Do Islã ao PCC
Como um jovem condenado por terrorismo depois de trocar mensagens na internet sobre atentados foi recrutado pela facção criminosa mais poderosa do país
Confinado em uma das 208 celas individuais de 7 m² cada da penitenciária federal de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Fernando Pinheiro Cabral, 26 anos, vive dias exatamente iguais desde que foi preso em 2016, acusado de integrar uma célula terrorista do Estado Islâmico no Brasil. Diante das rígidas regras do presídio de segurança máxima – não há trabalho e as refeições são feitas na própria cela – os únicos refrigérios para o jovem paulistano convertido ao islamismo são a leitura, especialmente do Alcorão, e as duas horas diárias de banho de sol, alternadas entre a manhã e a tarde, quando se encontra com os outros treze detentos da mesma ala.
Mesmo introvertido, Fernando fez amizades com alguns desses colegas de cárcere, especialmente dois membros da facção PCC (Primeiro Comando da Capital): Darcton Lima do Carmo, o Pitbull, um dos líderes do grupo criminoso na Paraíba, condenado e preso por tráfico de drogas e roubo; e Antônio Domingos de Souza, o Velhinho, condenado a 27 anos de prisão pelo assassinato de um sargento da Polícia Militar em Araraquara, interior paulista, há oito anos.
As conversas sob o sol potente do Centro-Oeste brasileiro culminaram com a filiação de Fernando Cabral ao PCC, formalizada em 19 de setembro de 2018, tendo Pitbull e Velhinho como padrinhos, conforme apuração do setor de inteligência do Depen (Departamento Penitenciário Nacional). Advogados ligados à facção trataram de levar a ficha com todos os dados do jovem (incluindo seu novo apelido, Siberiano) para o setor de cadastro da facção – sim, o PCC possui um setor de cadastro. Uma vez nele, o filiado detido em presídio federal, os mais rígidos do país, recebe uma mesada da facção. Foi o que ocorreu com Fernando: por meio da conta bancária de uma de suas irmãs, ele passou a receber uma mesada de 1,5 mil reais mensais. É provável que Siberiano esteja entre os primeiros muçulmanos a integrar as fileiras do PCC, que atualmente conta com 32 mil integrantes espalhados pelo Brasil e alguns países vizinhos, segundo estimativa da Polícia Federal.
Corria o ano de 1994 quando Fernando, aos nove meses, foi adotado por uma professora da rede pública. Ele cresceu com os três irmãos mais velhos no Tremembé, zona Norte da capital paulista. Em depoimentos à Polícia Federal e à Justiça, a mãe e os irmãos definem Fernando como inteligente, introvertido e violento. Aos 9 anos, quebrou uma das pernas da mãe com um chute, durante briga dentro de casa. Na adolescência, ao saber que era adotado, tornou-se ainda mais rebelde. Passou a colecionar facas e, com uma delas, aos 13 anos, feriu o namorado da irmã Fabíola. Pelo ato infracional, passou um breve período internado na Fundação Casa. Ao todo, constam nas Varas da Infância de São Paulo cinco atos infracionais praticados por Fernando, três deles por lesão corporal e um por estupro. “Ele nunca teve muitos amigos e sempre foi muito violento comigo e com a minha mãe. Queria mandar na casa”, disse a irmã Fabíola em depoimento à Justiça. Fernando chegou a iniciar curso superior de contabilidade, mas desistiu. Tornou-se então serigrafista.
Fernando cresceu em família católica, mas, em abril de 2015, segundo depoimento da mãe, passou a frequentar a mesquita da Liga da Juventude Islâmica Beneficente do Brasil, no bairro do Pari, fundada no fim da década de 1990 por jovens imigrantes vindos do Norte do Líbano, fugindo da guerra civil que devastou o país nos anos 1980. Nas tardes de sábado, Fernando Cabral vencia de ônibus a distância de 11 km entre Tremembé e Pari para participar das aulas e orações do xeique brasileiro Rodrigo Rodrigues. Na mesquita, Fernando converteu-se ao islamismo e aproximou-se de um grupo de radicais, a maioria jovens como ele, que entre uma e outra palestra reunia-se em uma pequena praça próxima. “Eles tinham uma ideia completamente equivocada do islã. Queriam ser profetas, odiavam Israel, idolatravam a Al-Qaeda e o Estado Islâmico. E essa nunca foi a nossa pauta. Por isso, diziam que eu era vendido aos americanos e foram se afastando”, diz o xeique, que hoje mora em Curitiba.
Durante as palestras na mesquita, Fernando, lembra Rodrigues, sentava-se sempre nas primeiras fileiras, mas era muito calado. Estudava o Alcorão, mas não chegou a aprender árabe. Outros três jovens que frequentavam a mesquita do Pari puseram Fernando em contato com uma rede online de radicais islâmicos no Brasil. Nessa mesma época, ele passou a ficar horas trancado no quarto em frente ao computador, onde se apresentava em redes sociais e em aplicativos de mensagens como Ahmad Faaiz, e a expressar ideias radicais, segundo seus familiares disseram em depoimento à PF e à Justiça. À mãe, por exemplo, afirmou ter achado “justos” os ataques terroristas às Torres Gêmeas, nos Estados Unidos, em 2001, e ao jornal francês Charlie Hebdo, em 2015. Segundo a mãe relatou em depoimento à PF, o filho alegava que o povo muçulmano não tinha terras e que, para fazer justiça, tinha de praticar atos terroristas.
Na internet, Fernando, ou Ahmad Faaiz, desnudava todo o seu radicalismo. Dizia ter feito a “bay’at” – o juramento de fidelidade ao Estado Islâmico – e recrutava outros jovens para o planejamento de ataques terroristas. Em maio de 2016, durante troca de mensagens com um amigo muçulmano, ele deu a receita para um ataque terrorista bem-sucedido. “O que define um ataque terrorista com bons resultados? O fator de que as pessoas não podem prever”, escreveu. Em casa, começou a treinar arco e flecha e a exibir para a irmã Fabíola vídeos de pessoas mutiladas em atentados a bomba – certo dia, disse a ela que participava de grupos no Telegram para planejar “atos justiceiros”. Um deles, disse ele próprio à PF logo após ser preso, seria na Parada Gay, que todos os anos ocorre na Avenida Paulista, em São Paulo, ou na Rua Augusta, que concentra “sodomitas, prostitutas e tráfico de drogas”, ações consideradas crimes em alguns países árabes.
Outro local cogitado pelo grupo seria no Rio de Janeiro, às vésperas das Olimpíadas de 2016, como afirma Fernando em troca de mensagens com uma mulher: “Já viu as praias do Rio às vezes? / Cabem umas 4 paradas [gays] / Para um atentado lá é melhor.” Em seguida, diz estar treinando tiro. “Andei arrumando brinquedos interessantes.” Outro local cogitado para o ataque com tiros e bombas na capital fluminense, segundo depoimento de outro acusado, foi a Linha Amarela.
As conversas chegaram à Polícia Federal em maio de 2016 por meio do FBI (Federal Bureau of Investigation), que na época monitorava o grupo radical. A informação da polícia norte-americana motivou pedido de quebras de sigilo telefônico e telemático à Justiça, dando início à Operação Hashtag. Fernando foi um dos catorze detidos nas duas fases da operação, em julho e agosto de 2016 – três dos alvos também frequentavam a mesquita do Pari. Na casa do jovem no Tremembé a PF encontrou uma touca balaclava preta e camisetas da jihad islâmica, organização palestina contrária à existência de Israel. Não há evidência de que ele tenha praticado atos terroristas.
Fernando foi condenado a cinco anos e seis meses de prisão por terrorismo, crime previsto desde 2016 na legislação brasileira. A pena foi mantida pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região – atualmente há recurso pendente de julgamento no Superior Tribunal de Justiça. Fernando ainda responde a uma segunda ação penal por associação criminosa derivada da Hashtag, ainda não julgada em primeira instância.
Em depoimento à 14ª Vara Federal Criminal de Curitiba, Fernando negou a intenção de praticar atos terroristas e também refutou a acusação de ser integrante do Estado Islâmico. Argumentos repetidos por sua defesa. “Nunca houve planejamento para atos terroristas, mas sim postagens inconsequentes de um grupo de jovens”, disse à piauí Rita Cristina de Oliveira, defensora pública federal. Para ela, foi um erro a Justiça determinar que Fernando cumprisse pena em uma penitenciária federal, de segurança máxima. “Seria perfeitamente razoável a adoção de medidas alternativas, como tornozeleira eletrônica. Todo mundo sabe que o sistema carcerário no Brasil é uma porta escancarada para o ingresso do preso em facção criminosa. Infelizmente, ao que tudo indica, foi o caso do Fernando.” Ela lembra que um dos presos na Hashtag, Valdir Pereira da Rocha, morreu espancado por outros detentos na cadeia pública de Várzea Grande, Mato Grosso, semanas após ter sido preso, em 2016.
No dia 8 de outubro de 2019, o funcionário dos Correios entregou na Superintendência da Polícia Federal em Belo Horizonte dois envelopes, sem remetente, contendo dois DVDs. Neles, planilhas com a contabilidade completa, mês a mês, do denominado “setor da ajuda” do PCC, responsável por pagar mensalidade à família dos presos filiados à facção e detidos no sistema carcerário federal. Para confirmar a autenticidade do material e avançar na investigação, a PF solicitou a quebra dos sigilos bancário e fiscal dos titulares das contas bancárias utilizadas para movimentar o dinheiro.
O dinheiro das mesadas, que totalizava cerca de 450 mil reais mensais, era arrecadado pela facção por meio de rifas (com sorteio de carros e motos) e da “cebola”, mensalidade paga pelos filiados à facção em liberdade – o valor varia em cada estado. As mesadas eram tabeladas: recebiam 1,5 mil reais por mês os “irmãos” presos no sistema penitenciário federal por envolvimento em situações particulares, não relacionadas ao PCC; 3 mil reais para quem houvesse sido transferido para presídio federal justamente por ser da facção; e 4 mil reais por quem estivesse em prisão federal em decorrência de crimes cometidos a mando do PCC. Para despistar as autoridades, os depósitos eram feitos em espécie em contas bancárias de parentes dos “irmãos”.
Nas planilhas enviadas anonimamente à PF em Minas constavam os nomes de Fernando Pinheiro Cabral e de sua irmã Fabíola. A quebra do sigilo bancário dela constatou dezenove depósitos em dinheiro vivo de 1,5 mil reais cada ao longo de 2018 e 2019, todos sem a identificação do remetente, feitos em agências da Grande São Paulo. Dois desses depósitos constam na tabela do “setor de ajuda” do PCC, em janeiro e fevereiro de 2019. Prova, para a PF, de que Fabíola recebeu dinheiro da facção em nome do irmão preso. “Fica evidenciada a prática do crime de lavagem de dinheiro pela investigada Fabíola, bem como a infração de integrar organização criminosa pelo investigado Fernando”, escreveu o delegado Alexsander Castro em documento da Operação Caixa Forte 2, que apura o esquema de financiamento e lavagem de dinheiro da facção. Deflagrada em 31 de agosto, a operação cumpriu 422 mandados de prisão em dezenove estados e no Distrito Federal. Na operação, a juíza Andrea Cristina de Miranda Costa, da 2ª Vara de Tóxicos de Belo Horizonte, determinou o bloqueio de 252 milhões de reais em contas ligadas ao PCC.
Entre que tiveram prisão preventiva decretada estavam Fabíola e o irmão Fernando – a Caixa Forte 2 deve atrasar a saída dele da prisão, já que, segundo sua defesa na Operação Hashtag, o jovem estava prestes a ir para o regime semiaberto no cumprimento da pena por terrorismo. A piauí não conseguiu localizar os advogados dos irmãos Cabral na operação da PF de Minas Gerais.
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Nota: Reportagem reeditada e atualizada em 28 de setembro de 2020
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