Da esquerda para a direita, Thabatta Pimenta, Duda Salabert, Erika Hilton e Robeyoncé Lima: luta para formar uma bancada trans na Câmara - Intervenção de Paula Cardoso sobre fotos de internet
Ameaça de morte e colete à prova de balas: a campanha da bancada trans
Pela primeira vez pessoas trans e travestis têm chances de chegar ao Congresso Nacional
Quando tinha 17 anos, Thabatta Pimenta venceu um concurso de Miss T, voltado para travestis e trans. A vitória abriu as portas para fazer um teste numa rádio importante da região de Carnaúba dos Dantas, município de 8,3 mil habitantes a 240 km de Natal, capital do Rio Grande do Norte. A morena de cabelos longos e ondulados ganhou um programa diário no horário do almoço, falando de pautas que vão da saúde pública aos direitos humanos. Em 2020, Pimenta entrou para a história do Rio Grande do Norte ao ser eleita vereadora da cidade pelo Pros – foi a primeira travesti a ocupar um cargo eletivo no estado. Tomou posse quatro dias após o funeral de sua mãe, técnica de laboratório que atuava na linha de frente contra a Covid e acabou vitimada pela doença. Desde então, Pimenta assumiu a responsabilidade pelos cuidados com o irmão Ryan, de 35 anos, nascido com paralisia cerebral.
Este ano, Pimenta, de 30 anos, recebeu convites de partidos como PT, MDB e União Brasil para disputar a eleição para deputada federal. Fechou com o PSB. “Ao contrário de 90% da população trans e travesti que se vê obrigada a se prostituir para ter o que comer, eu tive a chance de ter um outro caminho para me sustentar”, disse ela, em entrevista feita por videochamada enquanto se arrumava para um comício. Além da causa LGBTQIA+, defende os direitos da população com deficiência. “É uma das mais importantes para mim. Muitas travestis morreram e derramaram sangue para eu estar onde estou.”
Thabatta Pimenta não está sozinha. A Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) mapeou 79 candidaturas de travestis e trans pelo país nas eleições de 2022 – em 2018, foram 52. Dessas, Pimenta e pelo menos mais três candidatas travestis e transexuais são consideradas com chances reais de serem eleitas deputadas federais este ano: Erika Hilton (Psol-SP), Duda Salabert (PDT-MG) e Robeyoncé Lima (Psol-PE). Todas já ocupam cargos eletivos, como deputadas estaduais ou vereadoras. Nunca na história do Brasil uma das 513 cadeiras da Câmara dos Deputados foi ocupada por uma pessoa trans. Isso deve mudar a partir do ano que vem. No Senado também nunca houve um senador ou senadora trans.
Em 2020, Hilton recebeu 50.508 votos – a vereadora paulistana foi a mulher mais bem votada de todo o Brasil naquele ano. Duda Salabert, de 41 anos, se elegeu por Belo Horizonte com 37.613 votos, sendo a mais votada em seu estado. Lima integra um mandato coletivo como deputada estadual de Pernambuco. O Psol de São Paulo calcula que Hilton possa receber 150 mil votos no pleito deste ano. O PDT Mineiro, que Salabert receba ao menos 100 mil votos.
Apesar da força que essas candidaturas representam para a diversidade do país, todas elas carregam cicatrizes da violência. “Tenho feito a minha campanha com colete à prova de balas, carro blindado e escolta armada”, diz Salabert. No início de agosto, logo quando tornou pública a decisão de se candidatar à Câmara dos Deputados, ela recebeu o seguinte e-mail: “Perder seu emprego foi só um passo. Da próxima vez, você vai perder a sua vida. De SP para MG é só um passo. Quer ser um mártir dos travecos, então beleza, aberração. Posso deixar você mais feio do que já é hoje, apenas preciso de um bastão de aço e de um maçarico. A fúria de Deus vai cair sobre você, aguarde.” A pessoa encerrou a mensagem com uma assinatura típica dos chamados grupos de extrema direita, associados ao neonazismo e a supremacistas brancos, pregando violência contra homossexuais, negros, mulheres e judeus.
Por abjetas que sejam, mensagens assim não são novidade na vida política de Salabert. Em fevereiro de 2020, poucas semanas após tomar posse como vereadora, ela foi demitida do colégio privado na capital mineira onde lecionava português e literatura. Alguns diretores do colégio receberam cartas dizendo que se ela não fosse desligada haveria um “banho de sangue” na escola. As ameaças estão sendo investigadas pela Delegacia Especializada de Investigação de Crimes de Racismo, Xenofobia, LGBTfobia e Intolerâncias Correlatas. Vegana e muito ligada ao meio ambiente, Salabert fala de pautas para além da comunidade LGBTQIA+. “Mas isso não é importante. A nossa simples existência incomoda quem odeia a diversidade.”
Erika Hilton, de 29 anos, também tem feito campanha escoltada por seguranças. “Eu já perdi a conta de quantos boletins de ocorrência registrei em razão de ameaças e ataques recebidos”, diz. Logo quando tomou posse na Câmara de São Paulo, um homem tentou invadir o seu gabinete – ele só saiu de lá após a chegada da guarda. Ao contrário do que pode sugerir, o cargo eletivo e sua consequente projeção social não garantem proteção alguma. “Me sinto mais insegura hoje, tendo sido eleita vereadora e agora em disputa a uma vaga ao Congresso, do que nos tempos em que precisei trabalhar nas ruas.”
Após ser expulsa de casa em razão do fundamentalismo religioso de sua mãe, devota da Congregação Cristã no Brasil, Erika Hilton se viu com uma única alternativa para poder sobreviver: a prostituição. “Estava nas esquinas da vida e entrando em carros de estranhos, em situação de extrema vulnerabilidade, mesmo assim hoje eu me sinto em maior risco”, diz. Hilton voltou para a casa de sua mãe pouco tempo depois, ao final da adolescência, e as duas são muito próximas.
Robeyoncé Lima, de 33 anos, formada em geografia e direito pela Universidade Federal de Pernambuco, nunca estudou em uma mesma sala com outras alunas travestis. Também foi a primeira trans a ser aprovada pela Ordem dos Advogados do Brasil de seu estado – mas entende que esse pioneirismo todo só expõe o atraso do país em políticas afirmativas. “Precisamos pensar em políticas públicas consistentes para que possamos ocupar todos os espaços da sociedade”, diz Lima. “Nesta eleição, as chances reais de vitória de mais de uma travesti e mulher trans vão fazer com que criemos a bancada das deputravas.”
Partidos de colorações políticas variadas, como PSB, MDB, PSDB, União Brasil, Rede, PT e Psol, lançaram candidaturas de pessoas trans este ano. “Precisamos destacar que muitos partidos que ignoram a nossa existência ao longo da história e nem se importam com a diversidade de forma geral agora querem fazer marketing em cima de nossos corpos”, diz Bruna Benevides, secretária de articulação política da Antra, sargento da Marinha e coordenadora do pré-vestibular social Prepara Nem, de Niterói. Hilton reforça: muitos partidos lançam as candidaturas trans para fazer “marketing da diversidade”, mas não dão espaço e verba para as candidaturas decolarem.
A campanha de Hilton já percorreu até o momento 56 cidades paulistas. Ela tem sido acompanhada por uma equipe do jornal britânico The Guardian, que está fazendo um documentário sobre a candidatura de uma travesti no país governado por um presidente que assumidamente odeia a população LGBTQIA+, Jair Bolsonaro. Hilton também foi personagem do documentário Corpolítica, dirigido pelo jornalista e ator Pedro Henrique França e produzido por Marco Pigossi, que estreia no país pelo Festival Internacional de Cinema de Brasília, nos dias 26 e 27 de setembro. “Um dia a nossa presença na política será natural e não sofreremos violência, então esses filmes serão um documento histórico de algo que ficou no passado.”
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