“O Dueto”, Cornelius Saftleven (1607-1681) – Auto-retrato do pintor com seu irmão Herman.
Duo Nichols-Forgács no CCBB – cinema como oferenda
A apresentação do duo Nichols-Forgács, sábado (11/2), no CCBB do Rio, foi memorável. Se repetirem a performance na próxima quarta-feira (16/2), em São Paulo, será ocasião para ouvir rara harmonia de vozes, mediada pela curadora Patricia Rebello.
A apresentação do duo Nichols-Forgács, sábado (11/2), no CCBB do Rio, foi memorável. Se repetirem a performance na próxima quarta-feira (16/2), em São Paulo, será ocasião para ouvir rara harmonia de vozes, mediada pela curadora Patricia Rebello.
Bill Nichols, professor e autor de vasta bibliografia, inclusive Representing Reality (1991), além de co-editor com Michael Renov de Cinema’s Alchemist – The Films of Péter Forgács (2011), começou deslocando a origem canônica do cinema documentário de Nanook, o esquimó (1922), de Robert Flaherty – “um filme de ficção feito com atores não profissionais que prenuncia o neo-realismo italiano” – para os “modernistas” – Man Ray, Salvador Dali, Luis Buñuel etc. – e a maneira deles “manipularem” objetos e “verem o mundo e a vida do homem comum de uma nova maneira”. Parecendo ter surpreendido Forgács, perguntou se haveria conexão entre seus filmes e o urinol de Marcel Duchamp (imagem ao lado | Crédito: Julian Wasser – 1963).
Depois de custar um instante para entender a referência, Forgács, cuja mostra terminou ontem no CCBB do Rio, começa quarta-feira (15/2) em São Paulo, e termina domingo (19/2) em Brasília, antes de dar vazão à sua simpática exuberância, começou meio hesitante, admitindo que “recontextualizar – procedimento que não é novo –” está na base dos seus filmes. Mas para Forgács, Duchamp optou por um caminho “sem nenhuma relação pessoal”, enquanto para ele o que conta é justamente a interação, o contato visual, olho no olho: “Temos poucos momentos na vida em que podemos olhar nos olhos do outro pelo tempo que quisermos e procurar entender o outro. Ver filmes de família me deu a liberdade de fazer isso.”
Forgács reconhece que adquiriu dos modernistas a liberdade de “recontextualizar” – termo que dá impressão de preferir a manipular –, procurando “criar um espaço onde pode mostrar o que encontrou, sendo preciso e livre, sem procurar consenso sobre o que é bom e o que é mau.
“Os filmes não oferecem solução. Procuram mostrar como olhar, não o que pensar. Procuro construir um espaço vazio no qual convido o espectador a ver esses filmes que chamo de oferendas.”
“Usar filmes de família é trabalhar com sua banalidade, é pensar com objetividade, e contemplar coletivamente. Negociar, contemplar, entender – são formas de se olhar no espelho. Feitos originalmente para uso privado, vemos outras vidas sem seu contexto original. E passamos a ter múltiplas narrativas – a minha, a dele etc. – novas e diferentes umas das outras.”
“A memória é um problema. Quem tem a lembrança correta? Meu irmão e eu nos lembramos de maneira diferente da mesma coisa. Memória e esquecimento são correlatos. Filmes de família registram apenas momentos felizes. E a felicidade é importante para nós. Mas meus filmes não nos fazem sorrir. São sobre o problema e a dificuldade da memória; sobre ser um observador superficial do esquecimento.”
Diante do quê, Nichols emendou: “Às vezes, o melhor a fazer é ficar calado”. Ainda assim, introduzindo novo tema, citou Martin Buber: “A vida não é nada mais do que encontro.” No caso do cinema, encontro com “indivíduos únicos, insubstituíveis, que em um novo contexto podem ser vistos e sentidos de maneira muito especial.” (Observação que lembra os documentários de Eduardo Coutinho, mas que não foi mencionado).
Para tratar da relação da arte e do sagrado com a beleza, Forgács citou John Cage, para quem a “arte começa onde a beleza termina”. Isso para retomar a importância do que é banal e dizer que a “banalidade não é necessariamente bela, nem sagrada. E a arte, sendo diferente da beleza, nos faz pensar.”
“Ao colocar a banalidade diante do espectador, quero compartilhá-la com ele. Ao observar com concentração nos perguntamos ‘o que está acontecendo’. E a banalidade se torna sagrada no contexto apresentado ao espectador. O mundo se opõe a isso e, a maior parte do tempo, somos agredidos e ficamos sem tempo para nos concentrar e observar.
O que acontece lá fora? Minha casa continua de pé? É o choque entre a existência privada e a coletiva, universal. Meus filmes focalizam esse embate.”
“Nunca me considerei um cineasta. Quero fazer objetos, não filmes.”
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Péter Forgács, Patrícia Rebello e Bill Nichols, da direita para a esquerda. CCBB, Rio (2012). Foto Eduardo Escorel
A lamentar apenas o momento em que Forgács desafinou ao responder, irritado, a uma pergunta perfeitamente razoável da plateia, que talvez não tenha entendido: “Como ele vê a dificuldade de acesso a seus filmes?”, perguntou uma jovem.
Não havia razão para impaciência, considerando que é, de fato, difícil vê-los.
Quem tiver lido a entrevista de Forgács publicado no Globo (31/1) sabe que seus “trabalhos são pensados para um museu”. São filmes tratados como objetos, peças raras a serem contempladas com atenção. Daí, talvez, estarem de maneira geral disponíveis apenas para fins educacionais a preços proibitivos para aquisição privada.
Podemos estranhar essa tentativa de controle via distribuição restrita. Mas ela parece legítima e coerente com o projeto de Péter Forgács.
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