A edição inaugural da piauí, publicada em outubro de 2006, trazia um texto de Danuza Leão que tinha um personagem como tema central. Mas o primeiro dos perfis mais extensos e aprofundados, que se tornaram uma marca da revista em seus dezoito anos, foi publicado na segunda edição pelas mãos da repórter Consuelo Dieguez, que na época era colaboradora e logo entrou para o time contratado da redação.
Era uma reportagem sobre o ex-banqueiro Luiz Cezar Fernandes, que já teve uma fortuna de 300 milhões de dólares quando comandava o banco Pactual e àquela altura havia perdido a instituição para os quatro sócios. Quando recebeu a repórter, anos depois da ruptura, ele se dedicava a criar ovelhas no campo e estava batalhando por um empréstimo de 100 mil dólares junto a um órgão do governo. De elefante a formiga era o título, tirado ao pé da letra de uma comparação feita pelo próprio Fernandes sobre sua trajetória – um exemplo de declaração rápida, mas muito significativa para retratar o momento de alguém. “Um perfil não é uma biografia”, comparou Dieguez, explicando que esse tipo de texto não pode ser apenas uma sucessão de datas e episódios marcantes. “Você tem que capturar a alma da pessoa”, disse a jornalista, durante a mesa Os perfis da piauí – Modos de fazer, na programação da Casa de Histórias, na 22ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip.
A conversa teve a participação de outros quatro jornalistas da piauí: o diretor de redação André Petry, os repórteres Ana Clara Costa e João Batista Jr. e o editor de literatura Alejandro Chacoff, que foi o mediador do encontro.
Concordando com a fala de Dieguez, Petry afirmou que a maratona de pesquisa e entrevistas não basta para a elaboração de um bom perfil. “Essa apuração exaustiva precisa dizer alguma coisa. Qual história você quer contar através da história daquela pessoa? Se não, o resultado é uma massa disforme. É preciso apreender o personagem.”
Para Dieguez, detalhes de como o indivíduo estava vestido ou se pediu um café no encontro são pouco relevantes se não contribuem para essa compreensão maior. Ela contou que na reportagem Todos contra Daniel Dantas, a respeito do banqueiro do Opportunity, em 2007, ficou curiosa sobre a música clássica incessante em uma sala de reuniões da corporação. Perguntou então se ele tinha um interesse especial pelo repertório erudito. Dantas revelou que a trilha tinha como objetivo abafar possíveis microfones clandestinos instalados no espaço, como já havia acontecido. Uma informação-chave que não viria à tona se a jornalista não tivesse tocado em um assunto aparentemente lateral.
Um perfil pode ser construído a partir de diferentes técnicas jornalísticas. João Batista Jr. contou sobre a apuração de um texto sobre Guilherme Derrite, secretário de Segurança Pública de São Paulo, publicado na edição de maio deste ano com o título O Homem e seu Passado, que seguiu o trilho de uma reportagem investigativa.
O fio da meada começou a ser puxado quando o jornalista soube que um homem condenado a 102 anos por múltiplas mortes e tentativas de homicídio havia citado Derrite em denúncias graves. O prisioneiro confessava ter integrado um grupo de extermínio chamado Eu Sou a Morte e disse que atuava com o aval do hoje secretário.
Batista Jr. se aprofundou no relato, trocou cartas com o presidiário e entendeu que este era o ponto de partida para entender a atuação de Derrite em seus anos na Rota, tropa de elite da Polícia Militar de São Paulo. Seguiu na apuração, que incluiu o levantamento de boletins de ocorrência de uma série de casos com a participação de Derrite, na época tenente da PM, que acabaram com a morte de “suspeitos” em supostos confrontos. A partir desses documentos, avançou em sua pesquisa: “Fui atrás das pessoas próximas aos mortos, como mães das vítimas, mulheres das vítimas, para entender até que ponto o que estava no BO era verdade. E muita coisa não era.”
Batista Jr. seguiu na apuração com fontes próximas a Derrite e assim narrou a história desconhecida do titular de uma das pastas mais importantes do governo estadual paulista. Isso tudo sem uma entrevista com o próprio personagem – o que não é raro.
Ana Clara Costa já assinou alguns perfis que não tiveram uma entrevista com seus protagonistas, mesmo diante de insistência, como foi o caso o do advogado Walfrido Warde. Isso não quer dizer que eles tenham ficado alheios à apuração. “Quando você apura um perfil para a piauí, entra em contato com muita gente e parte dessas pessoas contam que estão sendo procuradas.” Mesmo sem aceitar o encontro com a jornalista, alguns “perfilados” acabam incentivando tais fontes a falarem, para que a reportagem também tenha acesso a histórias de pessoas que ele entende como aliadas.
“A piauí é talhada para fazer um perfil sem acesso, mas esse trabalho vai levar mais tempo, porque vai ser preciso apurar muito mais no entorno do personagem”, afirmou Petry.
A recusa em conceder entrevista, com todas as dificuldades que traz ao repórter, pode ter um lado positivo, segundo Ana Clara Costa. “Às vezes o distanciamento te ajuda a enxergar a floresta.”
A Casa de Histórias está em sua primeira edição e é promovida pela piauí em parceria com a Netflix, a Janela Livraria e a editora Mapa Lab.