rodovia que está em obras. No caminho conversamos sobre algumas diferenças e semelhanças do primeiro Parque Nacional do país com o da Chapada Diamantina.

7h50: Pelo rádio ouvimos a informação, fogo no Rancho Caído. Percebo a súbita mudança no olhar de Luiz. Parece conter surpresa, mas não propriamente. Putz, cara. Esse é o fogo que, faz tempo, a gente estava com medo que acontecesse. Uma mão no volante, a outra roçando o botão do rádio. Eu já falei com o chefe do Parque, até agora os incêndios que apagamos foram colocados por moleques. Quando os profissionais começassem a tacar fogo, seria por essa região. Aperta o botão, mas não transmite mensagem alguma. Fodeu, Casella. Nos entreolhamos e, imagino, meu olhar deve ter comunicado: já que tô aqui… 

Há uma barreira na estrada, daquelas feitas para que um trecho seja consertado enquanto a outra mão da rodovia tem trânsito livre. O Luiz comunica ao rapaz que cuida do bloqueio: véio, colocaram fogo no Parque… tá com fogo no Parque, não posso esperar. Talvez a frase mais inusitada que o funcionário tenha ouvido durante toda sua vida profissional de parador de “siga-e-pare”. Mas tem carro vindo do outro lado, ele alerta. Eu tomo cuidado, o Luiz responde, praticamente ao mesmo tempo em que ultrapassa o cone de segurança seguindo pela contramão no trecho bloqueado.

Por volta das 8h30: Chegamos à casa do Luiz. Não há muito tempo para que eu admire a famosa residência serrana construída pelo presidente Getúlio para veraneio, envolta em mistérios e histórias que tangenciam até o nazismo. Pegamos algumas coisas, seleciono roupas que trouxe. Pego emprestado com o Luiz calça, camiseta, gandola e mochila. O tênis será o meu mesmo, comprado dois dias atrás, eficiente apenas para andar em shopping centers. Pelo rádio, o Luiz consegue traçar um rascunho da estratégia que seguiremos para o combate. Quantidade de brigadistas, quem transporta, local de acesso e alimentação.

Cerca de 9h20: A caminho do povoado onde moram os brigadistas contratados para aquela porção do Parque, encontramos alguns pela estrada. Aqui a brigada é com moto, brinca seu Lula, enquanto vários nos ultrapassam com suas motocicletas em direção ao local de acesso ao fogo. Encomendamos alguns alimentos numa lanchonete rural de um povoado. Na volta pegaremos a encomenda. Fica claro que pagaremos mais tarde, não hoje, não sabemos ao certo quando.

Cerca de 10h00: Todos os brigadistas estão reunidos no local de acesso ao fogo. Há uma brigadista mulher, recém-integrada à equipe, devido ao atraso na entrega de seus equipamentos, ainda sem calça e calçado apropriados para o combate. Ela diz que seguirá assim mesmo, com calça jeans e o sapato talvez da estima de alguma cantora de rodeio.

Cerca de 11h00: Outros brigadistas nos esperavam num dos postos de controle de acesso ao Parque, chamado de Posto Três, ou Posto Marcão. Antes de nos deslocarmos todos, seguimos em direção a uma torre de telecomunicações instalada num pico próximo. Desse mirante percebemos, assombrados, que uma parte do incêndio está muito mais próxima de nós do que faziam supor as informações até então colhidas. Isso significa uma coisa: o incêndio é maior e mais voraz do que se acreditava.

11h50: Chegamos, todos, ao Abrigo Rebouças, famoso entre os montanhistas de todo o país. No momento, ocupado por homens do Bope que terminarão, hoje mesmo, uma etapa daquele curso popularizado no filme Tropa de Elite. Havia 170 inscritos, no começo. Hoje, no Abrigo, restavam dezessete sobreviventes. Passamos apressados por alguns oficiais inertes em frente ao Abrigo e seguimos em fila indiana rumo ao incêndio. Desde o início do percurso percebemos que a fila vai se espichar bastante, em razão de haver alguns muito mais velozes do que outros. Passamos na base do Pico das Agulhas Negras e, ao contornarmos a Pedra do Altar, dividimos a brigada. Cerca de dez brigadistas seguem para o que diagnosticamos ser a retaguarda do incêndio. Os demais, quase trinta, seguem no sentido da Pedra dos Ovos da Galinha para alcançar o flanco direito e, com esperança, a cabeça do incêndio (isto é, a parte que avança mais rapidamente, impulsionada pelo vento).

Cerca de 14h00: Contornamos a Pedra dos Ovos da Galinha e, enquanto caminhamos, traçamos uma estratégia: romper a linha de fogo para, a partir dali, realizarmos uma nova divisão do grupo. Abastecemos as bombas costais com água de um brejo bem próximo.

14h40: Iniciamos o combate. Há muito vento e, apesar da altitude nos blindar um pouco do calor, é um dia de sol forte. Na empolgação do primeiro ataque, conseguimos romper a linha de fogo com alguma facilidade e apagamos cerca de 150 metros do incêndio. Minutos depois olhamos para trás e averiguamos que todo o trabalho foi perdido: o fogo retornou por toda a linha. O rescaldo não foi suficiente. Alguns brigadistas retrocedem na linha de progressão para tentar segurar o pouco do trabalho já feito. A visão de toda a enorme extensão de fogo que ainda precisamos enfrentar, à nossa frente, causa desânimo. Tenho câimbras nas duas pernas, praticamente devidas apenas ao esforço da caminhada para chegar até aqui. Patético. Não consigo prosseguir. Deito junto às mochilas que deixamos numa área de pedra protegida do fogo. Faço alguns alongamentos e convenço a mim mesmo que o melhor a fazer é dar tempo para o próprio corpo resolver a situação. Reflito mentalmente sobre dois temas: i) a fisiologia da câimbra e ii) não posso atrapalhar o combate e a progressão da brigada. 

A circunstância me ajudou a não atrapalhar. Os minutos do meu fracasso físico coincidiram com o momento em que os demais brigadistas constataram que não renderíamos nada naquele combate durante o dia. Consigo reaver a magnífica herança de nossos ancestrais bípedes e vou ao encontro de alguns colegas. Informo com autoridade, delegada a mim por ninguém, que não vai dar, não. Mensagem adequadamente compreendida pelos companheiros como: não lograremos êxito algum combatendo no pior horário do dia, quando há alta temperatura e ventos fortes. Talvez para efeito de ênfase, ou para legitimar meu ímpeto palpiteiro, arremato com um pelo menos, sempre é assim na Chapada. Me encontro com o Luiz para fazer as mesmas considerações, as quais ele, em minha opinião o maior especialista em combate a incêndios do país, já havia alcançado, obviamente. 

Pelo rádio descobrimos que há um helicóptero na área para auxiliar o combate. Seu Lula brinca, tá vendo? Aqui é assim, em referência aos desastres reincidentes que a Chapada enfrenta, quando solicita aeronaves e elas nunca vêm em tempo hábil, geralmente vários dias após o necessário. O helicóptero aparece sobre nossas cabeças, mas pelas informações do rádio deduzimos que ele não ajudará muito sem conseguir pousar no terreno selvagem do Planalto do Itatiaia, onde o incêndio se desenrola. O piloto não conseguiu nem pousar no heliporto do Abrigo Rebouças, avisou uma voz ao rádio. Isso faz da sonhada máquina voadora uma ajuda inútil. Em paralelo, eu e seu Lula fazemos lobby junto aos brigadistas para que permaneçamos no incêndio por toda a madrugada, até o amanhecer, quando então voltaríamos pra casa. Vários deles se entusiasmam com a proposta, o que nos permitiu montar uma boa brigada com os que concordaram. Informamos a decisão pelo rádio. 

Há um certo clima de novidade em tudo isso. De apreensão, na verdade. Nesta parte do país não se pratica o combate noturno. Apesar das primeiras tentativas de demover-nos da empreitada, acabamos recebendo a garantia de que haverá fornecimento de alimentação e sacos de dormir para a brigada que permanecerá noite adentro. O grupo que se separou de nós em direção à retaguarda do fogo informa pelo rádio que retornará ao Abrigo Rebouças.

Eu, durante o combate, numa fotografia do amigo Luiz

 

Cerca de 17h30: Retomamos o combate no mesmo ponto em que estávamos. A linha de fogo, evidentemente, avançou vários metros. Logo nos primeiros ataques, é perceptível a melhora em nossa eficiência de combate a essa hora. Meu abafador gradualmente diminui sua contribuição ao trabalho coletivo, refletindo a intensidade das dores alinhadas em minhas pernas, evidenciando a existência de cordões que, tenho convicção, não apareciam nos meus atlas do corpo humano. Em segundos, os golpes do abafador cessam e os cordões, em ambas as pernas, com uma engenharia ininteligível ou com um caprichoso trançado, formam uma sequência de nós. Outra crise de câimbras e minhas pernas têm a nítida recordação do esforço que fizeram nas subidas íngremes para chegarem até aquelas altitudes. As mesmas preocupações de antes ocupam meus pensamentos e, outra vez, o remédio que me resta é deitar e aguardar pelo improvável. 

Quando a desacreditada recuperação acontece, ainda estou próximo da brigada em combate. Deste momento em diante seguirei muito atento às pernas, pensando que será muito mais complicado deitar sozinho, distante da frente de combate, durante a noite. Com mais prudência e vagar, contribuo com a brigada, que está, a olhos vistos, com uma admirável efetividade. A progressão do combate nos leva a centenas de metros de distância do ponto em que iniciamos o trabalho. Fazemos uma rápida reunião para um lanche. Alguns brigadistas que estavam distantes do meu grupo se reúnem conosco e, para minha alegria, trazem os queijos que o Luiz havia encomendado na lanchonete, pela manhã. Neste momento percebo que, até então, tudo que eu havia comido no dia fora um pão de queijo, às 6h20 da manhã. Um dos brigadistas mais experientes surge com um queijo que ele próprio produz. Uma dádiva sublime. Maná mineiro.

Cerca de 21h00: Depois de contornar uma montanha, reencontramos a linha de fogo. Imensa, intimidadora. Apesar da escuridão, observamos que o incêndio desce pela encosta que estamos alcançando, atravessa uma área plana, aparentemente cercada de morros, e continua, na margem oposta dessa planície, elevando-se por uma escarpa. Nessa vertente mais distante, avistamos um mistério, luzes de lanternas à curta distância da linha do fogo. Ninguém de nossa brigada tem conhecimento de outro grupo que esteja em combate. Não são de nenhuma brigada, afirmam. Quem são esses?

Os brigadistas mais conhecedores da região suspeitam que parte da linha de fogo que avistamos na planície está em uma grande área de brejo. Eu e um colega mais experiente seguimos na frente, como batedores em busca de um caminho seguro para que a brigada atravesse o atoleiro em vez de contorná-lo, o que nos custaria uma caminhada de quase uma hora. Alcançamos a borda da parte plana, caminhando próximos da linha de fogo, cuja claridade nos ilumina o trajeto e evidencia o lamaçal previsto à distância. Apesar das porções de solo úmido, cobertas por uma lâmina brilhante aquosa, há inúmeras touceiras de um tipo de capim do Planalto emergindo da inundação, sobre as quais é possível pisarmos em segurança. Buscamos esse “caminho das pedras”, dando pequenos saltos entre uma touceira e outra, avançando lameiro adentro. 

Uns 15 metros distante da borda do brejo, em uma passada auspiciosa, granjeio a façanha de mergulhar as duas pernas no solo lamacento e encharcado, molhando-as até a altura das coxas. O pensamento se concentra em não permitir que a mente entre em pânico. Lembro, ainda assim, que estou a mais de 2.500 metros de altitude. Que tem havido dias frios no Sudeste. Que não conheço a região. Que tive câimbras fortes e que popularmente também se atribui câimbra à água fria. Que teremos a madrugada inteira pela frente. Que não pretendo atrasar nem causar preocupação a nenhum dos brigadistas. Que a mente tem muito governo sobre o corpo. Que geralmente não tenho frio. Que já enfrentei muitos perrengues que outros acham insuportáveis e eu não. Que, apesar disso, não se deve subestimar a montanha – vai que os chiliques em montanha têm razão de ser? Enfim, que deverei, de agora em diante, permanecer sempre na vanguarda do combate, pois é lá que sempre tem fogo e é mais quentinho. O brigadista me ajuda a sair da embaraçosa cena e ao alcançarmos a borda da planície, retornando pelo mesmo caminho, encontramos a brigada já próxima, descendo a encosta no encalço do incêndio. 

Os brigadistas são comedidos na troça, talvez porque não tenham intimidade comigo, decerto por eu estar ali como voluntário, mas provavelmente entendem minha situação como preocupante. Com esse desfecho de vaca atolada (um dos brigadistas narra uma experiência passada nessa região na década de 1980, quando ele soltou catorze vacas para pastar no Planalto. Dias depois, quando voltou para buscá-las, encontrou apenas dez. Quatro morreram atoladas!), deliberamos por contornar o charco.

Cerca de 23h00: Um novo grupo de brigadistas nos alcança com refeições (pratos feitos em marmitas de alumínio) e sacos de dormir. Pego uma marmita e constato a presença de carne, que não consumo. Encaro umas poucas garfadas de arroz e ofereço o restante para um brigadista próximo.

Cerca de 23h30: Retomamos o combate. A cada momento, menos brigadistas estão empenhados no trabalho. Mesmo assim, pela incrível determinação de uns cinco ou seis combatentes, seguimos com considerável rendimento.

 

14 de agosto de 2010

02h20: Exaustos, decidimos descansar no ponto em que foram deixados os sacos de dormir, que, como segunda dádiva, são bem resistentes ao frio. Me regozijo internamente por ter trazido, na mochila, roupas secas, adequadas ao clima, e um outro par de meias. Com tal opulência, dormir será confortável à vera, mesmo estando sobre as cinzas recém-queimadas de um terreno em declividade (lembro-me de como era mais complicado achar um terreno macio como esse na Chapada).

5h30: A brigada toda está acordada. Ouço que o café da manhã disponível consiste em pão com presunto e refrigerante, itens banidos de minha dieta, e opto por nada comer, mesmo estando praticamente em jejum desde ontem. Aproveito o saco de dormir até o último instante. Retomamos o combate um pouco mais adiante do ponto em que paramos na madrugada. Eu e o Luiz, bem cansados, seguimos com bombas costais no trabalho de rescaldo – são importantes, mas eventualmente utilizadas pelos mais cansados como desculpa para andarem com mais vagar. A brigada está, em geral, muito cansada, com exceção dos mesmos cinco ou seis fortes combatentes da madrugada.

Cerca de 7h00: Eu e o Luiz encontramos dois brigadistas que não estavam conosco (não, não são os donos das lanternas avistadas na madrugada). Além de mim, que estou aqui de férias, são os únicos voluntários em combate. Na breve conversa, eles se admiram ao saber onde o Luiz mora. Que privilégio, você mora dentro do Parque… então você é filho do dono do Parque?, um deles graceja. Não, mas sou amigo do dono, seu Lula devolve. Os dois comentam que também atuaram como voluntários no combate em 2007, quando ocorreu um dos piores incêndios da história do Parque Nacional do Itatiaia. Nós queríamos continuar em combate à noite, mas eles nos proibiam de permanecer. Tiravam a gente do combate, sem a nossa vontade… O tom e o clima da conversa comprovam uma informação que o Luiz havia me dado, de que no Itatiaia a população gosta e admira o trabalho dos servidores do Parque… muito diferente do que vivemos na Chapada.

Cerca de 10h00: A linha de fogo prossegue por uma descida muito íngreme, praticamente intransponível. Para continuar o combate será necessário – e prudente – contornarmos uma montanha em uma grande e demorada volta. O prenúncio desse imenso arrodeio, acrescido da exaustão em que estamos, resultou na proposta de sairmos do combate. Alguns argumentam que já fizemos todo o possível. A informação que recebemos pelo rádio de que outras brigadas estão a caminho e podem nos substituir fortaleceu bastante a sugestão de retornarmos. Quase todos concordam, com exceção de dois daqueles incansáveis brigadistas.

Cerca de 11h00: No caminho de volta, encontramos os brigadistas que nos substituirão. Pelo rádio há notícias de que dois outros helicópteros chegarão para ajudar no combate. A fila indiana de nossa brigada de quase trinta brigadistas fica cada vez mais extensa, há grande disparidade entre o rendimento na caminhada. Mesmo com parte da paisagem tomada por áreas queimadas, ainda é possível ver ângulos de lindas montanhas intactas. O cansaço e a fome são subjugados por uma pontinha de satisfação, de orgulho, ao pensar que nosso trabalho conseguiu salvar do fogo a Pedra dos Ovos da Galinha e todo o pico das Agulhas Negras. Se nesse combate tivesse se mantido a tradição de só se combater durante o dia, certamente esses patrimônios cênicos estariam todos queimados agora.

Cerca de 15h00: Chegamos ao Abrigo Rebouças, onde há mais algumas marmitas. Não como nada das marmitas, mas compenso devorando oito laranjas.

Cerca de 16h00: No Posto Marcão está o gerente de fogo do Parque. Aproveito o meu papel de analista ambiental visitante-voluntário e enfatizo a eficácia do combate noturno, ciente de que há resistência a essa ação em grande parte dos responsáveis por combate a incêndios florestais do país (deve ser um legado, equivocado em minha opinião, deixado pela doutrina militar que se infiltrou nas instituições civis). Nos despedimos dos brigadistas e percebo que vários deles demonstram admiração pelo meu voluntariado. Alguns manifestam, explicitamente, que se estivessem em meu lugar, quando eu soube do incêndio, jamais teriam continuado, teriam evitado entrar em combate. Embora já tivesse sido informado pelo Luiz, ainda tenho alguma estranheza ao notar que no Itatiaia o voluntariado representa raridade, um acontecimento inusitado. Sobretudo em contraste com a Chapada Diamantina, onde esse movimento, de voluntariado para combate a incêndios florestais por motivação conservacionista, deve ter nascido há mais de duas décadas.

Cerca de 17h00: Retornamos à casa do Luiz, onde, antes da ocorrência do incêndio, havia uma festa preparada para hoje. Seria uma celebração pela chegada dele ao Itatiaia, pela presença institucional (leia-se, presença do Luiz) na parte alta e mineira do Parque Nacional. A festa, nós imaginávamos àquela altura, teria sido abortada por motivos óbvios. Nem tanto. Ao chegarmos à casa fomos surpreendidos por uma mesa bem suprida de frutas e aperitivos típicos desses eventos. Para menor desconforto do seu Lula, contumaz fugitivo de festas, apenas o chefe do Parque e sua esposa estavam presentes, decorrendo, disso, o fim precoce da festa que nem se iniciou. Terceira dádiva. 

A casa está a 2000 metros de altitude. Pelos cálculos superficiais, mas plausíveis, do Luiz, deve ser a residência mais alta do Brasil. A visão é sempre por cima das nuvens e, por isso, praticamente todo dia há nítida visão do pôr do sol. O de hoje foi especial, auxiliado pelo lindo efeito que um horizonte enfumaçado proporciona.

Aquelas lanternas misteriosas que avistamos na noite anterior, próximas à linha de fogo, nunca soubemos de quem eram.

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