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    Ilustração: Carvall

colunistas

Carta ao viking brasileiro

Bolsonaro incentivará sua indignação, tentará usar sua violência como moeda de barganha e ao final abandonará você na cadeia

Rafael Mafei | 30 set 2022_09h16
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Caro viking patriota,

 

Espero que esta carta chegue a você a tempo. Não posso me comprometer a enviá-la diretamente para você porque duvido que os meus grupos de WhatsApp sejam os mesmos que os seus. Mas com sorte teremos conhecidos em comum em algum dos nossos grupos. Talvez no grupo de pais e mães da escola.

Daqui a dois dias teremos eleições, com apuração quase imediata dos votos. Pelo que leio na imprensa (sim, sim, eu sei), seus grupos estão cada vez mais cheios de mensagens espalhando a crença de que as pesquisas dos institutos que apontam folgada liderança do Lula, com chances de vitória no primeiro turno, são todas mentirosas. 

O próprio Bolsonaro, em quem você de boa-fé acredita, passou a alimentar cada vez mais essa ideia, falando no tal “Datapovo”. Mas o Datapovo não é pesquisa, é só foto e vídeo de um monte de bolsonarista junto, em manifestação convocada pelo Bolsonaro, dizendo que vai votar no Bolsonaro. Se a mesma metodologia fosse usada em uma “pesquisa” na Rua Javari em um jogo da série A2 do Campeonato Paulista, o Datapovo chegaria à conclusão de que o Juventus da Mooca tem a maior torcida do Brasil.

Você deveria considerar a possibilidade de que a própria campanha do Bolsonaro acredite nas pesquisas. A estratégia que ele adotou ao longo da campanha mostra isso: quando as pesquisas mostravam sua desvantagem no eleitorado mais pobre, ele jogou todas as fichas em programas sociais de transferência de renda (do tipo que sempre criticou); quando mostravam que sua curva fraquejava com o eleitorado feminino, colocou Michelle Bolsonaro na vitrine da campanha; quando sugeriam que ele perdia votos com falas radicais, foi para as redes prometer que ia “passar a faixa” e “se recolher” em caso de derrota. Claro que a campanha dele não pode assumir isso, porque daria credibilidade às mesmas pesquisas que até aqui preveem sua derrota. Mas às vezes a gente tem que olhar para o que as pessoas fazem, e não para o que elas dizem. No fundo, esse é o principal recado desta carta: cuidado com o que o Bolsonaro diz, ou dirá, a partir do próximo domingo.

A apuração do dia 2 de outubro confirmará o prognóstico em que você não quer acreditar, mas que muita gente, inclusive o Bolsonaro, sabe que é o mais provável: o apoio dele é bem menor do que a miragem do Datapovo projeta, e tudo indica que Lula ganhará as eleições presidenciais. Talvez até no primeiro turno. Se isso acontecer, é bem possível que Bolsonaro venha a público contestar as urnas; que volte com discursos do tipo “a vitória ou a morte” e “só Deus me tira daqui”; e que instigue ataques contra a Justiça Eleitoral e outras instituições. Aquele documento fajuto do PL publicado na quarta-feira, requentando várias “vulnerabilidades” do sistema, servirá para que o Bolsonaro possa recusar o resultado com base “na nossa auditoria”. Note que nem o presidente do partido, Valdemar Costa Neto, topou assinar a nota. Ao contrário: fez visita ao TSE e atestou que não existe “sala secreta”, nem “sala escura”. 

Se Bolsonaro partir mesmo para a contestação da lisura das urnas e da apuração, o único objetivo dele será incitar apoiadores mais radicais, como você, com a intenção de causar tumulto eleitoral. Essa confusão servirá para dar a ele margem para barganhar algum benefício para si, mas às custas de um enorme prejuízo para você. Se você duvida disso, eu quero lhe contar o que aconteceu com os apoiadores do Donald Trump que, em um cenário parecido com esse que estou descrevendo, atenderam ao apelo do seu líder e foram até Washington para marchar contra a autoridade eleitoral de lá.

 

Quando percebeu que as eleições de 2020 seriam difíceis, e as chances de derrota eram altas, Trump começou de antemão a reclamar que o processo eleitoral dos Estados Unidos não era confiável. Fez uma grande cena contra a votação (em papel!) pelos correios, porque sabia que no meio da pandemia, quem optasse por votar a distância provavelmente seria o pessoal do “fique em casa” e do “vacina sim”, que não votaria nele. Logo depois das eleições, que confirmaram a vitória de Joe Biden no primeiro fim de semana de novembro de 2020, Trump trocou também seu secretário de Defesa, porque sentiu que o cara que saiu (Mark Esper) não era radical o suficiente para bancar uma tentativa de golpe. É provável que ele tenha perdido a confiança no Esper quando o secretário resistiu à sugestão do presidente de que as forças federais atirassem contra os manifestantes que protestavam pela morte do George Floyd. 

No dia 19 de dezembro, depois de ficar um mês e meio martelando, sem prova nenhuma, que a eleição tinha sido fraudada, ele convocou seus seguidores para irem à capital no dia da confirmação do resultado das eleições pelo Congresso: “grande protesto em D.C. no dia 6 de janeiro. Estejam lá, será selvagem!” E foi mesmo selvagem. Essas imagens eu acho que devem ter chegado aos seus grupos. Inclusive as fotos e vídeos de um sujeito vestido de viking, com a bandeira dos Estados Unidos pintada no rosto. 

O pessoal convocado pelo Trump – algo entre 2.000 e 2.500 pessoas – invadiu o Capitólio, entrou em confronto com a polícia, destruiu muita coisa e feriu várias pessoas. Houve cinco mortes. Trump não chegou nem perto do prédio: ficou na Casa Branca e assistiu a tudo pela transmissão da Fox News. De acordo com a Comissão da Câmara dos Deputados dos EUA que investigou o caso, ele passou duas horas na frente da tevê, sem fazer um gesto sequer para defender o prédio nem pedir calma aos seus apoiadores. Impossível que ele não tenha percebido a tragédia que seria aquilo, não acha? Impossível que ele não tenha rapidamente se dado conta de que pessoas se machucariam, seriam mortas, e arruinariam suas vidas com processos e condenações apenas para que ele pudesse tumultuar uma eleição que perdeu.

Sabe o que aconteceu com todos os envolvidos? A resposta correta é: depende de quais envolvidos. Os seguidores fiéis e fanáticos de Trump, que foram alimentados com a mesma narrativa que o Bolsonaro te empurra – “somos a maioria”, “somos os verdadeiros patriotas”, “precisamos lutar pelo nosso país” –, e se dispuseram a ir até o Capitólio e levar a convocação do presidente às últimas consequências, esses se deram muito mal. Mais de 900 pessoas já foram formalmente acusadas, das quais quase 400 já assumiram a culpa. Até junho deste ano, 65 manifestantes estavam cumprindo pena de prisão por sua participação na insurreição. A maior pena até aqui, aplicada a um ex-policial, foi de dez anos de prisão por ter resistido, com golpes de mastro de bandeira, a um policial que tentava imobilizá-lo. 

Já com o Trump, até aqui, nada de muito sério aconteceu. Enquanto sua infantaria está sendo processada e presa, ele até hoje sequer assumiu a derrota nas eleições vencidas por Joe Biden. Seus seguidores estão assumindo a culpa aos montes para escaparem de penas de prisão que poderiam chegar a décadas. Só ele pode se dar ao luxo de seguir vivendo em negação. Trump continua um político popular, sustentado por um partido político muito forte. Ele tem muito dinheiro para bancar advogados bons, que farão o possível para convencer a justiça de que as pessoas que atenderam a seu chamado por um protesto “selvagem” agiram por conta própria. 

Essa foi a linha adotada por todos os políticos trumpistas decisivos para inflamar a turba do Capitólio. A deputada Marjorie Greene (REP-GA), que animara manifestantes dizendo que o 6 de janeiro marcaria uma revolução como a de 1776, rapidamente veio dizer que eles eram na verdade antifascistas disfarçados de trumpistas quando se deu conta do tamanho do estrago; Chris Miller, secretário de Defesa que assumiu depois de Esper deixar o cargo, desconversou sobre o porquê de não ter convocado tropas federais para defender o Congresso e disse que aquele circo era coisa direta entre Trump e seus apoiadores; e o genro do Trump, Jared Kushner, acaba de publicar um livro dizendo que o ataque de 6 de janeiro era imprevisível porque os invasores agiram por conta própria, sem a liderança de ninguém. E Trump? Bem, ele disse que só não foi até o Capitólio pessoalmente colocar ordem na casa porque não deixaram. Note bem: a única concordância entre esse pessoal é que a culpa sobra sempre para os vikings.

Todo mundo que é importante, e que se beneficiaria pra valer se a tentativa de golpe tivesse dado certo, foge da responsabilidade quando a coisa dá errado. Quem sobra com a responsabilidade, as penas, as dívidas advocatícias impagáveis e a vida arruinada são as pessoas que se dispõem a atender o chamado golpista e embarcar numa aventura lunática, que não tem chance alguma de dar certo. Assista ao vídeo da confissão de Daniel Rodriguez, um rapaz da Califórnia que atravessou o país para atender ao “pedido de ajuda” de Trump. Rodriguez foi filmado atacando um policial com uma arma de choque (taser). Ele chora e se diz um “estúpido” por ter acreditado na convocação do presidente. Ele deve passar um bom tempo preso. E Trump jamais gastará um segundo de preocupação com ele. 

Da mesma maneira, Bolsonaro nunca dará a menor bola para você. Sua utilidade para ele estará cumprida se você atender aos eventuais apelos dele para arruaça, violência e confusão. Ironicamente, talvez ele próprio seja a pessoa a ir para cima de você, tentando usar qualquer foco de violência como pretexto para a adoção de medidas de segurança nacional que embaralhem a saída dele do poder. Se a aposta de Bolsonaro der errado, ele perde e você perde; se der certo, ele ganha, mas você continua perdendo.

Bolsonaro sempre descartou os aliados da véspera que não lhe serviam mais. Gente importante, com muito mais poder do que você. Ele não terá problema algum em destruir a sua vida para sempre para melhorar a vida dele, e de seus filhos, por cinco minutos que sejam. Não seja ingênuo. Não seja o viking patriota brasileiro. A propósito, o viking dos Estados Unidos, que ficou conhecido como “Shaman do Q’Anon”, se chama Jacob Chansley. Ele admitiu seus crimes e está cumprindo pena de prisão no estado do Arizona.