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    O novo imortal (sentado, ao centro) ganhará salário e jetons. Na festa teve Chandon. Lá fora, uma ambulância, devido à idade avançada dos convidados. FOTO: GUILHERME GONÇALVES_ABL

questões da imortalidade

É noite de fardão

A posse de João Almino na ABL e o proscênio da confraria na qual até escritor entra

Alexis Parrot | 25 ago 2017_22h10
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A cada vez que a Academia Brasileira de Letras acolhe um novo imortal em suas fileiras, poderia ser o momento perfeito para retomar a discussão sempre necessária do papel do escritor no mundo.

“(…) o escritor pode trazer à luz o que estava obscuro. O termo grego Aletheia que, numa de suas acepções, poderia ser entendido como ‘verdade’, é a negação do esquecimento (Lethe)”. A citação foi tirada do discurso inaugural do diplomata e romancista João Almino como acadêmico. Sua posse aconteceu no final de julho passado, apenas oito dias após a comemoração dos 120 anos de fundação da entidade.  

Para ingressar no célebre colegiado, a regra é simples: na semana seguinte após a morte de um dos ocupantes das quarenta cadeiras, abre-se a vaga. Há uma eleição interna e secreta e há a posse. O empossado passa a ganhar um salário (estima-se 3 mil reais por mês) e recebe também jetons pela presença nas reuniões das terças e no famoso chá das quintas-feiras (estimados em mil reais por encontro). 

Além disso, fazer parte da irmandade é como transformar-se em uma grife: o status de imortal faz subir consideravelmente o valor do cachê pago para participação em conferências ou para palestras ministradas. Comenta-se que o valor de mercado para a contratação de acadêmicos pode chegar a 5 mil reais por aparição; o que não é nada mau. (Afinal, entre os engalanados da Academia, só mesmo o ocupante da cadeira 21, Paulo Coelho, ainda vende livros em quantidade mágica hoje em dia.)

A ABL, a exemplo de sua inspiração, a Academia Francesa, tem por hábito acolher não apenas escritores e poetas, mas aqueles que, teoricamente, contribuam para a vida intelectual do país em suas áreas de atuação – ligadas ou não à esfera das letras.

Para se candidatar, a única obrigatoriedade é que o postulante tenha, pelo menos, um livro publicado. Daí a justificativa para a presença de políticos que se travestem de acadêmicos ao longo da história da instituição; uma classe vaidosa por natureza que adora se imortalizar às custas da agremiação centenária. E a nossa Academia, por sua vez, sempre se deixou fascinar por introduzir esse tipo de elemento entre suas hostes. Não por acaso, chamam-se de confrades.

O círculo literário brasileiro do início do século XX, tempo de uma recém-criada Academia de Letras no país, descrito pelo crítico Brito Broca em um livro clássico de 1956, não mudou muito de lá para cá. Para que um autor seja louvado, privilegia-se mais a sua “vida literária” (leiam-se aí as relações interpessoais, interesses e compadrios) que sua literatura. Lima Barreto é um bom exemplo desta prática; foi ignorado pela Academia nas duas tentativas que fez para participar do clube, a despeito de seu enorme talento.

Sobre o assunto, em 2010, o dinamarquês Karl Erik Schøllhammer, professor da PUC-Rio, registrou em livro a antiga máxima já sabida por todos: “até escritor entra para a ABL”. Fortuitamente, foi este o caso da eleição de João Almino; o potiguar de Mossoró, que escolheu Brasília como morada, além de cenário, inspiração e mote para desenvolver sua obra. Ao atender à sessão de sua posse, a observação de uma série de pequenos detalhes tornou a experiência mais que curiosa, didática.

 

De cara, ao lado da entrada da sede da Academia, incrustada no Centro do Rio de Janeiro, o palacete neoclássico Petit Trianon (réplica daquele que Luis XV mandou construir para sua amante, Madame de Pompadour, em Versalhes e doado à instituição pelo governo francês em 1923; uma tentativa explícita de imperialismo cultural, como de hábito na época), era impossível não se espantar com a presença de uma ambulância.

A unidade de tratamento móvel ali estacionada, de plantão, trouxe imediatamente à memória a lembrança que Guimarães Rosa, a conselho médico, adiou sua posse na casa por quatro anos e morreu três dias após a solenidade, vítima de um infarto fulminante. Se juntarmos a isso a idade média de 80 anos dos acadêmicos atuais, ter esse recurso à mão não parece um cuidado excessivo. Ou será que vale a pena arriscar e ficar na espera do Samu, caso algum imortal resolva abandonar o título de repente?

A ambulância foi o primeiro alerta sobre o que se poderia esperar daí em diante: independente de todos os erros e acertos que marcam a longa trajetória da Academia Brasileira de Letras, o dia da posse de um novo membro é sempre emocionante.

Logo ao alcançar o interior do palacete, nos toma de assalto a imagem de vários acadêmicos, trajando o tradicional fardão verde bordado em ouro, se enfileirando para entrar no Salão Nobre, onde a sessão ganharia lugar em poucos instantes. Mas o olhar é atraído imediatamente para o Salão Francês, à direita, onde João Almino, sentado, aguardava ser convocado para proferir seu primeiro discurso na casa.

Segundo o site da ABL, é nesta sala que “o acadêmico eleito cumpre a tradição de permanecer sozinho, em momentos de reflexão, antes da cerimônia da posse.” Na prática, parece improvável que ali se consiga refletir sobre qualquer coisa, dadas as portas envidraçadas do cômodo. O futuro acadêmico, já fardado, parece mais estar em exposição, como em uma vitrine de loja, para os sorrisos e acenos dos convidados que chegam e se movimentam pelo saguão de acesso ao primeiro andar.

Presidente da entidade, o poeta e crítico literário Domício Proença Filho pode ser chamado de tudo, mas a impontualidade não deve ser arrolada como um de seus defeitos. A cerimônia, marcada para as nove da noite, foi aberta faltando um minuto para o horário previsto. Para aumentar o vasto anedotário que a ABL coleciona desde seus primórdios, Proença Filho cometeu uma pequena gafe, ao declinar incorretamente o nome completo do nouvel acadêmico. Errata feita de público, a solenidade seguiu seu curso sem maiores atropelos.

Em seu discurso de elogio ao patrono da cadeira que tomava posse, a de número 22, e a seus prévios ocupantes, Almino foi fiel às preocupações que dão corpo à sua obra e soube fazer conexões inusitadas, citando de Borges a Woody Allen. Usando de suas qualidades acumuladas em quarenta e três anos dedicados à diplomacia, trouxe à luz, com delicadeza e bom humor, as aventuras de alcova de Medeiros e Albuquerque na Paris da belle époque. A análise visionária de Miguel Osório de Almeida – palavras lançadas sobre a corrupção na política em 1925 – poderiam versar sobre o Brasil atual.

Como escritor, sempre foi inventivo na escolha dos narradores de seus livros. Em Samba-Enredo, quem conta a história é um computador; em Cidade Livre, um blogueiro anônimo, identificado pelas iniciais JA e insistente na tarefa de convencer o leitor de que não se trata do próprio João Almino. Ali, no púlpito do Salão Nobre, não foi nem autor, nem personagem. Mesmo sendo um orador contido, soube ser apenas o portador da emoção que estava vivendo. De óculos, grave sem ser pernóstico e no centro das atenções da noite, lembrava fisicamente o ator britânico Jonathan Pryce. Ao final de sua fala, agradecido pela distinção e pelo que a vida tem lhe dado, classificou a si mesmo como “um modesto ficcionista”.

O discurso de boas-vindas ao novo membro coube a Ana Maria Machado, que muito falou sobre literatura brasileira e sobre o significado de se optar pelo romance como forma de expressão nos anos 80, quando Almino iniciou seu percurso literário. Sobre o recém-chegado, porém, disse pouco. No saguão contíguo, uma tevê de tela plana foi instalada para aqueles que não couberam no Salão Nobre poderem também assistir à cerimônia. Na tentativa de atravessar com mais facilidade a preleção um tanto burocrática da acadêmica, um renomado artista plástico – da cota dos convidados e amigos de Brasília – distraía-se, fotografando os pés dos presentes, testando as possibilidades do celular recém-adquirido.

 

A sessão foi encerrada às dez e meia da noite. João Almino dirigiu-se para outra sala onde durante algumas horas recebeu cumprimentos e abraços. No pátio de entrada da Academia, sob o olhar sisudo da estátua de Machado de Assis, um coquetel comemorativo (e nada sisudo) era servido. Os convivas puderam escolher entre uísque Chivas Regal doze anos e champanhe Moët & Chandon, além de um elegante cardápio de comidinhas dos céus que parecia interminável. Come-se e bebe-se muito bem nas festividades da ABL. Trata-se de uma instituição cultural privada e o fato de se autodenominar “sem fins lucrativos” não a impede de ser abonada.

Sua principal fonte de renda – longe de ser a única – vem do terreno ao lado da sede, doado pelo governo brasileiro na década de 60 e onde foi construído um moderno arranha-céu, o Palácio Austregésilo de Athayde. Terminado o contrato de cessão com a construtora do imóvel, desde 1998 a Academia passou a receber a integralidade do aluguel do prédio, onde cada andar sai por alguns milhares de reais mensais. Sabendo que o espigão tem 28 andares, é fácil imaginar. Segundo o pesquisador Fernando Jorge, no seu minucioso (e impagável) A Academia do Fardão e da Confusão (Geração Editorial), o já falecido acadêmico Adonias Filho, ao ver a imponência do edifício, disse que “a entidade devia investir mais em obras literárias e menos em obras de cimento”. Mas é justamente o cimento que paga as contas.

Durante o coquetel era grande a movimentação no elevador do Petit Trianon, uma vez que os banheiros à disposição do público ficam no subsolo do palacete. Além deles, existem outros dois no segundo andar (onde se localizam a biblioteca, a sala de sessões ordinárias e o salão de chá) mas, de acordo com uma funcionária da casa, quando a frequência aumenta, estes não aguentam a pressão e acabam invariavelmente entupidos.  

Para um reles mortal é muito interessante estar lá dentro e poder ver como se movimentam os imortais em uma ocasião como a inauguração de uma nova imortalidade. Há aqueles que de fato vivem a Academia, como Murilo Melo Filho, potiguar como João Almino. Completamente esquecido aos 89 anos, era um dos mais entusiasmados com a movimentação da noite. Durante o comes e bebes, era todo atenções com os convidados, assumindo o papel de anfitrião.

Aparentemente, o mesmo não pode ser dito sobre o jornalista Merval Pereira. Tão logo terminada a sessão, cumprida a obrigação protocolar e garantido o jeton, foi o primeiro a içar âncora a bordo de um dos diversos carros com motorista estacionados ao longo da Avenida Presidente Wilson, endereço da ABL desde a década de 20. Para o leva e traz dos acadêmicos, durante eventos, um reforço é contratado, engrossando a frota fixa que a instituição já mantém cotidianamente.

Há ainda aqueles outros, os que querem se tornar imortais e, por isso, “frequentam” – como o poeta Antonio Cícero. Com duas derrotas no currículo (mas em plena campanha para a terceira investida), a certa altura da noite, flûte de Chandon em punho, conversava animadamente com o também poeta (mas já imortal) Geraldinho Carneiro. Quinze dias depois, finalmente seria eleito para ocupar a cadeira 27. Não só pela vida dedicada à boa poesia, mas sobretudo por sua persistência acabou recompensado.

Para prestigiar a conquista de Almino, muita gente passou pelo local – muita gente fina e todos finamente vestidos; os homens com o traje passeio completo, como exigia o convite. Porém, a diversidade passou longe. Entre os convidados, saltava aos olhos a presença de apenas uma mulher negra. A casa fundada pelo mulato Machado de Assis e hoje presidida pelo negro Proença Filho nunca escondeu tratar-se de uma instituição de elite.

Enraizada no Rio de Janeiro, uma cidade onde a dificuldade na convivência multirracial e conflitos sociais são mascarados por uma aparente (mas falaciosa) “indiferença às classes”, o fato compete para agravar essa característica inata da entidade. Ao mesmo tempo em que coloca a França como modelo, comporta-se amiúde como uma associação de bairro.

O tira-teima está na conversa travada com um dos convidados cariocas, durante o coquetel. Satisfeito, ele comentava ser aquela a sua terceira cerimônia de posse. E acrescentava: “da primeira vez, fui convidado não porque eu fosse leitor ou admirador do novo acadêmico. Ele me chamou porque éramos vizinhos”.

Já no início da madrugada, quando restavam apenas alguns poucos comensais aos pés da sisudez da estátua de Machado de Assis, uma última surpresa. Na saída, éramos brindados com um bolinho embrulhado, à guisa de recordação – como de praxe na saída de casamentos ou batizados. No mundo das empresas de cerimonial e buffets profissionais, com seus pacotes de serviços pasteurizados, os responsáveis por fazer uma festa excepcional terminam como qualquer outra. Não importa o motivo da comemoração; no final todas as festas acabam em bem-casado.

A ambulância não precisou ser usada. Todos os imortais (João Almino agora incluído) foram dormir e acordaram no dia seguinte, ainda imortais.

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