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    Florestava devastada na Serra do Amolar, em Corumbá. Em setembro, o Índice de Qualidade do Ar (IQA) chegou a 500 em na cidade, numa escala que vai de zero a 500 – quanto maior o número, maior a presença de partículas nocivas Foto: Lalo de Almeida/Folhapress

questões eleitorais

Fumaça por toda parte – menos na eleição de Corumbá

Na corrida para a prefeitura da cidade que mais queima no Brasil, candidatos ignoram o assunto

Lara Machado, de Corumbá (MS) | 06 out 2024_14h26
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Nos dias de calor mais intenso, o Centro de Corumbá para. Foi o que aconteceu na tarde de 1º de outubro, uma terça-feira. Com o termômetro nas alturas e quase nenhuma umidade, os 99 mil habitantes da cidade procuravam abrigo nas sombras. Quem pôde, não saiu de casa. Os comerciantes se apinhavam embaixo de ventiladores. O silêncio nas ruas do município mais extenso de Mato Grosso do Sul só era cortado pelos carros muitos deles adesivados com o rosto de candidatos a prefeito e vereador.

Desde o início da campanha, a agenda dos corumbaenses se adequou ao Sol. Carreatas, reuniões e comícios são agendados para o fim da tarde, quando o calor dá uma leve trégua. A eleição não empolga. Não se vê santinhos voando pelas ruas, nem adesivos colados nas paredes. Máscaras cirúrgicas esquecidas no meio-fio e em pontos de ônibus, no entanto, simbolizam o que é a principal pauta da campanha deste ano: a Saúde.

Corumbá vive um pico de atendimentos hospitalares por problemas respiratórios. O sistema de saúde está superlotado e há cerca de dois meses faltam xaropes, insumos para lavagem nasal, nebulizadores e umidificadores. Nenhuma outra cidade do país queimou tanto entre janeiro e agosto de 2024. O fogo se alastrou por 616.980 hectares, segundo um levantamento feito pelo MapBiomas, iniciativa de ONGs, centros de pesquisa e empresas que mapeia a cobertura vegetal brasileira. Desde junho, quando começou, prematuro, o período de estiagem, Corumbá foi tomada diversas vezes por uma fumaça que deixou o Sol avermelhado, o ar turvo e a paisagem em tom sépia.

Alguns moradores lidam com naturalidade. “Nada mudou: sempre foi assim, mas nunca esteve tão ruim”, diz Gerson Nunes, farmacêutico de 67 anos. Enquanto conversava com a piauí, ele apontava os estoques vazios da farmácia onde trabalha, no Centro da cidade. Segundo ele, a oferta de umidificadores está muito aquém da demanda. “Nem o distribuidor dá conta.” Na visão de Nunes, a fumaça pode ser um agravante, mas o que realmente adoece os corumbaenses é o baixo consumo de vitaminas. “Eu mesmo tenho rinite, mas a fumaça não me pega. Tomo toda vitamina que aparecer na minha frente.” 

Não há vitamina que proteja contra os poluentes. Em setembro, o Índice de Qualidade do Ar (IQA) chegou a 500 em Corumbá, numa escala que vai de zero a 500 quanto maior o número, maior a presença de partículas nocivas. Um IQA até 50 é seguro; leituras acima de 100 são consideradas insalubres. No auge da crise, aulas foram suspensas em 35 escolas municipais, afetando cerca de 14 mil alunos. O aeroporto da cidade, envolto em fumaça, foi fechado por alguns dias. Funcionários de mineradoras relataram à piauí que a extração e o transporte de minérios também foram afetados por causa da baixa visibilidade. A rodovia BR-262 foi interditada, nos piores momentos.

Corumbá é maior que a Suíça. Fica localizada no extremo Oeste de Mato Grosso do Sul, na fronteira com a Bolívia. Em 2008, foi reconhecida como Capital do Pantanal por abranger 37% da área do bioma no Brasil. Como tem o solo claro, resultado da presença massiva do calcário, foi apelidada de “cidade branca”, mas nos últimos anos só apareceu no noticiário nacional entre cinzas. Causou espanto, em julho, um vídeo gravado durante os festejos de São João. Enquanto a festa transcorria, era possível ver uma muralha de fogo cercando o município. As chamas só não avançaram mais porque foram contidas pelo Rio Paraguai que, atualmente, enfrenta sua pior seca em setenta anos.

No Asilo São José, o aposentado Adélio Rodrigues, de 65 anos, diz não se incomodar. “Pra mim, não atrapalha. Sou pantaneiro, criado em fazenda tacando fogo no campo sem nada no nariz. Isso nunca me estragou em nada.” Seis de seus companheiros no asilo ficaram acamados com gripe. Rodrigues, além de se não se importar com as cinzas no ar, traga um cigarro atrás do outro. Questionado sobre a eleição para a prefeitura, no domingo, reage com indiferença. “Vou lá e escolho o candidato na hora mesmo.”

Adélio Rodrigues, morador de Corumbá (Foto: Lara Machado)

 

A fumaça, onipresente na vida de Corumbá, foi quase um não assunto da campanha eleitoral. Os quatro candidatos a prefeito tiveram outras preocupações. Nas redes sociais, Luiz Antônio Pardal (PP), apoiado pelo atual mandatário, Marcelo Iunes (PSDB), prometeu melhorar a segurança pública e a condição das calçadas. Delcídio do Amaral (PRD), ex-senador que dinamitou o governo Dilma durante a Lava Jato, falou em geração de empregos e reformas hospitalares. Gabriel Alves de Oliveira (PSB), um ginecologista conhecido na cidade, se comprometeu a reativar um “castramóvel” para promover a castração gratuita de animais. André Campos (PL), candidato do bolsonarismo, prometeu valorizar os professores e destinar mais dinheiro para a Saúde.

Os quatro fizeram postagens diárias no Instagram. Queimadas, porém, foram um assunto raro. Campos fez 91 publicações desde que se apresentou como pré-candidato a prefeito; somente uma delas cita o Pantanal, em uma homenagem ao Dia Nacional do Bombeiro. Delcídio acumulou 171 postagens no mesmo período; só duas tratam dos incêndios. Oliveira publicou 223 vezes desde que se anunciou pré-candidato; Pardal, 159 vezes. Ambos, assim como Delcídio, só mencionaram as queimadas em duas ocasiões.

Os planos de governo que os candidatos registraram no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mencionam, protocolarmente, o Pantanal e a importância da preservação ambiental. Pardal, o candidato da situação, prometeu “fortalecer as ações de prevenção dos incêndios florestais” e realizar “estudos sobre mitigação dos efeitos climáticos, gestão de risco e prevenção a desastres naturais”. Delcídio se contentou em mencionar, en passant, seus “compromissos de sustentabilidade ambiental”. Oliveira chamado de dr. Gabriel incluiu entre suas metas zerar as emissões de carbono em Corumbá. 

A proposta mais detalhada foi a do candidato bolsonarista: Campos propôs treinar mais brigadistas voluntários, reforçar a estrutura do Corpo de Bombeiros e criar aceiros, faixas de terra sem vegetação que servem para conter o avanço do fogo. Foi o único programa de governo, dos quatro, a mencionar a palavra “queimadas”. Menção a “incêndios” não se viu. “Fogo” só aparece no plano de Pardal, mas por uma razão diferente: ele propôs ampliar o acesso dos guardas municipais a armas de fogo.

 

Corumbá registrou, em novembro de 2023, uma máxima histórica de 43,3ºC. Aquele foi o ano mais quente da história mundial desde que os registros começaram a ser feitos, em 1850. O aquecimento do planeta está acarretando estiagens mais longas, o que, em biomas como o Pantanal, facilita a ocorrência de queimadas espontâneas e o alastramento de incêndios criminosos. A devastação das matas, por sua vez, contribui para o aquecimento do planeta e para estiagens mais intensas, num ciclo danoso.

A crise climática é uma velha novidade alardeada há anos. Nos últimos meses, tornou-se uma realidade evidente até para os mais céticos. Fumaça e calor se espalharam pelo país, transbordando os limites da Amazônia; rios caudalosos se transformaram em desertos. O agravamento da crise, contudo, não parece ter se refletido nos debates políticos. O meio ambiente, crucial para todas as áreas da vida humana, ainda vive à margem das discussões nacionais. Corumbá, no olho do furacão, é exemplo disso.

As três instâncias do Poder Executivo – presidente, governador e prefeito – têm responsabilidade prática na contenção às queimadas. Ibama e ICMBio, vinculados à União, fiscalizam áreas de conservação federais e prestam apoio aos bombeiros militares dos estados. Cabe aos municípios, por sua vez, treinar guardas municipais a combater e prevenir incêndios, além de formar brigadas voluntárias. Quando a prevenção falha, as prefeituras devem ser capazes de evacuar determinadas áreas e dirimir os efeitos das queimadas sobre a população, tornando as cidades mais resistentes ao novo tempo.

Os candidatos a prefeito Corumbá vivem, assim como os demais habitantes, sob um Sol escaldante. As propostas para amenizar o calor na cidade, porém, ainda são tímidas. Pardal (PP) defendeu a arborização urbana. Delcídio (PRD) e Campos (PL) falaram em construir abrigos nos pontos de ônibus. Dr. Gabriel (PSDB) não tocou no assunto.

Pardal conversou com a piauí na terça-feira, logo depois de participar de um comício ao lado da senadora Tereza Cristina (PP). Ex-ministra da Agricultura de Jair Bolsonaro, ela garantiu no palanque que Pardal, se eleito, vai lutar “contra esse absurdo que estão fazendo com os nossos pantaneiros”. O “absurdo” mencionado pela senadora é a Lei do Pantanal, sancionada pelo governador Eduardo Riedel (PSDB) em dezembro do ano passado. A lei limita a expansão de lavouras de soja, cana-de-açúcar, eucalipto e outras culturas exóticas e impede a instalação de novas hidrelétricas e carvoarias no estado.

Pardal disse que Tereza Cristina, apesar de seus vínculos com o agronegócio, será fundamental para aprimorar as políticas ambientais de Corumbá. “Ela vai nos ajudar, principalmente com os deputados federais do nosso estado, pra que a gente possa fazer uma brigada permanente aqui.” O candidato falou também da importância de promover a educação ambiental nas escolas, para que as crianças “puxem a orelha dos pais”.

Dr. Gabriel, por sua vez, enviou uma nota à piauí ressaltando que o meio ambiente faz parte de sua agenda, e que defende o fortalecimento da base do Ibama em Corumbá. “Aqueles que duvidavam das mudanças climáticas agora estão sentindo os seus impactos na própria pele.” Os outros candidatos não quiseram falar com a reportagem.

 

O Ibama inaugurou em junho uma base operacional em Corumbá. Ela é vinculada ao Prevfogo, um sistema nacional criado em 1989 para coordenar ações contra incêndios florestais. Cerca de trezentas pessoas de oito estados diferentes passaram pela base desde a inauguração. Um deles, Charles Pereira, chegou há três meses. Diz ser grato pela acolhida que os brigadistas tiveram na cidade. Hoje, a equipe fixa do Prevfogo em Corumbá é formada por aproximadamente 120 funcionários, que têm à sua disposição catorze carros, três helicópteros, quatro embarcações, dois caminhões e sete quadriciclos – todos equipados com uma reserva de água para debelar as chamas.

A operação foi montada depois que o Pantanal registrou recorde de incêndios em junho: foram 2571 focos, o maior número para esse mês desde que o Inpe iniciou o monitoramento, em 1998. Contribuiu para isso a estiagem precoce, iniciada em junho, quando normalmente só começa em agosto. A quantidade de chuva, que caiu muito abaixo da média entre novembro de 2023 e março de 2024, deixou a vegetação seca e inflamável. A água dos rios evaporou, comprometendo a navegação naquela região. 

Corumbá, por sua localização estratégica, é um dos mais importantes portos fluviais da América Latina. Há meses, no entanto, o fluxo de embarcações está reduzido, devido à pouca profundidade das águas. Navegantes têm sido forçados a reduzir a carga embarcada e a recalcular rotas. Muitos deles, em vez de percorrer o Rio Paraguai, que passa por quatro países e sempre foi o principal meio para escoar minérios, farelo de soja e demais produtos das fazendas locais, optam por estradas de terra recém-abertas.

Navegando numa segunda-feira de setembro, Luceni Aparecida Oliveira precisou descumprir uma sinalização que a mandava seguir com seu barco pela margem do rio. “Se seguir, encalho.” Trabalha na região há 26 anos e nunca viu uma situação parecida: navios encalhados por falta d’água, sumiço de peixes. Corumbá é um point internacional de pesca esportiva, mas ultimamente os praticantes dessa modalidade têm sido obrigados a viajar até bem longe do porto para encontrar pacus, dourados e tucunarés.

A cerca de 5 km do porto de Corumbá, no Parque Marina Gatass, fica a sede do Prevfogo. A operação é comandada por Márcio Yule, que, junto de sua equipe, monitora diariamente os índices que influenciam a ocorrência de queimadas no Mato Grosso do Sul: temperatura, umidade, velocidade e direção do vento, nível e potencial pluviométrico do Rio Paraguai. No começo de outubro, quando a piauí visitou a base do Prevfogo, todos os parâmetros indicavam risco extremo de incêndios em Corumbá.

“Onde tem homem, tem fogo. Cerca de 97% dos incêndios são ocasionados pelo homem”, explicou Yule, um campo-grandense de 60 anos de idade. “Por isso, quando o Pantanal enche, o acesso às áreas alagadas fica difícil e o bioma fica mais protegido.”

Ao fim de cada dia, a equipe do Prevfogo se reúne para analisar a previsão do tempo da semana. A meteorologista Naiane Pinto Araujo identificou um potencial tímido de precipitação para os dias 5 e 6 de outubro. A chuva era a única esperança contra o que a especialista descreve como “triplo 30”, um conjunto ameaçador formado por umidade abaixo dos 30%, velocidade do vento acima de 30 km/h e temperatura acima de 30ºC. 

Helicópteros, barcos, caminhões, quadriciclos, reservatórios de água – nada disso mais eficaz, nessa hora, do que um aguaceiro caído dos céus para conter o fogo no Pantanal. “Os antigos estão rezando pra chance de chuva subir”, comentou Charles Pereira. Mas, apesar da reza, não choveu. O céu apenas nublou neste fim de semana, em Corumbá. A umidade, ao menos, subiu para 31% um pequeno alívio para os olhos e gargantas.

Servidores reunidos na sede do Prevfogo (Foto: Lara Machado)

 

Márcio Yule conta que nenhum candidato o procurou para entender os desafios do combate ao fogo e da estiagem. As ONGs Ecoa – que administra uma base de brigadistas voluntários em Corumbá desde 2021 –, Instituto do Homem Pantaneiro – que estreou uma base de brigadistas no ano passado – e Pantanal SOS – que faz o meio de campo entre fazendeiros e órgãos ambientais – também não foram procurados por candidatos.

O desinteresse é a regra, não a exceção. Em 2020, o Pantanal viu um terço de seu território ser devastado por queimadas, segundo dados do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (LASA). Marcelo Iunes (PSDB), que naquele ano se reelegeu prefeito de Corumbá, sugeriu a criação de “uma rede de monitoramento e ação com os demais entes públicos, ONGs, instituições de pesquisas e a iniciativa privada”. A promessa de campanha nunca foi cumprida. Ou melhor, foi. Mas não pela prefeitura.

A proposta de Iunes foi concretizada pela Rede Pantanal, um grupo formado em 2002 que reúne cerca de oitenta pesquisadores do Brasil e de outros seis países. Em 2021, o Ministério da Ciência e Tecnologia passou a prestar apoio institucional à rede, patrocinando-a com verbas para desenvolver tecnologias de combate às queimadas.

A Rede Pantanal lançou, nesta semana, o livro É fogo! Pantanal em um evento na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) em Corumbá. No auditório lotado via-se bombeiros militares, integrantes do Prevfogo e brigadistas de ONGs locais. O livro, escrito por Liana Anderson, Yara Araújo e João dos Reis, pretende ser um guia de atividades educacionais para as escolas, os brigadistas e as comunidades pantaneiras. Segundo a Gerente de Políticas Educacionais de Corumbá, Maria Aparecida Dias de Moura, a publicação será usada na formação pedagógica dos professores do município.

Os moradores de Corumbá, enquanto isso, encontram um jeito de tocar a rotina. Se revezando entre tomar conta dos netos e supervisionar o mercadinho de sua família, Eleoteria Maman, umas das muitas bolivianas que vivem em Corumbá, diz que já se acostumou ao calor e à fumaça. “Minha filha e meus netos ficaram mal, com dor de garganta e tosse, mas já melhoraram.” Ao fundo, as crianças brincam. Às vezes gritam, às vezes tossem alto. É o auge de mais uma tarde abafada em Corumbá. Faz 38ºC, mas Maman garante que está fresco. “O fogo e o calor vão e voltam, só a chuva dá conta mesmo.” À espera de água, Corumbá anoitece enevoada pela fumaça e pelas cinzas.

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