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Ele e eu – Dziga Vertov em apuros

Biografia de cineasta russo lembra relação estreita entre arte e resistência

Eduardo Escorel | 11 dez 2019_11h50
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Publicado há um ano nos Estados Unidos, Dziga Vertov Life and Work (Volume 1: 1896-1921), de John MacKay, surgiu trazendo merecidos elogios na quarta capa dos professores Yuri Tsivian e Philip Rosen, da Universidade de Chicago e da Universidade Brown, respectivamente. Para Tsivian, “raramente se vê um estudo tão densamente carregado de tantos fatos desconhecidos sobre alguém tão conhecido (ou assim pensávamos) quanto Dziga Vertov”; Rosen, por sua vez, considera que “este volume (o primeiro de três sobre a vida de Dziga Vertov) é uma conquista extraordinária. MacKay combina pesquisa detalhada de arquivos e análise contextual sem precedentes com síntese e perspectiva histórica; sofisticação teórica nos níveis mais elevados com análise crítica minuciosa; conhecimento abrangente com generosidade intelectual”.

E há ainda o comentário de Stuart Liebman, professor de história e teoria do cinema: “O que tem faltado é uma biografia bem pesquisada e em grande escala que sirva de base para uma avaliação abrangente da carreira de Vertov. John MacKay, um dos estudiosos contemporâneos mais sofisticados do cinema russo, comprova ser o pesquisador ideal para um projeto tão ambicioso […] não me lembro de nada comparável no campo dos estudos de cinema. Se as outras duas partes da trilogia de MacKay igualarem o padrão intelectual que ele estabeleceu neste primeiro livro, apenas algumas das grandes biografias literárias de múltiplos volumes, como Dostoiévski de Joseph Frank ou, mais recentemente, o louvado relato da vida de Franz Kafka de Reiner Stach poderão, possivelmente, ser tidas como seus pares.”

Apesar de tamanhas louvações, o extraordinário feito intelectual de MacKay, ele mesmo professor de cinema e mídia, além de catedrático em línguas e literaturas eslavas da Universidade Yale, ainda não teve a sua importância reconhecida na justa medida fora do âmbito restrito de especialistas, nem recebeu até o momento, entre nós, a atenção devida.

Conforme Liebman indica, Dziga Vertov Life and Work (1896-1921) é o primeiro volume, dos três previstos, da biografia e do estudo da filmografia de David Abelevich Kaufman (Bialystok, 1896 – Moscou, 1954) que adotou o pseudônimo Dziga Vertov em 1918 e dirigiu, além de filmes menos conhecidos, o famoso O Homem com a Câmera de Filmar, lançado em 1929.

Na enquete decenal da revista Sight and Sound publicada desde 1952, na relação dos cinquenta maiores filmes de todos os tempos de 2012, O Homem com a Câmera de Filmar foi o oitavo colocado, sendo o primeiro documentário em sessenta anos a ser incluído entre os dez primeiros títulos.

Dziga Vertov, nome adotado de inspiração futurista, teria origem na sonoridade de “Dziga”, semelhante supostamente à do filme ao passar pela janela da câmera durante a filmagem, sendo igualmente o termo ucraniano equivalente a cigano, designando além disso um pião; “Vertov”, por sua vez, deriva do verbo russo “girar”.

A publicação do segundo volume de Dziga Vertov Life and Work está marcada para 2020, e o terceiro ainda não tem data de publicação confirmada, informa a editora Academic Studies, de Boston. Infelizmente, imaginar que o livro de MacKay possa vir a ser publicado algum dia no Brasil talvez seja querer demais.

O primeiro volume de Dziga Vertov Life and Work traz um texto pouco conhecido de Vertov, “Ele e Eu”, publicado em 1922, traduzido até agora apenas para alemão, em 1967. Cineasta iniciante, com 26 anos na época da publicação, o autor demonstra já estar cindido, vivendo o drama com o qual iria conviver até o final da vida, em 1954. Vertov lidara desde cedo com a burocracia cinematográfica da União Soviética e, mesmo tendo feito filmes laudatórios ao regime e a seus dois principais líderes – Lênin e Stálin –, foi relegado ao ostracismo a partir do final da década de 1930.

A partir de 1935, segundo MacKay, Vertov se referiu frequentemente a si mesmo na terceira pessoa e disse “a pelo menos um interlocutor com um toque de humor quase imperceptível, provavelmente por volta de 1953, que Dziga Vertov estava morto”.

DZIGA VERTOV. CRÉDITO: REPRODUÇÃO

 

Nas palavras de MacKay, “Vertov descreveu, com rara franqueza pública, suas frustrações com o trabalho na Divisão de Foto-Filmes da Rússia (onde ele já estava trabalhando na série Kino-Pravda [Filme-Verdade]) através das observações de um alter ego (Eu) olhando para outro (Ele)”:

Todo dia ele aparece no trabalho… pretendendo passar o dia em incessante trabalho rítmico.

Eu vejo, lamentavelmente, como sua persistência parece a de uma marreta balançando no ar, sem perceber que a bigorna foi levada embora.

A engrenagem está girando… Mas por que deveria, se não pode se conectar com outras engrenagens, se não pode girar as rodas da máquina?

[…]

…Ele falou comigo sobre suas condições de trabalho impossíveis. Sem transporte. Sem dinheiro.

[…]

No que diz respeito à filmagem de [tópicos] políticos, a situação é absurda. Eles [ou seja, as autoridades] exigem e proíbem ao mesmo tempo. O que significa: você precisa filmar [eventos políticos], mas nos oporemos às filmagens com toda nossa força. Você posicionará suas luzes, nós as retiraremos imediatamente, você nos alcançará nos corredores e nas ruas, e nós faremos sinal com nossas mãos para você de afastar e viraremos as costas para a câmera. Maçante incompreensão da importância do cinema sobre temas políticos.

[…]

Todos os dias ele volta para casa cansado e de mau humor, enojado com os resultados de seu trabalho – porém, no dia seguinte, de alguma forma reconfortado, ele vai girar sua hélice sem objetivo no espaço vazio.

“Ar! Ar!”

Ele me inveja, é claro, enquanto eu vou de fábrica em fábrica com física e geometria em minhas mãos, indiferente ao destino do Kino-Pravda e da Divisão de Foto-Filmes de toda a Rússia. Ele me inveja, respirando pesadamente ao lado de uma locomotiva, entusiasta de correias de transmissão, pressionando um amperímetro tremelicante no meu coração.

Eu me dividi em dois.

Era a única solução. Ele queria trabalhar de qualquer maneira. Mal, absurdamente, mas, mesmo assim, trabalhar. Ele não podia trabalhar sozinho, com suas próprias sensações e cálculos, como eu.

Fiquei sozinho com minhas sensações do movimento mundial, com olhos que servem de câmera e filme, fixando na retina apenas os movimentos de que preciso.

Fiquei sozinho com lápis e papel, com minhas tentativas de anotar os estudos para filmes crescendo nas convoluções do meu cérebro, sozinho, inebriado pelas minhas buscas e cambalhotas para penetrar nas almas das máquinas.

(Tradução de Eduardo Escorel a partir do inglês)

*

Vertov não teve o privilégio de fazer do conjunto de seus filmes atos de resistência. A exceção é O Homem com a Câmera de Filmar, cuja importância só começou a ser reconhecida fora da União Soviética a partir da década de 1950.

No Brasil, sem causar maior alvoroço, O Homem com a Câmera de Filmar, assim como A Sexta Parte do Mundo (1926), também de Vertov, foi exibido (pela primeira vez?), na mostra História do Cinema Russo e Soviético, promovida pela Cinemateca Brasileira no quadro da VI Bienal de São Paulo, em 1961, e no ano seguinte no Rio de Janeiro, que contou com a colaboração da Gosfilmofond (Cinemateca da União Soviética) e do Departamento Cultural do Ministério das Relações Exteriores do Brasil.

A arte “é a única coisa que resiste à morte” – a conhecida citação de André Malraux foi repetida por Gilles Deleuze na conferência Qu’est-ce que L’Acte de Création? (O que é o ato de criação?), feita na École nationale supérieure des métiers de l’image et du son (La Fémis), em maio de 1987. Para atestar a validade da formulação de Malraux, Deleuze dá como exemplo “uma estatueta de três mil anos antes da nossa era”. “A arte é que resiste”, ele diz. “Talvez não seja a única coisa que resiste, mas é o que resiste. Donde a relação estreita entre o ato de resistência e a obra de arte. […] Só o ato de resistência resiste à morte, quer seja sob a forma de uma obra de arte, seja sob a forma de uma luta dos homens.”

Falando para estudantes de cinema, Deleuze poderia ter mencionado O Homem com a Câmera de Filmar, obra de arte e ato de resistência que está aí, viva, despertando interesse, desafiando nossa capacidade de compreensão, 28 anos depois da União Soviética ter sido dissolvida. E não nos deixando esquecer, a nós, cineastas brasileiras e brasileiros, a relação estreita que há entre arte e resistência.

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Nota: A conferência de Gilles Deleuze está disponível, gravada, no YouTube em (https://www.youtube.com/watch?v=2OyuMJMrCRw) e transcrita em Le Peuple Qui Manque (http://www.lepeuplequimanque.org/acte-de-creation-gilles-deleuze.html), nos dois casos em francês. Em português, está disponível em O Ato de Criação”, Gilles Deleuze, edição brasileira: Folha de São Paulo, 27/06/1999, tradução: José Marcos Macedo.

 

 

 

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