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É Tudo Verdade – a mostra competitiva brasileira e o glorioso filme de encerramento do 25º Festival

Competidores nacionais padecem de falta de audácia, fundamental nos tempos de hoje

Eduardo Escorel | 07 out 2020_09h00
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Começo a escrever dois dias antes da cerimônia de premiação do 25º Festival É Tudo Verdade, sem saber qual será a decisão do júri da mostra competitiva brasileira, a ser anunciada no domingo (04/10). Já assisti, porém, ao mais que perfeito filme biográfico de encerramento – Wim Wenders, Desperado (2020). No documentário, Eric Friedler e Campino (Andreas Frege) resgatam a trajetória operosa de Wenders, um apaixonado pelo cinema, e exaltam a sua fidelidade ao cinema autoral, entendido como aventura pessoal de alto risco, sem encobrir fracassos do personagem-título. Wim Wenders, Desperado contém, ademais, lições de grande proveito – “Se você quer fazer cinema, veja os filmes de Wenders, idiota!”, conclui no prólogo o abusado Werner Herzog.

Entre os filmes brasileiros em competição, Fico Te Devendo Uma Carta Sobre o Brasil, de Carol Benjamin, e Segredos do Putumayo, de Aurélio Michiles, destacam-se por não manifestarem a síndrome do envelhecimento precoce. Graças à sua bem-vinda ambição, nenhum dos dois sofre do mal que atinge os outros documentários em competição de modo e intensidade diferentes. Decisivo para ambos preservarem a vitalidade é tratarem de chagas que não cicatrizam, como no filme de abertura do Festival – A Cordilheira dos Sonhos, de Patrício Guzman. São feridas nunca curadas, antigas em Fico Te Devendo Uma Carta Sobre o Brasil, ancestrais em Segredos do Putumayo, mas que nos dois casos têm repercussões atuais.   

Filmagens de Segredos do Putumayo / Foto: Aurélio Michiles/Divulgação

 

A fraqueza dos demais participantes da mostra competitiva brasileira, incluindo os dois comentados na coluna da semana passada, deve-se, ao menos em parte, à falta de audácia requerida em um tempo excepcional como o que estamos vivendo desde a entrada em vigor do estado de calamidade pública – tivemos mais de 146 mil óbitos causados pela Covid-19 e ultrapassamos 4,9 milhões de casos de contaminação pelo coronavírus; à frente do desgoverno federal temos um presidente inepto, com pouco mais de dois anos de mandato pela frente, que 40% da população considera bom ou ótimo, e poderá se reeleger; o contingente de desempregados e de pessoas sem trabalho chega a mais de 13 milhões; a crise econômica do país persiste; e, entre outros impasses, não há qualquer sinal de que a produção cultural dependente do Estado, em geral, e a do cinema, em particular, terão condições de se reerguer no atual governo.

Audácia é a marca distintiva de Wenders. Ele diz no documentário de encerramento do Festival que durante a filmagem de Paris, Texas (1984), um de seus filmes mais bem-sucedidos, sentiu pela primeira vez estar sendo arrastado pela correnteza de um rio, sem saber bem para onde estava sendo levado. Fazer cinema em queda livre, sem roteiro, é o modus operandi de Wenders. Segundo ele, ter fracassado ao fazer Hammett (1982) foi crucial para poder realizar Paris, Texas, a seguir, com sucesso – êxito graças ao qual pôde voltar à Alemanha, após a temporada americana, sem ser como um derrotado.

Oito dos dez filmes da mostra competitiva brasileira, vítimas involuntárias de um conjunto de fatores sanitários e políticos pelos quais não são responsáveis, perderam sintonia com as preocupações dominantes no momento presente. São documentários rotineiros, no sentido de habituais, que abordam questões paroquiais de forma convencional (sem conseguirem “revelar a magia que há nas coisas comuns”, como Wenders diz que procura fazer). Reincidem em gêneros consagrados, como perfis de celebridades, por exemplo. Os dois baseados em material de arquivo se diferenciam entre si pelo maior, ou menor, grau de envolvimento pessoal dos diretores com o tema abordado – Roberto Berliner se apresenta como o quinto de Os Quatro Paralamas, o que por si só valoriza o filme. A trajetória da banda e a do diretor se confundem, revelando a experiência de uma geração através do acervo filmado ou, em alguns casos, dirigido pelo próprio realizador; Libelu – Abaixo a Ditadura, por sua vez, resulta do interesse do diretor, Diógenes Muniz, de 34 anos, pela Liberdade e Luta, braço estudantil da organização trotskista atuante na década de 1970. Tratando-se para ele de tema do passado longínquo, com o qual não teve contato pessoal, e carecendo de dotes de historiador, Muniz recorre a imagens de arquivo para apresentar a Libelu, além de múltiplas vozes de antigos militantes que dominam e conduzem a narrativa, proporcionando, com algumas exceções, um melancólico espetáculo diante da câmera.

Fico Te Devendo Uma Carta Sobre o Brasil é o belo e enigmático título do filme de Carol Benjamin que recebeu menção especial do júri no 32º Festival Internacional de Documentários de Amsterdã – IDFA, em novembro de 2019. A diretora investiga o longo período em que seu pai, César Benjamin, esteve preso, na década de 1970. Recupera o passado através do depoimento gravado de sua avó, a química Iramaya Queiroz Benjamin (1923-2012) e da correspondência que ela manteve com Marianne Eyre (1931-), tradutora sueca que trabalhou na Anistia Internacional a partir de 1966, visitou César quando ele estava preso, tornou-se amiga de Iramaya e é entrevistada no filme. O sofrimento de César, torturado e submetido a confinamento solitário, em 1971, quando tinha 17 anos, compõem o eixo narrativo do documentário. Ao chegar exilado na Suécia, em 1976, o encontro com seu irmão mais velho, na pista do aeroporto, é um momento de alta carga emotiva.

Há, no entanto, aspectos insatisfatórios em Fico Te Devendo Uma Carta Sobre o Brasil. O principal resulta de não ser esclarecido o enigma familiar que o próprio filme revela –  qual o motivo de o pai de Benjamin se manter afastado do projeto da filha, deixando de contribuir sequer com seu próprio relato, registrado em outras ocasiões para atender outras finalidades? Como entender que nesses depoimentos César não mencione sua mãe, Iramaya, conforme o filme da filha comenta? São questões pessoais, privadas a princípio, que não caberia sequer mencionar se o filme não as tornasse públicas. Ao deixá-las encobertas, Fico Te Devendo Uma Carta Sobre o Brasil causa sensação de certo constrangimento no espectador, como se ele estivesse penetrando indevidamente na intimidade alheia. Em vez de “abrir caixas pretas para que o passado não nos assombre”, como Benjamin diz pretender, o que ocorre é ficarmos ainda mais assombrados. Outra questão negativa é, no final, a autocomplacência com que a diretora se dirige aos filhos enquanto a imagem da água do mar, gravada com a lente na beira da superfície, prolonga-se indefinidamente.

Entre os filmes brasileiros selecionados para a mostra competitiva do É Tudo Verdade, Segredos do Putumayo ocupa posição ímpar, devendo ser reconhecido como um filme admirável. Grandioso graças à beleza de sua linguagem visual e sonora, o que o distingue é a atualidade do tema, maestria narrativa e abrangência de escopo, que inclui (1) denúncia da brutalidade do colonialismo no Estado Livre do Congo; (2) escravização e genocídio de povos indígenas no Alto Amazonas; e (3) luta armada pela independência da Irlanda. Rol de assuntos abordado através de relatórios escritos pelo poeta e revolucionário irlandês Roger Casement (1864-1916) enquanto estava a serviço, como diplomata, do Império Britânico, e também através do seu perturbador diário de viagem ao percorrer 4,8 mil km Rio Amazonas acima, rumo ao Putumayo, no sudoeste da Colômbia. Foi lá que testemunhou as condições de trabalho desumanas para colher o látex das seringueiras, impostas aos indígenas subjugados pela Peruvian Amazon Company, empresa com participação de sócios ingleses, responsável pelo chamado “holocausto da borracha”. Além de conduzir a narrativa através da voz em off do ator irlandês Stephen Rea, Casement se torna, ele mesmo, personagem do filme – acusado de traição, sabotagem e espionagem contra a Coroa por sua atuação na luta pela independência da Irlanda, ele foi preso, enforcado e enterrado sem identificação. “Eu morro por meu país”, teriam sido suas últimas palavras. Devolvidos à Irlanda, em 1965, os restos mortais de Casement foram recebidos com honras de Estado e enterrados ao lado de seus companheiros republicanos.

A certa altura de Segredos do Putumayo, Casement pergunta: “Não há limite para o sofrimento humano?” Imagens atuais, em harmonia perfeita com descrições escritas há mais de um século, deixam patente a perpetuação da tragédia amazônica.

Interrompo esta coluna aqui, no sábado, e fico à espera da premiação a ser anunciada domingo (04/10) à noite, na expectativa de que o júri, formado por Cristiana Grumbach, Francisco Cesar Filho e Ignácio de Loyola Brandão, faça justiça ao filme que merece, penso eu, ser reconhecido como o melhor da competição brasileira de o 25º Festival É Tudo Verdade – Segredos do Putumayo, de Aurélio Michiles. Aguardemos.

Pouco antes das 7 horas da noite, na cerimônia de premiação transmitida ao vivo, o júri anunciou duas menções honrosas e o melhor documentário da mostra brasileira. As menções foram atribuídas a Fico Te Devendo Uma Carta Sobre o Brasil, de Carol Benjamin, e a Segredos do Putumayo, de Aurélio Michiles. Libelu – Abaixo a Ditadura, de Diógenes Muniz, foi premiado como melhor longa-metragem do Festival – decisão de júri não se discute, aceita-se, mesmo quando é incompreensível.

No início da cerimônia de premiação, diretoras e diretores de filmes brasileiros participantes do 25º Festival É Tudo Verdade lançaram um manifesto em que declaram “total desacordo com os rumos da política cultural do país” e denunciam, entre outras questões, “a ameaça de paralisia total” da atividade audiovisual. No final, conclamam realizadoras e realizadores a “não se intimidarem… e nunca parar e nem silenciar”. O gravação completa da leitura do manifesto está disponível aqui.

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A 9ª edição de Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba ocorrerá de 7 a 15 de outubro. Cinco longas-metragens e quatro curtas, exibidos no Festival de Berlim, na Mostra de Tiradentes e no Festival de Brasília, entre outros eventos, serão exibidos na Mostra Olhares do Brasil. O Festival acontecerá online, e os filmes ficarão disponíveis diretamente no site do Festival onde a programação completa pode ser conferida: www.olhardecinema.com.br. No encerramento será exibido Antena da Raça (2020), de Paloma Rocha e Luís Abramo, documentário que recupera diálogos, excertos, cenas dos filmes e entrevistas de Glauber Rocha. O documentário integra a seleção oficial da Mostra Cannes Classics, a ser apresentada no Festival Lumière, em Lyon, de 10 a 18 de outubro e no Réncontres Cinématographiques de Cannes, entre 23 e 26 de novembro.

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Em 10 de outubro, sábado, às 19 horas, será exibido o segundo programa da série Cinema Vivo, dedicado a Dziga Vertov, no canal de Evaldo Mocarzel no Youtube, contando com a participação do pesquisador Luís Felipe Labaki.

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Na próxima terça-feira,13 de outubro, às 11 horas, Piero Sbragia, Juca Badaró e este colunista conversam ao vivo, no canal 3 em Cena, com Aurélio Michiles, diretor de Segredos do Putamayo. O acesso à conversa poderá ser feito através do link https://youtu.be/D7S6mbFtb2k

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