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    Cabra marcado para morrer

questões cinematográficas

Eduardo Coutinho – 120 dias

“A gente sentimos uma tristeza, assim. Houve isso. Parece que o sol esfriou, assim, não quis sair do lugar, e foi aquela serenidade fria, assim, aquela tristeza arrancando, assim. Aquela vida com aquela saudade. Por que tem… Existe saudade sem alegria, aquela saudade com tristeza. E todo mundo sentiu, não é?” (Manoel Serafim, Cabra marcado para morrer, 1981)

| 02 jun 2014_12h53
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“A gente sentimos uma tristeza, assim. Houve isso. Parece que o sol esfriou, assim, não quis sair do lugar, e foi aquela serenidade fria, assim, aquela tristeza arrancando, assim. Aquela vida com aquela saudade. Por que tem… Existe saudade sem alegria, aquela saudade com tristeza. E todo mundo sentiu, não é?” (Manoel Serafim, , 1981)

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Nos últimos tempos, Eduardo Coutinho foi levado a mudar de posição. A pedidos, com frequência cada vez maior deixou de ser apenas uma voz e a referência fora de campo do olhar dos seus personagens, para se mostrar por inteiro diante da câmera. De certa forma, foi vítima do seu próprio método ao ser deslocado para o lugar de quem se dispõe a revelar sua intimidade – o que ele mesmo sempre se recusou a fazer. Sem nenhum comedimento verbal, mastigava as palavras. O baixo calão tinha presença marcante no seu repertório. Em geral, aparentava contragosto mas no fundo adorava falar e, embora nem sempre fosse fácil entender o que dizia, costumava iluminar o caminho, transitando em alta velocidade entre o absurdo e o pensamento lógico.

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Julho de 2013 (Flip, Paraty)

“[…] Um cara me convida pra daqui a um ano fazer uma palestra sobre clonagem humana, eu aceito. Porque daqui a um ano se eu estiver vivo é lucro. Daí eu digo para ele: ‘Eu nem sei o que é isso’. Né? Ou uma palestra sobre física quântica daqui a dois anos, eu acho ótimo. Ele supõe que eu vou estar vivo. Então, eu digo: ‘Tá, tá ótimo. Você confirma seis meses antes.’ Seis meses, eu digo: ‘Eu não sei o que é física quântica’, entende? Então, coisas pra daqui a dois anos, ótimo. Podem convidar que não há problema. […]”

“Eu torço pra continuar imortal, mas contribuo pra que não seja imortal. Mas não pretendo parar de fumar. Não pretendo parar de fumar.”

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Agosto de 2013 (Escola de Artes Visuais do Parque Lage, EAV), Rio

“[…] A única coisa que é importante para o ser humano é dar sentido à vida. Por que você vai levantar da cama de manhã? Eu me pergunto. É uma coisa absurda. Pra quê? Por que não ficar dormindo? Pra que viver? Então, o grande problema… no meu caso, num filme sobre religião [referência a Santo forte que tinha acabado de ser exibido]… Essa é a explicação babaca de um materialista imbecil, tá na cara: ‘o que as pessoas disseram é porque elas são pobres’.  É pra dar um sentido à vida, meu filho. Você dá um sentido à vida com a religião, fazendo filme, pintando…  Você dá um sentido à vida fazendo… sabe? Enquanto você não encontra uma coisa, inventa uma paixão, inventa… Não importa. É esse o único problema na vida, é esse. É dar um sentido a uma coisa que você não sabe quanto vai durar. Você não pediu para nascer e não vai pedir para morrer. E quanto dura esse espaço entre nascer e morrer? Então, a vida é muito simples, entende? O que acontece entre nascer e morrer. [pausa] É só isso. O resto…Você pode ser Lênin ou Madre Teresa de Calcutá, é outro problema. Isso é outro problema.”

“Eu não tenho ilusão nenhuma. Não tenho [?]. Tu pode fazer uma arte extremamente feliz e a tua vida ser uma desgraça. Isso não existe pra mim. Tem gente que acredita nisso [na relação entre arte e vida] e na verdade são opções…pra mim não existe isso. [A arte] Está ligada à vida na medida em que… na medida em que dá uma razão pra viver, até…. econômica, que é a pior de todas, mas pelo menos… Mas, se eu não fizesse esse trabalho iria ser insuportável. A vida em si é… é fogo, né? A vida é dura. Mas, ah… tudo bem. A gente vai… enquanto você respira há esperança. […] E o ideal, quando você morrer, que infelizmente a gente morre, eu queria que fosse no meio de um filme e que o filme fosse exibido… inacabado. Meu sonho é fazer filmes inacabados. Se você morrer, é perfeito. Espero que demore, não é?” [sons de batidas na madeira]

(Íntegra publicada na revista digital Portfólio #3 da EAV, editada por Marília Martins. Entrevista à pesquisadora Andrea Nestrea. Gravação e edição: Joanna Fatorelli e Thiago Antonio.)

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Outubro, 2013. Gravação feita no Rio para o filme Eduardo Coutinho 7 de outubro, de Carlos Nader.

“Você impõe regras a si mesmo. O fato de você escolher sua prisão te dá uma liberdade absoluta.”

“O presente da filmagem é a única coisa que interessa.”

“É um prazer indizível sentir que estou fazendo um filme que só eu quero e posso fazer, baseado na fala humana, no corpo que fala.”

“A interação com quem fala é uma relação erótica que acontece cada vez menos pela minha velhice. É uma tensão positiva que quando dá certo é um orgasmo. Não acontece se não houver câmera.”

“É por isso que há 20 anos não escrevo: como e por que escolher uma palavra?”

“Nenhuma questão está dada. Tudo está para ser descoberto.”

“Nunca entrevisto pessoas que eu conheço.”

“Minha vida não tem nada a ver com minha obra.”

“Tenho fascinação por tudo que é inacabado, resíduo, lixo, detrito. A vida não é senão isso.”

“Continuo tão infeliz quanto antes. E tão feliz quanto antes.”

(Transcrição feita de memória)

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30 de janeiro de 2014 (Gravação da faixa comentada de , feita de improviso enquanto o filme era projetado na tela do Solo Audio, Rio)

“[…] Com esse material [filmado em março de 1964 para ], às vezes pessoas diziam: ‘não, tem que acabar’. Não tem que acabar. O filme não tem nada que acabar. E, evidentemente que, até 1966, tinha francês que vinha aqui e dizia: ‘Não, vamos completar o filme e tudo.’  Eles não percebiam, essas pessoas todas, que enquanto não acabasse a ditadura não tinha filme. Nem que fosse Deus fazendo, por que ninguém falaria nada. E estavam todos espalhados.”

“[…] Não faria [acabaria o filme] por que eles não me diriam nada. O próprio João Virgínio que conta aquele troço [referência ao relato da tortura que sofreu)…se eu filmasse um ano antes ou dois anos antes, o João Virgínio não falaria aquilo, nunca. Nunca, nunca. Sabe por quê? Sabe por quê? Por que eles são inteligentes. O povo é inteligente. O garoto de rua fala pro francês que ele matou o pai. Cinco minutos depois, ele fala pra um outro que ele é vítima da sociedade. Eles sabem o que os caras perguntam e os diretores brasileiros querem acreditar no que os caras falam. E sempre se diz a mesma coisa. Isso é uma tragédia. Você sempre acha uma pessoa que diga aquilo que você quer. E eles são de uma extrema habilidade, como foi a anistia. O registro do Arraes chegando, de todo mundo chegando, pra eles é um aviso: pode falar.”

“Esse Peta, João Pedro Teixeira Filho, que foi criado pelo avô, ele… há uns dez anos, mais ou menos, ele matou o irmão, que vai aparecer ainda [no filme que estava sendo projetado enquanto Coutinho falava], chamado…ele é Peta, o irmão chamado Eudes. E um ou dois anos depois, ele foi morto, provavelmente queima de arquivo. […] Ele matou o irmão e foi morto um ou dois anos depois. Foi morto, dizem que foi queima de arquivo. E ele tinha feito já crimes anteriores. […] O Eudes era um cara muito perturbado pelo que aconteceu…[…] Foi na frente da mãe, o avô tava vivo. Foi pertinho daqui, e o avô tava vivo. […] O terrível é que ele mata o irmão na frente da mãe.”

“Se cê demora, esse homem [João Virgínio] não existe, a memória dele não existe. Todas as coisas que você constrói tão destinadas a morrer. Sabe? A derrota tá sempre ali. Isso é…sabe? Não pode ter ilusão nisso. Esse triunfalismo, que todo filme de esquerda dos anos 60, eu via e dizia assim: mas nós tamos no poder! Nós já estamos no poder! Sabe? Sanjines, aquele argentino, como é que chama? Solanas. Esses filmes todos. Pra que continuar? Eu vou pra casa tomar lanche agora. Estamos no poder, pô. Em todos os filmes a gente tava no poder. Agora: a gente foi derrotado, pô. Todas as alas. E dizem que não. E querem me dizer que não. Que não sei o quê. Sabe? Occupe-toi d’Amélie [vaudeville de George Feydeau adaptado para o cinema, em 1949, por Claude Autant-Lara]. É uma peça de boulevard francesa. É uma brincadeira absolutamente…Devia ser proibida… em que ocupar é fácil. Difícil é não desocupar. É ficar.”

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Além desses depoimentos, e outros que devem ter sido feitos, até o início de 2015 deveremos ter Banquete Coutinho, de Josafá Veloso, graduado em História pela Universidade de São Paulo e mestrando em cinema na Universidade Federal Fluminense, que  filmou um depoimento de 3 horas do Coutinho em janeiro de 2012, além de alguns debates a partir de 2010.

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Passados 120 dias da tragédia que tolheu a vida de Eduardo Coutinho, chega às livrarias a nova edição de O que é o cinema?, de André Bazin, lançada pela CosacNaify, trazendo à frente dos demais artigos o famoso “Ontologia da imagem fotográfica”. Relido neste momento, o texto no qual Bazin começa afirmando que o “complexo” de múmia está na origem da pintura e da escultura, correspondendo a “uma necessidade fundamental da psicologia humana: a defesa contra o tempo”, nos leva inevitavelmente a duvidar que o cinema possa de fato conservar, como Bazin pretende, “o objeto lacrado no instante, como no âmbar o corpo intacto dos insetos de uma era extinta”. 

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