Ilustração de Carvall
Discurso vazio
Nos palanques, Bolsonaro continua vociferando em favor de policiais, mas na prática não faz nada para valorizá-los
Pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e do Ibope, divulgada em 16 de dezembro, mostrou que, entre as nove áreas de atuação do governo federal avaliadas pelos brasileiros, a da segurança pública registrou a maior queda no percentual de aprovação. Foi um recuo de 7 pontos na comparação com o levantamento anterior, de setembro. Poucos se deram conta, mas essa queda fez Jair Bolsonaro acusar o golpe da impopularidade e dar sinais de nervosismo, ainda mais por se tratar de um setor que ele acredita ser sua capitania hereditária.
Enquanto continua em silêncio diante do aumento de 7% da violência no primeiro semestre, o presidente volta a atacar instituições democráticas e a se colocar (e ser colocado) como porta-voz dos “injustiçados” policiais brasileiros. Ao agir desse modo, Bolsonaro tenta reverter as más notícias na segurança pública e, sobretudo, se reaproximar de sua base eleitoral após a derrota nas últimas eleições municipais do grupo de extrema direita que lhe dá suporte e que, em 2018, incluía vários policiais-candidatos. Nas eleições deste ano, seja por pragmatismo ou por decepção com falsas promessas, os policiais preferiram se candidatar, proporcionalmente, mais por partidos de centro-direita.
No último dia 15, o presidente afirmou, numa visita à Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp), seu desejo de ver o Congresso votar a sua proposta de ampliação do excludente de ilicitude. O projeto prevê que policiais e militares sejam eximidos de responsabilidade por mortes causadas em serviço, independentemente da investigação do Ministério Público e da análise do Poder Judiciário. O desejo de Bolsonaro foi renovado com a expectativa em torno da futura eleição para as presidências da Câmara e do Senado, no início de 2021. Ainda na visita, ele declarou que, “entre a vida de um policial e a de mil vagabundos, ou de 111 vagabundos, um número bem emblemático, eu fico com o policial militar”. Fazia uma alusão ao Massacre do Carandiru, de 1992, em que 111 detentos acabaram mortos.
Nessa mesma ocasião, Bolsonaro, sem máscara e promovendo aglomeração dos espectadores, dançou ao som da banda da PM paulista, que animava o evento. Ele também brincou com um dos policiais militares ao lhe tirar o quepe e colocá-lo em sua própria cabeça. As fotografias que flagraram o momento mostram muitos outros PMs em êxtase diante do “mito”.
No dia anterior, um vídeo compartilhado nas redes sociais do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) passou quase despercebido pela mídia: em outra formatura, desta vez da Polícia Federal, Jair Bolsonaro esperou o fim da cerimônia para voltar ao púlpito e entoar o grito “acabou, porra!”, em referência à sua fala de maio contra as ações do Supremo Tribunal Federal. À época, o ministro Alexandre de Moraes havia autorizado a mesma PF a realizar operação em cinco estados e no Distrito Federal como parte do inquérito das fake news.
O vídeo também mostra que, após a frase do presidente, os formandos gritaram “mito, mito, mito”. Pouco antes, a oradora da turma que se formava já havia feito um discurso de agradecimento ao apoio de Bolsonaro à categoria. “O senhor foi um instrumento de Deus nas nossas vidas”, disse Michelle Ávila dos Santos.
Na sexta-feira, dia 18, o presidente aproveitou a formatura de policiais militares, agora no Rio de Janeiro, para faturar em cima do mal-estar provocado na corporação depois que o governador fluminense, Cláudio Castro, exonerou a tenente-coronel Gabryela Dantas do cargo de porta-voz da PM. Ela foi punida por publicar um vídeo nas redes sociais em que critica um repórter dos jornais Extra e O Globo. Na cerimônia, Bolsonaro fez duros ataques à imprensa. Segundo o governante, a mídia “defende canalhas” e “sempre estará contra” os agentes públicos de segurança.
O mais inacreditável nessa sequência de episódios, que pretende reengajar e remobilizar os apoiadores largados pelo caminho da realpolitik, é que ainda encontre eco entre os profissionais da segurança pública. No discurso e na prática, o governo Bolsonaro dá provas de que os policiais são, ao fim e ao cabo, mera massa de manobra de suas maquinações e só são lembrados na hora do pesadelo.
A valentia diante dos microfones não se traduz em ações de valorização dos policiais. Agora, no dia 27 de dezembro, vence o prazo estabelecido pela lei 13.967/2019 para que os governos estaduais e o do Distrito Federal revisem os regulamentos disciplinares e os códigos de ética das suas respectivas PMs. As revisões objetivam extinguir a prisão administrativa e exigir que, nos procedimentos disciplinares, sejam seguidos princípios como a dignidade humana, a presunção de inocência, o cumprimento do devido processo legal, o espaço para o contraditório e o amplo direito à defesa. O presidente, que passou o ano brigando com vários governadores, em nenhum momento cobrou publicamente tais medidas. Aprovada em 2019, a lei em questão, diga-se de passagem, foi uma iniciativa de associações dos próprios policiais e não uma proposta do Executivo.
Da mesma forma, Bolsonaro não se importou com os bons resultados que têm sido alcançados pela Polícia Federal no combate ao crime organizado, principalmente ao PCC, e não refutou com veemência boatos de que, em breve, trocará mais uma vez o diretor-geral da corporação. Tampouco deu um basta na “fogueira das vaidades” que toma conta de setores da PF e tiram o foco do trabalho que está sendo realizado. A constante instabilidade institucional é uma enorme inimiga das polícias.
A falta de prioridade para a segurança pública é tamanha que, numa entrevista recente à Folha de S.Paulo, o ministro André Mendonça, da Justiça, quase não falou sobre a área nem apresentou nenhum balanço concreto do ano. Ficou apenas nas eternas platitudes acerca da integração e do diálogo entre estados. Se tivesse algo para mostrar, dificilmente teria perdido a oportunidade. Por sinal, divulgar balanços desse tipo não é um gesto de boa vontade do governo, mas obrigação.
De acordo com a lei 13.675/2018, a avaliação do Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social devia ter sido realizada em 2020, com a participação do Poder Legislativo, mas até agora nada ocorreu. Na falta de avaliações, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos – RJ) recebeu a tarefa de ajudar a mobilizar a base do pai e vem anunciando pelo Twitter ações de varejo do Ministério da Justiça (compras de armas e viaturas, por exemplo) como se fossem algo extraordinário.
Para um governo que se diz porta-voz dos policiais, descumprir as leis que tentam justamente integrar esforços e valorizar as polícias é um ato falho revelador da falta de compromisso com tais profissionais. Não surpreende, portanto, que o Bolsonaro desbocado tenha voltado. O deboche e o desrespeito às instituições e às pessoas buscam justificar o injustificável e esconder os pífios resultados obtidos em 2020 na segurança pública.
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