Recentemente, o crítico e ficcionista argentino Alan Pauls disse que O deserto e sua semente é o livro que ele mais deu de presente. Nunca entendi muito bem esse ritual de escolher uma obra específica e dá-la a muitas pessoas. O gesto superestima nosso poder de influência, e ao mesmo tempo trivializa a relação íntima com o livro amado (o instinto de guardar o livro como um segredo, por exemplo, ou dá-lo à pessoa amada, eu compreendo melhor). Mas para o autor, nada disso importa, claro – livros bons devem ser lidos. E é assim que entendo o gesto de Pauls: como uma política de reparação a Jorge Baron Biza, que escreveu um grande romance, baseado na história trágica de sua família, e, sem testemunhar o alcance que teria, tirou a própria vida.
O suicídio é uma constante na história da família Barón Biza, descendentes de latifundiários ricos do fim do século XIX, época em que a Argentina era realmente rica. Em certo sentido, o suicídio do autor foi gestado ao longo da história autobiográfica que conta em O Deserto e sua semente, agora finalmente disponível em português, na tradução impecável de Sérgio Molina.
O romance narra os dias, meses, e anos posteriores a um ataque de ácido do seu pai, Aron, um magnata megalomaníaco, contra a sua mãe, Eligia, uma pioneira feminista e ex-secretária de Educação do país (os personagens são baseados em Raúl Barón Biza e Rosa Clotilde Sabattini, pais do autor). Aron desfigura Eligia e se suicida logo após o ataque; Eligia, acompanhada do filho, começa então uma peregrinação por médicos que tentam reconstruir seu rosto. Reconstruir sua identidade é mais difícil. Catorze anos depois do ataque, Eligia também se suicida (uma irmã do autor também tiraria a própria vida).
Vivemos uma era literária voyeurística e moralmente dúbia, em que romances sobre traumas e vidas difíceis vendem a rodo. É um paradoxo: constantemente expostos a fatos terríveis, desconfiamos das intenções por trás de histórias calculadas para comover. O deserto e sua semente não é esse tipo de romance. O livro foi originalmente publicado em 1998, uma época em que a ironia provavelmente vendia mais do que o trauma. Há um distanciamento do narrador – gélido, mas também recheado de ansiedade. A prosa, pericial, é neuroticamente avessa a qualquer tipo de sentimentalismo. Com uma lupa minuciosa, o narrador não se furta a descrever as cores e novas formas do rosto de sua mãe, e a natureza assimétrica da passagem do tempo depois da agressão brutal, relembrando memórias de sua infância a conta-gotas. É uma escrita nem sempre fácil de digerir, que às vezes roça no obsceno – mas isso é o que ocorre quando se trata um trauma com a sinceridade que merece.
Quando o livro ficou pronto, várias editoras o recusaram. Jorge Baron Biza (ele assinava livros sem o acento) bancou uma edição pela pequena editora argentina Simurg, mas o livro só ganhou fôlego em 2013, quando a Eterna Cadencia decidiu fazer uma reedição, doze anos depois da morte do autor. Desde então, O deserto e sua semente tem ganhado mais traduções mundo afora.
Leia um trecho do livro, publicado na edição da piauí de setembro 2023: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-outra-face/
Confira aqui as demais dicas literárias da equipe da piauí.