Ed René Kivitz em culto na Igreja Batista da Água Branca, em São Paulo______Foto: divulgação/Ibab
Eis que tudo se fez novo
Pastores retomam leitura fiel do Evangelho para contrapor conservadorismo, acolher o progressismo e criam dissidências na comunidade evangélica
A Igreja Betesda inaugurou, em setembro, um novo espaço. Saiu da Avenida Engenheiro Alberto de Zagottis, onde ocupava há 24 anos um galpão com cerca de 8 mil m2, para um prédio de três andares moderno, mas enxuto, com auditório e mezanino, na Rua Américo Brasiliense. A troca de endereços na Zona Sul paulistana foi explicada pelo pastor e presidente da igreja Ricardo Gondim à piauí em meados de agosto, quando a mudança estava sendo organizada. Naquele domingo, dia 18, por volta das 10 horas, momentos antes de o culto dominical começar, ainda havia muitas cadeiras disponíveis e poucos assentos preenchidos, resultado de uma debandada de 90% dos membros da Betesda. Era um espaço grande e caro demais para ser mantido.
A inauguração da nova sede durou três dias, entre 20 e 22 de setembro. Gondim celebrou cultos tendo a companhia de pastores célebres, como Kleber Lucas, Caio Fábio e Henrique Vieira, também deputado federal pelo Psol do Rio de Janeiro. No terraço do prédio, fiéis com camisetas brancas cuja parte frontal mostrava o símbolo da Betesda tiveram o corpo e a cabeça mergulhados em uma banheira branca nas cerimônias de batismo. “Nós atravessamos uma tormenta, uma tempestade, de não termos condições de bancar os custos da igreja Betesda na localidade onde estávamos. A nossa renda caiu muito e não adianta discutir todos os porquês. Tivemos um êxodo muito grande de pessoas e ficamos literalmente inseguros do ponto de vista patrimonial”, palestrou Gondim aos fiéis durante o segundo dia de inauguração. “Eu ficava com uma preocupação sobre o que ia acontecer. Mas hoje é um dia histórico. Esse é o nosso lugar, nós compramos ele. Não é meu, da minha família, mas do membro da Betesda. É a continuidade do projeto para além da minha vida.
Gondim disse à piauí que parte da debandada já foi recuperada – no domingo em que esteve no culto, a piauí contou algo próximo de duzentas pessoas. Ainda que a quantidade não iguale o percentual de desertores, a reposição é celebrada pelo pastor. Antes dessa renovação, era difícil ver na Betesda um casal de rapazes que chega de mãos dadas e se senta ao lado de uma mãe com duas crianças e duas senhoras de cabelos brancos. Ou mesmo ouvir Gondim brincar com um componente que está “buscando um namorado”. “Sou filho de um preso político. Não me posicionar diante de uma pessoa que defende torturador seria contrário à memória do meu pai”, afirmou ele, citando o ex-presidente Jair Bolsonaro. Seu pai, Eródoto Rodrigues, era militar da Aeronáutica em Londrina, no Paraná, e não aderiu ao golpe de 1964. Foi preso e torturado.
Crítico de Bolsonaro, ele declarou voto em Fernando Haddad (PT) nas eleições de 2018. Quatro anos depois, se reuniu com Lula (PT) às vésperas do segundo turno da eleição. Nesse intervalo, Godim adensou o discurso não só contra a extrema direita, mas em defesa de pautas relacionadas aos LGBTQIAP+ e a abertura da igreja para essa comunidade, que hoje possui um grupo de acolhimento para esse público. “A Betesda é uma comunidade cristã que está propondo algo e por isso tantos desistiram de nós. Porque saímos do senso comum do que era aceito acriticamente”, ponderou ele na cerimônia de inauguração.
O pastor Edson Nunes Jr., de 44 anos, hoje reúne sua igreja num teatro. Todos os sábados, às onze da manhã, cerca de 550 fiéis se encontram no Shopping Pátio Higienópolis, região central de São Paulo, e assistem ao culto no teatro do complexo. Mas nem sempre foi assim. Por dezoito anos, Nunes foi pastor de diversas comunidades ligadas à Igreja Adventista, na capital paulista, cumprindo uma tradição familiar iniciada com seu avô materno, que era ancião da igreja (um dos postos mais respeitados nessa doutrina). Em julho de 2022, no entanto, Nunes foi demitido do cargo pastoral por “preocupações teológicas”, segundo justificativa dada pelo Conselho da Associação Paulistana da Igreja Adventista do Sétimo Dia.
“Eles me fizeram um questionário com 28 perguntas, com questões como: o que você pensa sobre o aborto? E o casamento homossexual? E o Black Lives Matter? [Eu pensei:] Bom, isso aqui não é um questionário teológico, mas político”, relembrou Nunes em entrevista à piauí, ressaltando que nunca havia recebido indagações semelhantes. Ele acredita que as respostas tenham selado sua saída da igreja.
Nunes ficou surpreso com a interpelação, mas percebia que sua atuação nos cultos realizados aos sábados pela manhã, na região do Paraíso, na Zona Sul paulistana, não agradavam à cúpula religiosa onde pregava. Seus sermões abordam a existência do racismo, o combate a preconceitos e o amor de Cristo sem distinção de pessoas, temas que o colocam mais à esquerda do que seus pares gostariam – ao menos quando o assunto é o que se fala no púlpito diante dos fiéis.
As questões religiosas e ideológicas sempre permearam a vida de Nunes. Filho de um médico que serviu em missões da Igreja Adventista e neto de pastor, ele recebeu educação religiosa desde a infância. A trilha sonora familiar era composta por música sacra ou religiosa, sem as canções seculares. As divergências começaram aí. “Dentro dessa cultura conservadora, sempre estive um pouco fora.”
O alinhamento a ideais progressistas começou na adolescência. Ele relata que por volta dos 14 anos se interessou pela história da União Soviética, leu o manifesto comunista, aprofundou os estudos sobre a obra de Karl Marx e aproximou-se do socialismo. No início da fase adulta, entrou para o movimento estudantil na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, onde iniciou a faculdade de letras – ele concluiu a graduação no Centro Universitário Adventista de São Paulo e fez mestrado e doutorado em estudos judaicos na Universidade de São Paulo (USP). “Só que, no movimento estudantil, você se decepciona. Tem muita política e desejo por dinheiro. Percebi que a resposta não está na política, mas na religião.”
A decepção com os movimentos organizados na esquerda não mudou sua percepção de mundo. Ao observar a estrutura das igrejas evangélicas, ele diz haver um embate entre quem deseja manter tudo como está e aqueles que anseiam avançar em outra direção, com a presença de mais mulheres no pastorado, o aumento das discussões em torno do feminismo e da discriminação racial, e o apoio à população LGBTQIA+.
Gondim e Nunes estão em grupo de religiosos que, pejorativamente, são chamados por pastores e fiéis de perfil conservador de “os outros evangélicos”. Isso nos termos mais brandos. “A perseguição intraevangélicos já começou”, afirma. Além dele, religiosos como Ed René Kivitz, Caio Fábio e Victor Azevedo são tratados como hereges e frequentemente desqualificados no debate em torno dos ensinamentos do evangelho, além dos ataques vindos das redes sociais e dos púlpitos de seus antagonistas. Eles têm pregações semelhantes: focam na figura de Jesus Cristo para através de seus exemplos propagar a tolerância, a igualdade entre homens e mulheres e o acolhimento a camadas marginalizadas. Com tal abordagem, encontram fiéis não só descontentes com o comportamento excludente e discriminatória de alguns líderes, mas também com a politização da fé.
“O contraditório, as discordâncias e mesmo os conflitos fazem parte do processo democrático. Celebro, portanto, esse mercado de ideias e debates. Lamento apenas quando é feito de maneira hostil e violenta, com desonestidade intelectual e má-fé, mediante o artifício das mentiras e fake news, pois tudo isso nos leva para o extremo oposto do desejado”, afirmou à piauí Ed René Kivitz, pastor da Igreja Batista de Água Branca, em São Paulo.
Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Filosofia da Religião, da Universidade Federal de Juiz de Fora, o pastor Sérgio Dusilek acredita que o Brasil evangélico contemporâneo pode ser dividido em quatro vertentes: fundamentalistas, conservadores, moderados e os mais à esquerda.
Os fundamentalistas, adeptos de uma interpretação literal da Bíblia e sem espaço para interlocução, estão em menor número entre os fiéis, mas são organizados politicamente, em grande parte na extrema direita. Neste grupo estão pastores como Silas Malafaia, presidente da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, o deputado federal Marco Feliciano (PL-SP) e André Valadão, líder da Igreja Batista da Lagoinha. Os três atacam homossexuais com frequência e são contrários à descriminalização do aborto mesmo em casos de estupro, por exemplo.
Em seguida está a “a grande ala do meio evangélico”, como define Dusilek. É um grupo conservador, mas que abre espaço ao diálogo em pautas ligadas à assistência social, mas que ainda são resistentes a assuntos como a diversidade sexual. São exemplos de atuação neste segmento religiosos o bispo Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, e o pastor Deive Leonardo, integrante da Igreja dos Filhos, em Santa Catarina, mais que se notabilizou como influenciador digital e cantor gospel – ele acumula 9,8 milhões de inscritos em seu canal no Youtube e 16 milhões de seguidores no Instagram.
A turma mais moderada, comenta Dusilek, é dividida da seguinte forma: há o pessoal disposto a conversar, que defende certos temas progressistas, mas que não se notabiliza por atuar a favor de políticos de esquerda ou de partidos (é o caso do pastor Edson Nunes). “E há uma outra parcela, mais à esquerda e próxima do socialismo”, como os líderes Caio Fábio e Kleber Lucas, que declararam apoio à eleição de Lula na disputa presidencial de 2022.
Na divisão da religião em si, há os protestantes históricos (presbiterianos, batistas, metodistas), pentecostais (como a Assembleia de Deus), grupo surgido no início do século XX, mas popularizado por aqui por volta dos anos 1950, e neopentecostais (Igreja Universal do Reino de Deus e Igreja Mundial do Poder de Deus), movimento que ganhou relevância na década de 1980 e hoje é uma das mais atuantes no Brasil.
Nos cultos, os protestantes históricos são os mais próximos das ideias que nortearam a Reforma Protestante em 1517. Não falam em línguas, tem modelos de cultos mais solenes e uma forte hierarquia nas igrejas. Os pastores, em sua maioria, são teólogos. Os pentecostais acreditam nos dons espirituais e curas divinas, além de cultos mais “avivados”, que saem dos padrões de músicas clássicas dos históricos. Já os neopentecostais acreditam não apenas na cura divina, mas na libertação e no descarrego (sessão de limpeza espiritual e de energias negativas). Os pastores são formados a partir da passagem de conhecimento dos mais experientes aos mais novos. Os cultos com pautas mais progressistas mantém um tom sóbrio, dando mais importância ao que é dito na pregação do que na espetacularização da fé.
A repórter do jornal Folha de S.Paulo Anna Virginia Balloussier, autora do livro O Púlpito: fé, poder e o Brasil dos evangélicos (Todavia), ressaltou à piauí as nuances do Brasil evangélico. “Os institutos de pesquisa colocam os batistas como históricos, mas entre os batistas há o André Valadão e o Henrique Vieira”, citando dois religiosos que estão em polos opostos nas defesas de suas bandeiras.
É um caleidoscópio complexo também ressaltado por Lívia Reis, doutora em ciências sociais, pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e integrante do Iser (Instituto de Estudos da Religião). “Entre esses dois núcleos, tem um monte de gente que não tá nem de um lado, nem do outro.” Segundo a especialista, a vivência das pessoas pode fazer com que elas não sigam tudo o que os líderes de suas igrejas trazem e não se encaixem em classificações predefinidas. “Elas consideram os pastores como figuras importantes nessa rede de confiança, mas elas também têm a experiência do dia a dia para balizar os valores morais que vão conduzi-las.”
No grupo de pastores dissonantes ao domínio conservador e fundamentalista também não há uma unidade rígida, apesar do discurso similar. Alguns deixam suas igrejas e são obrigados a criar novas comunidades, como é o caso do pastor Edson Nunes. Outros permanecem ligados à igreja tradicional, mesmo com um discurso divergente, como Kivitz. Em seus cultos, que têm um público mais diverso do que em outras igrejas de mesma denominação (Batista), predominam os princípios de Martin Luther King Jr., que, entre outras coisas, prega a liberdade de consciência e de religião da sociedade.
No auge da discussão a respeito da PL 1904, que visava mudar as regras a respeito do aborto, em junho deste ano, Kivitz disse que parte dos fiéis batistas tinha uma “ética seletiva” por querer colocar na cadeia meninas de 13 anos que praticam o aborto depois da vigésima segunda semana. “As ruas de vocês estão ensanguentadas, a infância de vocês está abandonada, os pobres de vocês estão à míngua e vocês fazendo jogo político e disputa de poder brincando com vidas humanas.” O sermão furou a bolha evangélica e passou a ser visto e compartilhado por diversos perfis nas redes sociais.
Kivitz afirma ser contra o aborto, mas ressalta que criminalizá-lo não vai diminuir a prática no país. “O Brasil tem questões estruturais para enfrentar, como a violência contra a mulher, o abuso e a exploração sexual da infância, o alarmante e o inaceitável fato de que a faixa etária de pico das mulheres que sofrem o estupro é de 3 e 14 anos de idade. Minha intenção ao me posicionar foi expressar a pluralidade do campo evangélico na compreensão e atuação pastoral a respeito dessa realidade que violenta mulheres e meninas. Acredito que a igreja evangélica é uma voz relevante para a construção de uma sociedade mais justa e humana. Mas sua voz não é unívoca.”
Kivitz é defensor de uma atualização do texto bíblico e não se preocupa em defender a ideia publicamente. Ele, inclusive, tem feito este discurso de maneira enfática e sem rodeios. Em entrevista recente ao podcast RivoTalks ele explicou sua abordagem. “As me dizer ‘ah, você quer atualizar a bíblia para aceitar gay’. Antigamente eu diria assim ‘não é isso…’. Mas é sim! Quero atualizar a bíblia para não ter mais escravidão, marido batendo em mulher, homofobia, gente sendo assassinado por sua orientação sexual. As pessoas estão usando a bíblia para cometer essas violências. O fundamentalismo interpreta o texto sagrado literalmente. Mas esse é um texto de 4 mil anos, é preciso interpretá-lo.”
Hermes Fernandes, de 54 anos, é pastor há 37 anos, boa parte deles na vertente neopentecostal. É psicólogo, doutor em ciências da religião pela Faculdade de Ciências Filosóficas e Teológicas do Estado do Rio de Janeiro e aprendeu o ofício de pastor com o pai e o avô. Há pelo menos dez anos ele tem mobilizado sua comunidade online para defender a pauta homossexual e “desafiar a hipocrisia da igreja”, como definiu em entrevista à piauí. Com 165 mil seguidores no Instagram, ele faz lives em formato de culto aos domingos e às segundas-feiras, com mensagens contra a intolerância religiosa e respeito à diversidade.
O ápice de seu enfrentamento aconteceu em junho do ano passado após dizer que “homossexualidade não é um espinho na carne, mas que a homofobia é um espinho na carne”, fazendo alusão à fala de Paulo no livro bíblico de II Coríntios 12:7, em que o apóstolo diz que lhe foi dado um espinho na carne. O trecho é interpretado por alguns religiosos como uma indicação de desejos homossexuais. No mesmo discurso, afirmou que Malafaia e Valadão eram “mensageiros do Satanás”. O vídeo, durante um pronunciamento na Igreja Reina (Rede Internacional de Amigas e Amigos), no Rio de Janeiro, bateu mais de 1 milhão de visualizações nas redes sociais.
Seu discurso era uma resposta ao culto ministrado por Valadão dias antes nos Estados Unidos intitulado Deus odeia o orgulho, em alusão a Parada do Orgulho LGBT. “Temos que dar nome aos bois, sabe por quê? Porque senão o mundo pensa que a gente é tudo farinha do mesmo saco. Não é não. Aqui tem um povo que preferiu abraçar o evangelho do amor, o evangelho que não condena”. Além de críticas e ameaças nas redes sociais, os posicionamentos renderam um isolamento inédito na vida do pastor. “Perdi amigos de décadas e estou sendo boicotado”, diz Fernandes, que alega não ser mais convidado para debates e programas de rádio populares entre o público evangélico do Rio.
Dados do Ipea mostram que os evangélicos foram o grupo religioso que mais cresceu no Brasil – 228% nos últimos 25 anos. A confirmarem-se as previsões, podem se tornar a religião com maior número de adeptos no país em 2030, superando o catolicismo. É um aumento que se reflete em outros setores da sociedade, como a política. A bancada evangélica no Congresso Nacional tem 203 deputados (dos 513) e 26 senadores (dos 81). É um grupo que atua em defesa de algumas pautas, como a mudança na lei do aborto e a reversão de direitos hoje concedidos a casais homoafetivos, em consonância com o que pensa parte dos fiéis.
Esse avanço social e político preocupa Hermes. “O que estou assistindo é uma onda de adesão, não de conversão. Virou moda ser evangélico. E onde é que isso vai nos levar? A um modelo de igreja que se vê no direito de impor seus valores ao conjunto da sociedade. Pode ser o prenúncio de um talibã evangélico. Não quero viver em uma teocracia. Não acredito em teocracias de qualquer natureza.”
Enquanto pastores à direita ganham cada vez mais espaço no Congresso, evangélicos progressistas tentam criar uma composição capaz de barrar retrocessos. O maior expoente é Henrique Vieira (Psol-RJ), pastor batista que defende o aumento de impostos sobre armas de fogo, a descriminalização do porte de maconha para uso e é crítico da bancada evangélica.
A mistura da igreja com a política foi o estopim para que Weverton Cruz deixasse a carreira de pastor neopentecostal. Aos 41 anos, o agora corretor de imóveis conta que chegou a ganhar a alcunha de “bispo esquerdista” na Igreja Mundial liderada pelo apóstolo Valdemiro Santiago. Ele se tornou evangélico na adolescência, em São Paulo, e foi pastor por mais de dez anos. Mesmo com tal envolvimento, nunca aceitou o fato de ter uma vida cerceada pela religião. “É uma doutrinação em que tudo é pecado. Não podíamos ler outros livros ou ouvir outros pastores.”
O descontentamento se acentuou nas duas últimas eleições presidenciais. Em setembro de 2018, após Jair Bolsonaro levar uma facada durante um ato público em Minas Gerais, Weverton comentou à piauí que os pastores da Igreja Mundial foram reunidos para assistir a um vídeo gravado por Valdemiro Santiago dizendo que iria apoiar Bolsonaro – indicando, com isso, que seus subordinados deveriam fazer o mesmo. Procurado pela piauí, Valdemiro não respondeu até a publicação da reportagem.
O rompimento definitivo da carreira pastoral ocorreu no ano passado, após o pleito de 2022 e a polarização entre Lula e Bolsonaro. “Foi um inferno”, resume Cruz, que votou no petista. Incomodado, ele procurou apoiar-se em pastores que, assim como ele, estavam descontentes com a aproximação da fé com a política diante do púlpito, como Zé Bruno (ex-pastor da Igreja Renascer em Cristo, hoje na igreja A Casa da Rocha) e Ed René. “Ouvi o Zé Bruno dizer que eles querem dinheiro e poder político. E eu comecei a entender que aquilo não era sobre o Evangelho.”
Na prática, a liderança disruptiva de pastores evangélicos têm proporcionado novas formas de praticar a fé. É o caso de Lucas Sacramento, de 27 anos. “Estar vivo hoje, de pé, crendo, é um milagre”, disse ele à piauí. A ponderação é de um evangélico que precisou se reencontrar com a fé ao longo do caminho. Desde a adolescência já se entendia como gay e cristão, mas a junção da religiosidade com a identidade nunca foi algo bem resolvido. Atualmente, ele é membro da Igreja Batista de Água Branca, de Kivitz. Canta no coro da congregação e participa de outros ministérios. Mas, antes disso, passou quase toda a vida em Alagoinhas, na Bahia, frequentando a igreja pentecostal Deus é Amor.
Aos 12 anos, já dirigia círculos de oração, pregando e cantando. Até decidir deixar a igreja, incomodado com o conservadorismo dos usos e costumes. Os namoros só são “permitidos” a partir de 16 anos e entre pessoas do mesmo credo (relacionamentos com “incrédulos” não são aceitos), homens só poder ter cabelos curtos e mulheres compridos. Lucas, por exemplo, ostenta uma cabeleira na altura dos ombros.
No início da pandemia, Lucas transferiu-se para a Igreja Batista da Lagoinha, em busca de renovação, mas também encontrou preconceito e intolerância, “apesar de ser uma igreja moderna”. A virada de chave veio em 2023, quando mudou-se para São Paulo em busca de novas oportunidades profissionais e descobriu os cultos de Kivitz. “Eu gostei, mas tinha decidido que não queria fazer parte de nada”. Não conseguiu. Foi arrebatado após ouvir uma pregação e retomou o ministério na área musical. “Foi um processo de cura ao me desvincular do que eu vivi durante muito tempo, foi muito difícil. Amigos meus pararam de falar comigo depois que virei as costas para esse mundo [fundamentalista]”.
Ele conta que a decisão de colaborar de maneira mais participativa na igreja de Kivitz veio depois de se sentir acolhido por um dos seus sermões. “Hoje quando eu paro e vejo o Ed falando sobre vários assuntos que na maioria das igrejas não se fala, vejo uma esperança, por mais que seja a longo prazo. Vejo potencial para trazer as pessoas para o que de fato é Cristo.“
Em meados de junho, a piauí acompanhou o culto de Ed René na Igreja Batista de Água Branca. Cerca de 1800 pessoas aguardavam o fim da pregação que falou sobre aborto e acolhimento a pessoas LGBTQIA para cumprimentar o pastor. Em meio a enorme fila de fiéis, lágrimas e olhos marejados, “os outros evangélicos” correram para agradecer o discurso do herege.
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