Ilustração: Carvall
Bolsonaro e o marketing do “homem cordial”
Em busca da reeleição, presidente repete discurso chocante que conquistou seu eleitorado mais fiel
Governos que ficam na memória do povo sempre têm uma marca. Positiva ou negativa, costuma estar associada a planos econômicos – Plano Cruzado, Plano Collor, Plano Real – ou políticas públicas de impacto. Em momentos de reeleição, as marcas positivas costumam ser o grande carro-chefe das candidaturas. Lembradas e relembradas à exaustão para mobilizar o chamado voto retrospectivo, uma espécie de balanço do impacto econômico promovido nos anos anteriores.
Ao indagar moradores da cidade de São Paulo, por exemplo, é comum ouvir que Maluf foi o prefeito do Leve Leite, programa de distribuição de leite em pó em escolas da rede pública, e Marta Suplicy a prefeita do bilhete único, que permitia a integração e o barateamento das passagens do transporte público.
Por esse motivo, todas as falas de Lula são povoadas por um desfile de marcas: Bolsa Família, Prouni, Fies, Minha Casa Minha Vida. Além de versões sintéticas, como a garantia de três refeições por dia para todos os brasileiros. Partindo desse raciocínio, um professor de ciência política me perguntou: o que explicaria, afinal, a preferência por Bolsonaro se seu governo não tem nenhuma marca de impacto?
De fato, marqueteiros tradicionais que o rodeiam vêm tentando há algum tempo emplacar algo nesse sentido. Anúncios de cortes de impostos, aumentos em programas de transferência de renda, asfaltamento de trechos de rodovias, e até mesmo a criação do Pix, iniciada antes de sua posse, entram no rol.
Contudo, como afirmam seus próprios eleitores, um dos trunfos do capitão reformado é justamente não se pautar pelo marketing político tradicional.
Desde 2017, as pesquisas qualitativas com os apoiadores mais convictos de Bolsonaro já indicavam que ele era percebido como alguém que fala o que realmente pensa, que é honesto, e que “passa verdade”. Percepção que permaneceu inalterada até o presente momento – e se tornou sua grande marca.
João Doria é tido como o grande contraponto nesse sentido. Excessivamente pautado por media training, politicamente correto, robótico, artificial e sem humanidade. Já Bolsonaro, no extremo oposto, encarna o que o historiador Sérgio Buarque de Holanda chamou de homem cordial – aquele que age com base na emoção, prioriza interesses privados em detrimento dos públicos e é insubordinado e insolente frente à modernidade e às regras institucionais. No caso de Bolsonaro, o homem cordial 2.0, suas injúrias contra minorias são utilizadas justamente como exemplos de que, como um homem brasileiro médio, o presidente também cometeria erros e falaria coisas inapropriadas “no calor das emoções”, mas o faria “sem maldade no coração”.
A proteção aos filhos com interferências explícitas nas instituições é vista com bons olhos. Afinal, antes de ser presidente, Bolsonaro é pai, e quem não faria de tudo para proteger sua própria família?
Sua revolta contra as instituições é enfaticamente celebrada. Ao alardear que seria injustiçado e perseguido pelas instituições e pela mídia, e atacar frontalmente juízes, congressistas e jornalistas com repertório de baixo calão, Bolsonaro encarna a irreverência e insubmissão tão admiradas por seus apoiadores, e que também teriam figurado em sua conduta frente à pandemia.
Entre seus apoiadores, Bolsonaro é tido como o defensor do direito dos brasileiros de garantir seu ganha pão nas ruas contra governadores e burocratas de plantão. Ficar em casa era coisa de playboy e máscara era “coisa de viado”. Poder trabalhar era melhor do que receber auxílio do governo O que estava em jogo, sobretudo entre homens, era o sentimento de dignidade em demonstrar que poderiam enfrentar qualquer perigo para garantir a comida na mesa. “Coisa de macho”, como ouvi de um entrevistado.
Não à toa, sua comunicação se dirige prioritariamente ao público masculino.
Motoqueiro que lidera motociatas, cowboy improvisado do agropop, Bolsonaro inspira uma masculinidade de propagandas de cigarro banidas pelo politicamente correto, faz frente ao “empoderamento feminino” que vem se alastrando Brasil afora e tenta importar o slogan de armas como sinônimo de liberdade.
A construção da imagem de Bolsonaro como um homem cordial 2.0, porém, não é acidental. No início dos anos 2010, Carlos Bolsonaro já havia percebido o potencial das redes de chamar a atenção por meio da viralização de zoeiras e falas chocantes e, com isso, contornar a mídia mainstream, que, em sua visão, estaria ocupada pelo “esquerdismo”.
Em um intervalo de apenas quatro anos, entre 2011 e 2014, a sociedade brasileira passou pelo que foi sentido pelos segmentos mais conservadores como um verdadeiro choque de progressismo.
Em 2011 foi criada a Comissão Nacional da Verdade (CNV) para investigar os crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura militar, e, no mesmo ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a união estável homoafetiva. No ano seguinte, o mesmo tribunal reconheceu também o direito ao aborto em casos de anencefalia fetal e confirmou a validade do sistema de cotas raciais nas universidades públicas. Em 2013 foi promulgada a PEC das Domésticas, que ampliou os direitos trabalhistas das trabalhadoras domésticas, e em 2014 a Lei da Palmada”, que proíbe o uso de castigos físicos e tratamentos cruéis e degradantes a crianças e adolescentes.
Jair Bolsonaro, na época deputado federal, não hesitou em tomar a dianteira na reação a tais avanços. Foi assim que, ao lado de outros parlamentares conservadores, conseguiu barrar a impressão de material escolar relativo ao projeto “Escola sem homofobia”, apelidado pejorativamente de “Kit Gay”. Porém, não obteve o mesmo sucesso em relação à instalação da CNV e à aprovação da união civil homoafetiva, regulamentada pelo Conselho Nacional de Justiça em maio de 2013.
O avanço de tais pautas na mídia tradicional logo passou a causar incômodo e ser sentido como uma “ditadura do politicamente correto”, ou nas palavras de Olavo de Carvalho, “uma ditadura gayzista”, sobretudo entre segmentos mais conservadores.
Como afirmou um entrevistado, o problema seria que “muitos gays gostam de afrontar. Eles querem a mídia, botam na novela, na Malhação. Se empoderam, acham que são donos da verdade, impõem aquilo. Vão andar de mãos dadas no shopping e você está com o seu filho ali. Fazer entre quatro paredes tudo bem, a casa é deles, mas a sociedade não é obrigada a aturar, a assistir”.
Em pouco tempo, as falas chocantes de Bolsonaro fizeram com que conseguisse projeção suficiente para ser repaginado pelo hype da zoeira que acompanha a internet brasileira desde seus primórdios. Logo surgiram no Facebook páginas e perfis como “Bolsonaro Zuero” e “Bolsonaro Opressor 2.0”. Permeadas por sátiras ácidas, palavrões e críticas agressivas a adversários políticos e minorias em formatos de memes, as páginas também reproduziam imagens de Bolsonaro em atividades prosaicas, bem como suas falas mais absurdas com um tratamento irônico.
Inclusive o apelido de “mito”, que passou a ser utilizado entre apoiadores de Bolsonaro, é atribuído aos vídeos veiculados na página “Bolsonaro Zuero”, nos quais óculos escuros pousavam no rosto de Bolsonaro quando falava algo chocante ou irreverente. Em pouco tempo, os responsáveis pelos conteúdos passaram a fazer parte da equipe de comunicação do então deputado, que em 2015 lançou sua candidatura à Presidência da República. Foi a semente do infame Gabinete do Ódio, ou GDO para os mais íntimos.
Em 2017, Bolsonaro já liderava em números de seguidores e reações no Facebook, quantidade de interações no Twitter e total de curtidas no Instagram. Para efeito de comparação, na época Bolsonaro contabilizava 4,7 milhões de seguidores e 3,2 milhões de reações no Facebook, enquanto o segundo colocado, Lula, ex-presidente do Partido dos Trabalhadores que deixou o governo com mais de 80% de aprovação popular, contabilizava 3 milhões de seguidores e 1 milhão curtidas na mesma plataforma.
Hoje, o ecossistema comunicacional de Bolsonaro cresceu, se complexificou e sua sustentação financeira passou para outro patamar com o auxílio da lógica de monetização das redes. Mas a maior parte de seus conteúdos continua a emular o mesmo tom estabelecido há quase dez anos atrás, mobilizando basicamente o mesmo segmento da população.
Assim, apesar dos esforços que marqueteiros tradicionais fazem ao tentar (re) aproximar eleitores indecisos, mulheres e jovens do candidato à reeleição, o que importa de fato para Bolsonaro é sua militância fiel. É para os seus que Bolsonaro fala e com quem conta nos momentos mais difíceis, seja em uma possível derrota nas urnas, prisão ou ruptura institucional.
No dia Sete de Setembro, o teste A/B será nas ruas.