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    Coutinho e Jordana Berg durante a montagem de

questões cinematográficas

Ele e eu

Hoje, 11 de maio, dia em que este texto está sendo publicado, seria aniversário do Coutinho. Ele faria 82 anos. Não receberia parabéns pelo facebook, porque não tinha. Não receberia telefonemas e mensagens pelo celular, porque seu aparelho nunca estava carregado, ou nunca funcionava, ou ele não conseguia atender a tempo.

Ele estaria sentado em algum café da cidade onde pudesse fumar. Eu passaria lá à tarde e conversaríamos até à noitinha. Seríamos interrompidos por vários conhecidos ou admiradores que puxariam um assunto qualquer só para ouvi-lo discorrer sobre qualquer coisa, numa voz rouca e descompromissada.

| 11 maio 2015_12h05
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Um dia na vida. Fevereiro, 2011. Foto: Barbara Vida.

por JORDANA BERG

Hoje, 11 de maio, dia em que este texto está sendo publicado, seria aniversário do Coutinho. Ele faria 82 anos. Não receberia parabéns pelo facebook, porque não tinha. Não receberia telefonemas e mensagens pelo celular, porque seu aparelho nunca estava carregado, ou nunca funcionava, ou ele não conseguia atender a tempo.

Ele estaria sentado em algum café da cidade onde pudesse fumar. Eu passaria lá à tarde e conversaríamos até à noitinha. Seríamos interrompidos por vários conhecidos ou admiradores que puxariam um assunto qualquer só para ouvi-lo discorrer sobre qualquer coisa, numa voz rouca e descompromissada. 

Eu daria um abraço bem apertado e ele ficaria desconcertado como sempre. Em seguida combinaríamos algo em relação a alguma montagem que estivesse acontecendo no momento, eu iria embora e ele iria pra casa dele. Mas ele não está aqui e por isso deixo esse texto em sua homenagem.

Montei os últimos 12 filmes do Eduardo Coutinho. Pelas minhas contas, foram aproximadamente 150 semanas sentados em ilhas de edição. Houve muitos embates nessas montagens. Disputamos planos, personagens, takes, cenas inteiras, falas, frames. Ele me fazia muitas perguntas, de todo tipo, sobre tudo, o tempo todo. Era uma curiosidade infinita que muitas vezes me fazia sentir como uma personagem que escapou de um de seus filmes. 

Nessa trajetória, eu o acompanhei à medida em que ele foi depurando seu modo de fazer cinema. Por depurar, neste texto, leia-se também eliminar recursos. Coutinho foi abrindo mão dos planos de corte, da trilha musical, dos raccords, dos belos movimentos de câmera, da beleza explícita, da maquiagem, do figurino…

Em O fim e o princípio abriu mão da pesquisa e do roteiro. A partir de Jogo de cena, dispensou elementos cenográficos. A cada filme, outro recurso cinematográfico era suprimido. Em Moscou, Coutinho abriu mão da própria direção de atores, atribuindo esse papel a um diretor de teatro. Acabou dispensando a segunda câmera, deixando assim de incluir a presença da equipe (e a sua própria) em quadro. Ou seja, também se desfez da metalinguagem. E eu me perguntava como, cada vez com menos, os filmes iam acumulando potência cada vez maior. De onde viria tanta pujança não havendo mais quase nada?

Ainda hoje, eu me pergunto em que momento Coutinho dispensaria também a própria montagem, já que se dizia desgostoso pelo fato de um filme nunca fazer jus ao seu material bruto?…

No seu último filme, ele abriu mão também da memória de seus personagens, pilar de seus encontros e, por ironia do destino, Últimas conversas nasce sem sua presença.

Neste momento sobrei eu, com todas as supressões, com a exiguidade, eu que pedia excessos ridículos que ele de vez em quando concedia. Outras vezes, não. Eu e todos os adolescentes à beira do abismo da vida. Eu e João, seu parceiro quase irmão.

O que não poderia ser suprimido porém, nem mesmo evitado, seria esse frisson de encontrar o outro e conhecê-lo, de se agarrar em verdades verdadeiras ou falsas, não importava, pra se sentir fazendo parte da vida e se alimentar. A cada novo filme, o que se via não era mais do mesmo. Era menos do mesmo. E assim, nesse rumo, ia testando o que sobraria de seus encontros, buscando a memória inventada por todas as memórias. As minhas inclusive. Como disse Luiza, a menina de 6 anos, última personagem de seu último filme: Deus é um homem que morreu.

 

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