Divulgação
Do amor dos amigos
O filme ensaio de Cao Guimarães
A partir da próxima semana, está previsto o lançamento de Amizade, de Cao Guimarães, em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, após ter estreado na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2024, e sido exibido em Amsterdam no International Documentary Film Festival (IDFA).
“Eu tinha um projeto de muito tempo chamado Do amor dos amigos de uma década”, disse Guimarães a Consuelo Lins em entrevista de 2019 publicada nas páginas finais de Cao Guimarães: arte documentário ficção, editado pela 7Letras no mesmo ano:
…filmei muita coisa quando era casado com a Ri [Rivane Neuenschwander, artista visual], coisas na fazenda, réveillons em que iam os amigos todos, fazíamos uns experimentos loucos, muitos artistas amigos, personagens engraçados, tenho um material muito rico, são sobras, um tema recorrente para mim depois dos 50, estou vivendo de sobras. É um filme absolutamente de edição, ensaístico, provavelmente vai ter textos. Estou lendo desde Cícero até Montaigne e Nietzsche falando sobre a amizade, vai ser um quebra-cabeça daqueles editar esse filme… É uma fatia grande de tempo em que você percebe não só a mudança dos personagens, mas a forma que eu filmava as pessoas, a materialidade fílmica do Super 8, do 16 mm até o digital do celular. Várias coisas ficam muito claras sem ter que explicar muito se você justapuser algumas sequências de alguns personagens, você conta uma história interessante. Eu não sei o que vai ser isso, se vai ser um longa, se vários filminhos de artes plásticas, instalações, estou no processo… A ilha de edição é meu divã. Como também a mesa de boteco. Os amigos, meus analistas. A Rivane dizia que eu fico filando análise dos amigos e ela tem razão.
Eis aí uma apresentação exemplar, feita pelo próprio Guimarães, diante da qual resta pouco a dizer. Trata, na verdade, não apenas de Amizade, mas do conjunto de seus filmes personalíssimos que formam uma obra singular no cinema brasileiro, a partir do curta-metragem Da Janela Do Meu Quarto (2004). A cada nova produção, Guimarães confirma ser um criador original de mil instrumentos, ao responder, também no caso de Amizade, pela direção, roteiro, fotografia, narração e montagem, além de contar com a excelência costumeira da música de O Grivo.
Para começar, antes mesmo do prólogo, Amizade recorre a uma epígrafe de intenção sarcástica, negando a existência da amizade: “Amigos, ó amigos – não há amigos!”, atribuída comumente a Aristóteles (384 a.C.-322 a.C), ainda que a frase não apareça na obra do filósofo da Grécia Antiga, nem no capítulo a ele dedicado na edição moderna de Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, de Diógenes Laercio (180 d.C.-240 d.C.). Há, no entanto, frase semelhante em Montaigne e Nietzsche: “Quem tem (muitos) amigos não tem um único amigo.”
A ironia contida na contradição entre o título do filme e a citação apócrifa feita na epígrafe, resulta evidente no decurso de Amizade, que foi definido em seu material de divulgação como “uma celebração sobre passar tempo juntos e envelhecer”. Sem ser uma exaltação, o filme tem, no entanto, algo de um culto à amizade que é sua própria razão de ser. Antecedendo os créditos finais, uma legenda branca sobre fundo preto proclama e esclarece: “Amigos, oh amigos, acho que Aristóteles enlouqueceu!”, seguida de fotografias 3×4 e nomes dos amigos e amigas que integram a equipe técnica e participam das gravações.
No final do prólogo, Guimarães comenta em voz off:
…não sei por que comecei a filmar durante a viagem [para o Uruguai], talvez pressentindo sua falta [referência a Beto Magalhães, companheiro de viagem, amigo e produtor que voltaria para Belo Horizonte enquanto Guimarães passaria a morar no exterior]. Talvez apenas curioso por essa divertida criatura que quase sempre estava atrás das câmeras comigo e, por isso mesmo, eu raramente o via dessa forma: dentro do quadro, também um personagem. Por que não? Naquele momento, eu ainda não sabia que aquilo que eu filmava era uma pequena parte de um velho projeto sobre amizade. Uma estreita fatia de terra firme, ladeada por uma sensação de desmoronamento geral, na qual eu me equilibraria nos próximos anos para não me afundar no abismo da ignorância e da desolação que tomou conta do Brasil.
Assine nossa newsletter
Email inválido!
Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí
Esse trecho da narração indica um dos traços definidores do perfil criativo de Guimarães – o acaso – e termina com ele em close, de perfil, dirigindo, iluminado pela luz do sol no fim da tarde. A imagem desaparece em fade lento até a tela ficar preta e 5 segundos depois a palavra AMIZADE vai se formando em letras maiúsculas – transcorridos os 10 minutos iniciais, restam 75 minutos para assistir.
O eixo narrativo de Amizade é formado por duas viagens. Uma, feita por Guimarães e Magalhães, percorreu 2500 km de estrada em três dias, indo de Belo Horizonte até Montevidéu, em agosto de 2016; a outra cruza, na edição, o tempo maleável da memória, na tentativa de recuperar trinta anos de imagens filmadas e gravadas a partir da década de 1990.
A esses dois eixos visuais de Amizade são agregados outros dois, sonoros. Um, formado pelos comentários em voz off de Guimarães, o outro constituído pela música. A narração evita descrever as imagens, assim como a montagem impede que os planos selecionados resultem em mera ilustração do texto. Quando intervém, o narrador procura traçar seu próprio percurso – comenta a impressão causada pelos fragmentos reunidos e justapostos para configurar o mosaico visual do filme e tenta decifrar os mistérios neles contidos. Os quatro eixos, dois visuais e dois sonoros, guardam, portanto, certa autonomia entre si.
Para concluir, não resisto à tentação de transcrever trecho da apresentação de Consuelo Lins no já citado Cao Guimarães: arte documentário ficção:
… Apreciador do ócio e da lentidão, Cao Guimarães contempla o mundo sem pressa. Gosta de observar a vida miúda à sua volta, de divagar nos pensamentos e também nas conversas de bar; de se perder na sonoridade da língua deixando de lado o sentido do que está sendo dito; de flanar por cidades desconhecidas, de errar por pequenas estradas do interior do Brasil, pelas montanhas mineiras, pelos pampas uruguaios…
Leia Mais