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    "No intervalo de uma série de supinos, me peguei pensando num tuíte: 'Pior que o supino é o desceno'. Mais uma vez, encarei o abismo de um aplicativo vazio." Ilustração: André Dahmer

anais da abstinência

A vida sem dar um pio

O diário de um tuiteiro contumaz forçado a desapegar da plataforma

Gilberto Porcidonio, do Rio de Janeiro | 03 set 2024_09h24
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Olá, meu nome é Gilberto, sou jornalista e estou há três dias e algumas horas sem usar o X (antigo Twitter). Passo bem. Mas, como parte desse detox da mais “tox” das redes sociais, resolvi escrever um diário relatando como está minha vida sem tuitar e ler fios com opiniões não solicitadas sobre os assuntos mais triviais, como a verdadeira cor de um vestido e a soberania nacional. Quem sabe isso possa ajudar outras pessoas que também estejam em abstinência. Segue o fio digo, diário:

 

Sábado, 31 de agosto

10h – Acordei e, como quem acende um cigarro matinal, abri o X no celular. Notei que o aplicativo estava fora do ar. Tentei usar o X para descobrir o que tinha acontecido.

10h15 – Por outros meios, fiquei sabendo que o X estava suspenso porque seu atual dono e rebatizador, Elon Musk, achou que Brasil era bagunça. Nada que me surpreendesse muito, já que, desde que foi comprado pelo bilionário em 2022, o ex-Twitter andava cheio de movimentos bruscos e estranhos, falta de freios e combustão espontânea. O Musk confundiu a plataforma com seus carros elétricos.

13h30 – Decidimos sair para almoçar, eu e minha companheira. Tentei checar no X se o trajeto que faríamos até o restaurante estava engarrafado. Como não consegui, recorri ao Instagram. Me distraí com uma receita de tiramisù de pistache. Ficamos engarrafados.

17h30 – Cogitei abrir uma conta no Mastodon, que parece nome de banda de heavy metal. Depois cogitei abrir uma conta no Bluesky, que parece nome de música do Mastodon.

18h – Entrei no Threads, que tenta ser um X sem golpe de Estado. Mas lá é vazio demais, quieto demais… Cadê aquele algoritmo raiz que faz os tecnocratas do Vale do Silício lucrarem com a nossa reatividade? Não se brinca com as tradições.

19h30 – Tristeza. Pensei numa tirada ótima e não pude submetê-la ao crivo da POPARA (Polícia da Paranomásia Rasteira) do X. Custava tanto respeitar as leis da nação, Musk? Agora me resta postá-la na mais anciã das redes atuais: o Facebook.

21h – Fui a um show e não pude tuitar “estou em um show”. Tive que me conformar em fazer um cafona e protocolar story. A Geração Z me achará cringe. Mais tarde, voltei para casa, escovei os dentes e me deitei. Ao programar o alarme, o dedo escorregou para o aplicativo do X ali ao lado, inerte. Senti um vazio causado pela falta de conteúdo estressante na hora de dormir. Deve ser déficit de cortisol.

 

Domingo, 1º de setembro

11h – Acordei, passei um café, fui para a janela e, fitando o céu azul enquanto a fumaça ascendia da xícara quente, refleti: qual direito humano básico deve estar sendo sumariamente vilipendiado neste momento?

14h – Almocei perto de casa, ouvi gritos e soube que estava em curso um jogo de futebol. Fiquei triste por não saber disso pelas sequências de palavrões em caixa alta nos trending topics. Lá se vai outra tradição do esporte.

18h14 – Soube que estão fazendo uma campanha para ajudar donos de páginas de Instagram que lucram com prints alheios extraídos do X. Como eu já era uma fonte involuntária deles, resolvi contribuir com um NFT: Não Furtem Tweets.

20h – Minha esposa me perguntou o que eu estava fazendo, olhando obsessivamente para o celular. Menti, dizendo que estava em um site de pornografia. Ela insistiu. Respondi, dessa vez, que eu estava curtindo o jogo do tigrinho. Conhecendo-me bem, ela perguntou se eu estava tentando entrar no X de novo. Não consegui disfarçar e contei a verdade. Nos abraçamos por longos minutos.


Segunda-feira, 2 de setembro

1h – Acordei de madrugada e liguei o celular. Vi que ainda era cedo e, meio sem querer, cliquei no aplicativo ainda inútil. Me senti fora da linha do tempo. Uma arroba errante que vaga a esmo pelo grande nada do espaço. Postei isso nas redes similares para ver se mais alguém se sentia assim. Continuei no vácuo. 

9h – Acordei de vez, passei um café e me vi novamente de cara para o aplicativo vazio. Fiquei tentando imaginar como está sendo a vida de quem usa VPN [rede virtual privada, na sigla em inglês] para disfarçar seu país de origem e, com isso, driblar o bloqueio do X. Me imaginei fazendo isso e postando um fio sobre as semelhanças que eu via entre Chaves e The Office. Fantasiei sobre a discussão ferrenha que eu provocaria com os fãs de The Office. Depois me imaginei sendo atacado por uma horda de officeminions e tendo que excluir a conta por causa das ameaças.

9h40 – Tomei o café frio.

15h- Fui ao supermercado e vi que o preço do azeite estava estratosférico. Pensei num tuíte: “O preço do azeite está saindo pelo litro do azeite.” Vida que segue.

19h – Fui na academia malhar, digo, treinar. No intervalo de uma série de supinos, me peguei pensando num tuíte: “Pior que o supino é o desceno.” Mais uma vez, me vi encarando o abismo do aplicativo vazio. Para mim, era apenas a casca de algo que perdeu sua força vital há tempos e que, em vão, tentava manter as aparências. Um personal trainer, parado num aparelho de ginástica, me mirava com o mesmo olhar.

21h20 – Começou a novela e eu fiquei sem saber o que estava acontecendo, que personagem fazia o quê. Ver televisão pelo X era uma experiência realmente muito legal. Era como ouvir a tevê pelo rádio, só que pelos olhos.

23h – Tomei banho e me preparei para dormir. Antes de pregar o olho, rezei para que o bilionário sul-africano abrandasse o coração, onde quer que ele estivesse, e entendesse que países têm leis, jurisdições etc. Vai que.

 

Terça-feira, 3 de setembro

8h30 – Acordei sobressaltado, pois esqueci de programar o despertador. Não abri o X e nem senti falta de fazer isso. Há tempos eu não dormia tão bem.

9h – Atrasado, corri para pegar um táxi. No caminho, o taxista reclamou da “marra dos guardas de trânsito”. Depois emendou ataques gratuitos aos “pivetes que saíam das periferias pra fazer baderna nas praias da Zona Sul”. Na sequência, esbravejou que aquela turma toda deve “ter feito o L esperando ganhar picanha”. Inesperadamente, sorri. Enfim, eu matava a saudade do conteúdo maravilhoso do X.

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