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    Pedro Ladera/Folhapress

questões da política

Economia é a pedra no caminho de Bolsonaro

Presidente tenta copiar política de Lula com manual de Guedes e vira refém do auxílio emergencial

Cesar Zucco | 04 set 2020_15h02
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O recente fascínio do presidente Bolsonaro com a transferência direta de renda tem suscitado comparações cada vez mais frequentes com o ex-presidente Lula. Há, de fato, alguns paralelos importantes. O governo Lula também “bateu cabeça” no primeiro ano e meio e parecia que não ia sobreviver à grave crise política da metade de seu segundo ano. Depois disso engrenou. A transferência direta de renda via Bolsa Família tornou-se uma das iniciativas mais marcantes e um dos maiores legados de seu governo. Lula foi celebrado como tendo resolvido a tensão entre responsabilidade fiscal e preocupação social, tornando-se, nas simpáticas palavras de Barack Obama, “o político mais popular do mundo”. Além disso, Lula, que havia sido eleito em 2002 com mais apoio em municípios com renda e nível de desenvolvimento mais altos,  depois de décadas na oposição sem conseguir conquistar o voto dos “grotões,” adquiriu um eleitorado desproporcionalmente mais forte nas regiões mais pobres do país, ao ponto de o Nordeste ser hoje frequentemente adjetivado como uma região “tradicionalmente petista”.

A narrativa de convergência na trajetória dos dois presidentes ganha contornos ainda mais plausíveis quando observamos o comportamento dos seus respectivos índices de popularidade. A figura abaixo reporta a porcentagem de respondentes que consideram o desempenho do presidente bom ou ótimo, calculada a partir de todas as pesquisas disponíveis publicamente para os dois presidentes (160 durante os oito anos de governo Lula e 140 nos vinte primeiros meses de governo Bolsonaro) e agregadas de duas formas diferentes (explicadas neste artigo anterior).

Bolsonaro perdeu popularidade mais rapidamente no início de seu mandato e permaneceu num nível mais baixo do que Lula até o início da pandemia. Ainda assim, há bastante coincidência nas trajetórias nesses primeiros vinte meses de mandato. A queda de Lula com os primeiros escândalos de corrupção depois de um primeiro ano de governo em que a economia quase não cresceu coincide, tanto temporalmente quanto em magnitude, com os efeitos iniciais da pandemia na popularidade de Bolsonaro. A recuperação de ambos, até agora, é também muito parecida. Tal qual Lula, Bolsonaro teve um primeiro ano e meio muito conturbado e uma crise política forte. Parece ter encontrado nova vida com seu foco na transferência de renda e busca, agora, avançar eleitoralmente no Nordeste do Brasil. Estará sacramentado que Bolsonaro será – ao menos eleitoralmente – um novo Lula?

Muitos acreditam que sim, inclusive (provavelmente) o próprio presidente. Mas o que pode parecer um grande reposicionamento estratégico é, na verdade, uma reação tática atabalhoada baseada numa versão deturpada da história do governo Lula na qual o Bolsa Família foi o único grande redentor, e na ignorância de diferenças cruciais de contexto que colocarão pedras e crateras enormes no caminho de Bolsonaro É quase como se Bolsonaro tivesse em mãos um manual do tipo “Lula para Dummies”, retirado da estante vazia do ministro Paulo Guedes. 

Primeiramente, há uma certa ingenuidade em apostar que um novo programa de transferência de renda, mais eficiente do que os anteriores, será criado a toque de caixa dentro de gabinetes fechados de um ministério da economia ultraliberal. O Bolsa Família evoluiu muito gradualmente, com tentativas e erros. O governo Lula começou tateando com o Fome Zero, que havia sido sua bandeira de campanha. Ao longo do seu primeiro ano, a iniciativa não andou bem e acabou cedendo lugar ao que veio a ser o Bolsa Família – um programa de transferência condicionada de renda com foco no alívio de pobreza. A cobertura do Bolsa Família cresceu gradualmente a partir de quase 4 milhões de famílias originalmente beneficiadas por programas anteriores herdados do governo FHC para 11 milhões em 2006 e mais de 13 milhões em 2010. Além desse gradualismo, não se pode perder de vista que o Bolsa Família foi o motor de um importante processo de institucionalização do sistema de assistência social brasileiro. A estruturação do CadÚnico (Cadastro Único) bem como a criação e fortalecimento do (então) Ministério de Desenvolvimento Social possibilitou a racionalização e organização de diversos outros programas sociais do governo federal. A burocracia em torno do Bolsa Família foi um pilar importante dos governos petistas e contribuiu para um programa que sempre foi considerado, em diversas avaliações, eficiente e programático (ou seja, não assistencialista nem clientelista). O Bolsa Família, em suma, não foi um puxadinho. Todo o movimento do governo Bolsonaro ao longo de seu primeiro ano foi na direção de enfraquecer o Bolsa Família e sua burocracia, e o benefício emergencial só surgiu por um acidente histórico.

Em que pese a sua desproporcional visibilidade, o Bolsa Família não foi nem a única nem a principal ferramenta de melhoria de vida da população durante os anos Lula. O programa foi um dos vários elementos que contribuíram para o aumento de renda e a redução da desigualdade naquele período. A política de valorização do salário mínimo, por exemplo, teve um impacto ainda maior, e os governos Lula foram de crescimento econômico generalizado, com aumento do emprego e da formalização. De forma análoga, embora todas as evidências indiquem que o Bolsa Família teve um efeito eleitoral de aumentar os votos em Lula em 2006 e em Dilma em 2010 e 2014, o seu efeito eleitoral direto foi menor do que se pode imaginar. Estimativas variam um pouco, mas sugerem que a probabilidade de um(a) beneficiário(a) votar no candidato do governo foi entre 7 a 15% mais alta do que não beneficiários com características sociodemográficas parecidas. De forma muito aproximada, considerando que por volta 25% do eleitorado é beneficiário, o Bolsa Família pode ter rendido entre 1.8% e 3.7% a mais de votos.

O principal empecilho para reproduzir o sucesso de Lula, no entanto, é o contexto econômico. A leitura superficial da trajetória do governo Lula sugere que, no meio do seu pior momento de crise, o petista logrou erguer-se pelos próprios laços de sapatos através da distribuição de recursos aos paupérrimos. Como isso pode ter sido possível? Teria Lula um toque de Midas? E se não foi mágica, por que ninguém pensara nisso antes?

Chegamos a uma resposta mais plausível se olharmos para o Brasil de Lula dentro do contexto mais amplo da época. Lula foi beneficiado por condições econômicas internacionais jamais vistas antes na história desse país, como nos revela o índice de preços internacionais de commodities da UNCTAD. Tomando o início de seu governo como base, o índice quase dobrou durante o primeiro mandato de Lula e praticamente triplicou antes do final de seu governo.

 

Commodities são produtos naturais (agropecuários ou de minerais) pouco processados, pouco diferenciados, e vendidos no mercado internacional. Embora a economia brasileira seja mais diversificada do que a de nossos países vizinhos, somos também altamente dependentes da exportação desses produtos. Não só os ciclos econômicos brasileiros seguem de perto as variações dos preços da commodities (ver, por exemplo este artigo), mas. como mostramos no livro The Volatility Curse, escrito com Daniela Campello, esses preços – juntamente com a taxa de juros norte-americana – têm forte influência sobre a duração de governos sul-americanos, a popularidade de presidentes e as suas chances de reeleição.

O cenário internacional importa politicamente por dois grandes motivos. O primeiro é bastante direto e óbvio. Puxada por fatores internacionais, a economia doméstica tem desempenho melhor e as pessoas ficam mais satisfeitas. O que já seria bom fica ainda melhor porque o governo também arrecada mais, o que possibilita distribuir renda para os mais pobres sem necessariamente tirar dos mais ricos. Durante o período Lula, por exemplo, as receitas do governo cresceram 2,9 vezes. Mas isso não significou mais dívida. O superávit primário, no mesmo período, cresceu por um fator quase tão grande (dados da Cepal). As condições eram tais que mesmo com o Bolsa Família (e outras políticas pró-pobres) as contas do governo fechavam no azul.

Há também um segundo efeito, esse indireto. Com condições econômicas mais favoráveis, “o mercado” fica mais leniente. Quando governos não estão pressionados por necessidades urgentes de financiamento, ficam menos sujeitos à chamada “disciplina de mercado”. Como descrito por minha coautora em seu primeiro livro The Politics of Market Discipline, governos têm mais liberdade para perseguir a sua agenda – para o bem ou para o mal – quando as condições econômicas são favoráveis. Mesmo que pudesse antecipar problemas no futuro, em caso de uma reversão de condições externas, o mercado não estava na posição de “exigir” de Lula uma reforma da Previdência (salvo no início do seu primeiro governo), teto de gastos, mais austeridade, nem outras medidas desse tipo.

Sem tirar os méritos de Lula, era muito mais fácil combinar responsabilidade fiscal com justiça social em 2005, 2006 ou 2010 do que nas condições que o Brasil se encontra hoje. O gráfico das commodities, acima, mostra que o cenário internacional atual é muito menos auspicioso para Bolsonaro do que foi para Lula. A diferença pode até não ser tão marcante neste mesmo momento de seu mandato, mas o que se sucedeu depois dificilmente voltará a acontecer. As previsões recentes do FMI, publicadas no World Economic Outlook de Junho de 2020, (p.7), representadas no gráfico, são de um pequeno crescimento em 2020 e 2021 relativo a 2019. No entanto, para igualar as condições encontradas por Lula, as commodities teriam que aumentar 2,1 vezes até as eleições de outubro de 2022.

O boom de commodities observado durante o governo Lula foi o maior já registrado na história, e coincidiu com a crescente inserção Chinesa no mercado internacional e sua insaciável demanda por produtos básicos. A China não entrará novamente no mercado internacional e o comércio internacional parece passar por um momento de retração.

Há que se considerar, também, que as situações fiscais e sociais atuais são muito piores do que as do governo Lula no mesmo momento do seu mandato, e as opções disponíveis muito mais restritas. Lula já tomara posse com um superávit primário. Bolsonaro, por outro lado, recebeu um déficit primário que já vinha crescendo mesmo antes da pandemia. Não existia, na época de Lula, um teto de gastos e ele teve condições de aumentar os gastos consideravelmente na medida em que o contexto foi ficando cada vez mais favorável e as receitas fiscais cresceram. Hoje, ainda que houvesse um boom puxado por condições externas seria necessário, primeiro, desarmar or flexibilizar o teto de gastos, o que por si só impõe uma série de dificuldades.

A recente melhora da popularidade do presidente Bolsonaro se deve (provavelmente em grande parte) ao gigantesco (e necessário) gasto com o auxílio emergencial. Sabemos que este auxílio contribuiu para aumentar a renda real de grande parte da população e que foi a única renda para milhões de famílias nos últimos meses, protegendo a maioria dos menos afluentes da debacle econômica causado pela pandemia. Na ausência de qualquer outra iniciativa, e com um desempenho econômico que já era pífio antes da pandemia, isso faz do governo, hoje, um refém do auxílio emergencial. O auxílio, no entanto, não poderá ser mantido nem próximo dos termos atuais por limitações fiscais que eram muito menos intensas durante o governo Lula exatamente por conta do contexto favorável.

Não se deve assumir que Bolsonaro conseguirá repetir a trajetória de Lula. O governo de Lula estava recheado de quadros comprometidos com redistribuição de renda enquanto que o de Bolsonaro (ainda) está sob a batuta de Paulo Guedes. Como diz um já velho adágio da política: personnel is policy. Mas, acima de tudo, o contexto é completamente diferente, e contexto importa muito. O espaço de manobra de Bolsonaro é infinitamente menor do que foi o de Lula, as perspectivas econômicas de médio prazo não são alentadoras e os mercados têm mais condições de “disciplinar” governos hoje do que em 2004 e muito mais do que nos anos que se seguiram. O caminho de Bolsonaro até 2022 estará recheado de adversidades, principalmente econômicas. Até um gênio da política teria dificuldade para encontrar uma saída nesse contexto.

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