Ele e eu – Dziga Vertov em apuros
Biografia de cineasta russo lembra relação estreita entre arte e resistência
Publicado há um ano nos Estados Unidos, Dziga Vertov Life and Work (Volume 1: 1896-1921), de John MacKay, surgiu trazendo merecidos elogios na quarta capa dos professores Yuri Tsivian e Philip Rosen, da Universidade de Chicago e da Universidade Brown, respectivamente. Para Tsivian, “raramente se vê um estudo tão densamente carregado de tantos fatos desconhecidos sobre alguém tão conhecido (ou assim pensávamos) quanto Dziga Vertov”; Rosen, por sua vez, considera que “este volume (o primeiro de três sobre a vida de Dziga Vertov) é uma conquista extraordinária. MacKay combina pesquisa detalhada de arquivos e análise contextual sem precedentes com síntese e perspectiva histórica; sofisticação teórica nos níveis mais elevados com análise crítica minuciosa; conhecimento abrangente com generosidade intelectual”.
E há ainda o comentário de Stuart Liebman, professor de história e teoria do cinema: “O que tem faltado é uma biografia bem pesquisada e em grande escala que sirva de base para uma avaliação abrangente da carreira de Vertov. John MacKay, um dos estudiosos contemporâneos mais sofisticados do cinema russo, comprova ser o pesquisador ideal para um projeto tão ambicioso […] não me lembro de nada comparável no campo dos estudos de cinema. Se as outras duas partes da trilogia de MacKay igualarem o padrão intelectual que ele estabeleceu neste primeiro livro, apenas algumas das grandes biografias literárias de múltiplos volumes, como Dostoiévski de Joseph Frank ou, mais recentemente, o louvado relato da vida de Franz Kafka de Reiner Stach poderão, possivelmente, ser tidas como seus pares.”
Apesar de tamanhas louvações, o extraordinário feito intelectual de MacKay, ele mesmo professor de cinema e mídia, além de catedrático em línguas e literaturas eslavas da Universidade Yale, ainda não teve a sua importância reconhecida na justa medida fora do âmbito restrito de especialistas, nem recebeu até o momento, entre nós, a atenção devida.
Conforme Liebman indica, Dziga Vertov Life and Work (1896-1921) é o primeiro volume, dos três previstos, da biografia e do estudo da filmografia de David Abelevich Kaufman (Bialystok, 1896 – Moscou, 1954) que adotou o pseudônimo Dziga Vertov em 1918 e dirigiu, além de filmes menos conhecidos, o famoso O Homem com a Câmera de Filmar, lançado em 1929.
Na enquete decenal da revista Sight and Sound publicada desde 1952, na relação dos cinquenta maiores filmes de todos os tempos de 2012, O Homem com a Câmera de Filmar foi o oitavo colocado, sendo o primeiro documentário em sessenta anos a ser incluído entre os dez primeiros títulos.
Dziga Vertov, nome adotado de inspiração futurista, teria origem na sonoridade de “Dziga”, semelhante supostamente à do filme ao passar pela janela da câmera durante a filmagem, sendo igualmente o termo ucraniano equivalente a cigano, designando além disso um pião; “Vertov”, por sua vez, deriva do verbo russo “girar”.
A publicação do segundo volume de Dziga Vertov Life and Work está marcada para 2020, e o terceiro ainda não tem data de publicação confirmada, informa a editora Academic Studies, de Boston. Infelizmente, imaginar que o livro de MacKay possa vir a ser publicado algum dia no Brasil talvez seja querer demais.
O primeiro volume de Dziga Vertov Life and Work traz um texto pouco conhecido de Vertov, “Ele e Eu”, publicado em 1922, traduzido até agora apenas para alemão, em 1967. Cineasta iniciante, com 26 anos na época da publicação, o autor demonstra já estar cindido, vivendo o drama com o qual iria conviver até o final da vida, em 1954. Vertov lidara desde cedo com a burocracia cinematográfica da União Soviética e, mesmo tendo feito filmes laudatórios ao regime e a seus dois principais líderes – Lênin e Stálin –, foi relegado ao ostracismo a partir do final da década de 1930.
A partir de 1935, segundo MacKay, Vertov se referiu frequentemente a si mesmo na terceira pessoa e disse “a pelo menos um interlocutor com um toque de humor quase imperceptível, provavelmente por volta de 1953, que Dziga Vertov estava morto”.
Nas palavras de MacKay, “Vertov descreveu, com rara franqueza pública, suas frustrações com o trabalho na Divisão de Foto-Filmes da Rússia (onde ele já estava trabalhando na série Kino-Pravda [Filme-Verdade]) através das observações de um alter ego (Eu) olhando para outro (Ele)”:
Todo dia ele aparece no trabalho… pretendendo passar o dia em incessante trabalho rítmico.
Eu vejo, lamentavelmente, como sua persistência parece a de uma marreta balançando no ar, sem perceber que a bigorna foi levada embora.
A engrenagem está girando… Mas por que deveria, se não pode se conectar com outras engrenagens, se não pode girar as rodas da máquina?
[…]
…Ele falou comigo sobre suas condições de trabalho impossíveis. Sem transporte. Sem dinheiro.
[…]
No que diz respeito à filmagem de [tópicos] políticos, a situação é absurda. Eles [ou seja, as autoridades] exigem e proíbem ao mesmo tempo. O que significa: você precisa filmar [eventos políticos], mas nos oporemos às filmagens com toda nossa força. Você posicionará suas luzes, nós as retiraremos imediatamente, você nos alcançará nos corredores e nas ruas, e nós faremos sinal com nossas mãos para você de afastar e viraremos as costas para a câmera. Maçante incompreensão da importância do cinema sobre temas políticos.
[…]
Todos os dias ele volta para casa cansado e de mau humor, enojado com os resultados de seu trabalho – porém, no dia seguinte, de alguma forma reconfortado, ele vai girar sua hélice sem objetivo no espaço vazio.
“Ar! Ar!”
Ele me inveja, é claro, enquanto eu vou de fábrica em fábrica com física e geometria em minhas mãos, indiferente ao destino do Kino-Pravda e da Divisão de Foto-Filmes de toda a Rússia. Ele me inveja, respirando pesadamente ao lado de uma locomotiva, entusiasta de correias de transmissão, pressionando um amperímetro tremelicante no meu coração.
Eu me dividi em dois.
Era a única solução. Ele queria trabalhar de qualquer maneira. Mal, absurdamente, mas, mesmo assim, trabalhar. Ele não podia trabalhar sozinho, com suas próprias sensações e cálculos, como eu.
Fiquei sozinho com minhas sensações do movimento mundial, com olhos que servem de câmera e filme, fixando na retina apenas os movimentos de que preciso.
Fiquei sozinho com lápis e papel, com minhas tentativas de anotar os estudos para filmes crescendo nas convoluções do meu cérebro, sozinho, inebriado pelas minhas buscas e cambalhotas para penetrar nas almas das máquinas.
(Tradução de Eduardo Escorel a partir do inglês)
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Vertov não teve o privilégio de fazer do conjunto de seus filmes atos de resistência. A exceção é O Homem com a Câmera de Filmar, cuja importância só começou a ser reconhecida fora da União Soviética a partir da década de 1950.
No Brasil, sem causar maior alvoroço, O Homem com a Câmera de Filmar, assim como A Sexta Parte do Mundo (1926), também de Vertov, foi exibido (pela primeira vez?), na mostra História do Cinema Russo e Soviético, promovida pela Cinemateca Brasileira no quadro da VI Bienal de São Paulo, em 1961, e no ano seguinte no Rio de Janeiro, que contou com a colaboração da Gosfilmofond (Cinemateca da União Soviética) e do Departamento Cultural do Ministério das Relações Exteriores do Brasil.
A arte “é a única coisa que resiste à morte” – a conhecida citação de André Malraux foi repetida por Gilles Deleuze na conferência Qu’est-ce que L’Acte de Création? (O que é o ato de criação?), feita na École nationale supérieure des métiers de l’image et du son (La Fémis), em maio de 1987. Para atestar a validade da formulação de Malraux, Deleuze dá como exemplo “uma estatueta de três mil anos antes da nossa era”. “A arte é que resiste”, ele diz. “Talvez não seja a única coisa que resiste, mas é o que resiste. Donde a relação estreita entre o ato de resistência e a obra de arte. […] Só o ato de resistência resiste à morte, quer seja sob a forma de uma obra de arte, seja sob a forma de uma luta dos homens.”
Falando para estudantes de cinema, Deleuze poderia ter mencionado O Homem com a Câmera de Filmar, obra de arte e ato de resistência que está aí, viva, despertando interesse, desafiando nossa capacidade de compreensão, 28 anos depois da União Soviética ter sido dissolvida. E não nos deixando esquecer, a nós, cineastas brasileiras e brasileiros, a relação estreita que há entre arte e resistência.
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Nota: A conferência de Gilles Deleuze está disponível, gravada, no YouTube em (https://www.youtube.com/watch?v=2OyuMJMrCRw) e transcrita em Le Peuple Qui Manque (http://www.lepeuplequimanque.org/acte-de-creation-gilles-deleuze.html), nos dois casos em francês. Em português, está disponível em “O Ato de Criação”, Gilles Deleuze, edição brasileira: Folha de São Paulo, 27/06/1999, tradução: José Marcos Macedo.
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