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    Ilustração: Carvall

questões eleitorais

Centrão colhe os votos do Orçamento secreto

Bolada de 6 bilhões em emendas de relator beneficiou pelo menos 140 deputados reeleitos pelo bloco de direita aliado a Bolsonaro na Câmara

Breno Pires | 07 out 2022_14h09
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O Congresso que emerge das urnas com um perfil mais à direita não se explica apenas pela nova onda do bolsonarismo – é também resultado da colheita do orçamento secreto. Para chegar à expressiva marca de 257 deputados, os principais partidos do Centrão (PL, Republicanos, PTB, União Brasil, PSC, PP e Patriota) contaram com mais de 6,2 bilhões de reais de recursos das emendas de relator – uma bolada que ajudou a garantir a reeleição de pelo menos 140 parlamentares, mostra um levantamento exclusivo da piauí. Esse valor é superior aos 5,7 bilhões de recursos do fundo eleitoral distribuído entre todos os partidos. Só no PL, de Bolsonaro, 60 deputados reeleitos puderam destinar às suas bases 1,6 bilhão vindos das emendas de relator.

Indo além do Centrão, o orçamento secreto também ajudou na reeleição de 58 deputados de partidos como MDB, PSD, PSDB e Podemos, que são independentes mas, na prática, atuam mais como situação do que como oposição a Bolsonaro na Câmara. Principal instrumento do toma lá dá cá no Congresso, o orçamento secreto foi inaugurado pelo Planalto em 2020 para delegar o controle das verbas federais a deputados e senadores em troca de apoio em votações.

Na comparação entre verbas recebidas de emendas de relator e votos conquistados, o voto mais “caro” do Brasil foi o do deputado Jhonatan de Jesus, do Republicanos de Roraima: 7,7 mil reais. Ele, que teve à disposição 153 milhões de reais de emendas RP-9, foi reeleito com 19.881 votos. A média nacional foi de 255 reais por voto, considerando a distribuição de 9,3 bilhões para deputados reeleitos e um total de 36,4 milhões de votos por eles recebidos. 

Aliado que o presidente da Câmara, Arthur Lira, quer indicar como ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), Jhonatan de Jesus é um dos onze deputados que tiveram mais de 100 milhões de reais em emendas no orçamento secreto para distribuir em seus redutos eleitorais nos últimos anos — um seleto grupo que controlou pelo menos 2 bilhões de reais, encabeçado pelo próprio Lira, autor de indicações de ao menos 500 milhões. Outro reeleito com emendas no Senado foi o ex-presidente da Casa David Alcolumbre, que até hoje se recusa a prestar informações, mas teve 277 milhões empenhados de orçamento secreto no Ministério do Desenvolvimento Regional no mês de dezembro de 2020. 

Cada deputado reeleito desse Centrão expandido teve, em média, 42,8 milhões de reais de orçamento secreto. O montante é 470% acima da média recebida pelos deputados reeleitos pela coligação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT, PCdoB, PV, Psol, Rede, PSB, Avante, Solidariedade, Pros) – 7,5 milhões de reais cada. Veja a lista completa de deputados reeleitos que tiveram acesso às emendas de relator.

A quantidade de parlamentares reeleitos com uma mãozinha invisível no orçamento, e os valores que eles tiveram à disposição, certamente, são maiores. A base de dados analisada pela piauí só leva em conta 19 bilhões de reais, dentro de um valor global de 45 bilhões de reais já empenhados (reservados para gasto), restando ainda outros 8 bilhões de reais a empenhar até o fim do ano. Esses 19 bilhões são valores somados entre indicações que se tornaram públicas depois que o Supremo Tribunal Federal determinou transparência e outras planilhas internas do governo obtidas pelo repórter ao longo dos últimos dois anos.

Os repasses das emendas de relator-geral vêm sendo feitos desde o ano de 2020, segundo ano do governo Jair Bolsonaro. No começo, o ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, supervisionava os repasses em atendimentos a deputados e senadores, para ajudar na eleição de Arthur Lira e do presidente Rodrigo Pacheco às Presidências da Câmara dos Deputados e do Senado. Depois que Lira assumiu o comando da Casa, em fevereiro de 2021, no entanto, o governo lhe delegou o controle das indicações, feitas sob a fachada do relator-geral do orçamento. Na prática, as emendas atendem a deputados e senadores que só prestam conta das solicitações que acharem conveniente divulgar, contrariando a determinação de transparência do Supremo Tribunal Federal. 

A composição do Centrão, contando também com novos eleitos, já faz o grupo largar na próxima Legislatura, em 2023, com a maioria da Câmara: contabiliza 257 dos 513 deputados. A metade mais um. Número suficiente para aprovar projetos de lei e reeleger Lira na presidência da Casa. Se considerarmos o eventual apoio do MDB, do PSD, do PSDB e do Podemos, o grupo chega a 366, ou 71% do total de cadeiras da Câmara, o que dá e sobra para modificar a Constituição sem sobressaltos e, ainda, pressionar o Senado para a aprovação das matérias de seu interesse — sejam fisiológicas, sejam extremistas.

A farra com recursos públicos permite aos deputados e senadores uma espécie de campanha de reeleição permanente, com anúncios e entregas de obras, máquinas e repasses para custeio de saúde em seus redutos eleitorais.

Até candidatos que não eram deputados podem ser considerados beneficiados pelo orçamento secreto. A deputada mais votada do Maranhão é a estreante Detinha (PL), esposa do deputado Josimar de Maranhãozinho, investigado pela Polícia Federal por suspeita de desvio de emendas. O casal se elegeu em campanhas simultâneas. Embora as indicações não estejam no nome de Josimar Maranhãozinho, a irmã dele, Josinha Cunha, que é prefeita de Zé Doca (MA), teve 14,2 milhões de reais em indicações encaminhadas pelo relator-geral do orçamento neste ano. O ex-governador do Rio Grande do Norte Robinson Faria foi eleito deputado federal com apoio do filho, ministro das Comunicações Fábio Faria, que também teve acesso a emendas por ser deputado, apesar de licenciado. Em Minas Gerais, Samuel Viana foi eleito deputado federal com a ajuda do pai, o senador Carlos Viana – não só com emendas, como também com a promoção pessoal que obteve em eventos na Superintendência da Companhia de Desenvolvimento do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) em Minas, onde o pai mantém influência. Todos eles do PL.

Os resultados da eleição reforçam o que já foi revelado em inúmeras reportagens: as emendas do orçamento secreto privilegiam a base aliada do presidente Jair Bolsonaro. Em troca de apoio no Congresso, o Executivo abre mão de uma de suas atribuições fundamentais – definir o destino de parcela relevante do orçamento, em um contexto de diversos cortes em setores essenciais como saúde e educação – para atender indicações de deputados e senadores. A maioria delas não segue critérios técnicos nem precisa estar dentro das programações de gasto dos ministérios. 

Ações no Supremo pedem o fim do instrumento, por inconstitucionalidade, e o Supremo se prepara para julgar o mérito em breve, apesar das tentativas de intimidação de aliados de Lira no Parlamento.

Segundo Isabel Veloso, doutora em Ciência Política e professora da FGV Direito Rio, que auxiliou a piauí no tratamento estatístico das informações, os dados traduzem em números o que já se desconfiava: o Centrão foi o maior beneficiário do orçamento secreto. “Naturalmente, embora não seja possível estabelecer uma relação causal única entre o acesso ao orçamento secreto e o número de votos, esse panorama de sucesso eleitoral do Centrão denota que o orçamento secreto pode ser um caminho sem volta. Em outras palavras, a manutenção desse cenário será prioridade para esses parlamentares”, disse Veloso.

A professora afirmou ainda que o orçamento secreto está diretamente relacionado a cortes de 60% no programa Farmácia Popular, o que pode acelerar mortes por falta de tratamento médico, bem como a cortes no INSS, educação, cultura e recursos para o fundo de ciência e tecnologia. “Ou seja, a alocação clara e objetiva de recursos, que já eram escassos, vem sendo substituída pela distribuição pouco transparente de verbas para favorecer aos redutos eleitorais dos parlamentares, particularmente aqueles do Centrão”, analisa.

Para Bruno Brandão, diretor executivo da Transparência Internacional Brasil, o orçamento secreto “é o maior esquema de institucionalização da corrupção de que se tem registro na história brasileira, com danos profundos e variados”. “O pior é o prejuízo para a própria democracia, já que essa apropriação do orçamento público serve como verba de campanha para políticos corruptos e fisiológicos perpetuarem seu poder”, disse. Além disso, o orçamento secreto gera enormes prejuízos na execução das políticas públicas, avalia ele, pois os recursos, já escassos, são destinados sem lógica de prioridades. “Isso tudo potencializa a corrupção na ponta, nos municípios que recebem quantidades desproporcionais de recursos, sem transparência nem controles mínimos”, comentou Brandão.

 

Considerando os deputados eleitos em 2018, 281 foram reeleitos; se a conta incluir todos os 596 que exerceram mandato ao longo desta legislatura, foram 294 reeleitos. O índice de renovação ficou dentro da média histórica, 39%. Nas eleições de 2018, a renovação havia sido bem mais alta: 47%. Parte da queda na renovação, certamente, se deve ao orçamento secreto. O índice de reeleição dos candidatos do Centrão com acesso a essas emendas ficou em 71%. Quanto mais emendas, melhor. Entre os 50 candidatos que receberam mais verbas, 43 se reelegeram deputados (86%).

A renovação seria ainda menor não fosse um outro fenômeno nesta eleição: a defenestração de deputados que se mantiveram mais ao centro, sem vinculação clara com as candidaturas de Lula nem de Bolsonaro. O ex-vice-presidente da Câmara dos Deputados, Marcelo Ramos (PSD-AM), alimentava o sonho de disputar com Arthur Lira a presidência da Câmara em fevereiro de 2023, mas falhou em reeleger-se. No caso dele, crítico a Bolsonaro, nem o orçamento secreto fez diferença: ele indicou mais de 162 milhões de reais. “Exerci esse mandato concedido por Deus e pelo povo do Amazonas sem me afastar dos meus princípios, sem negociar valores democráticos”, escreveu a interlocutores após a eleição. 

O deputado Fábio Trad (PSD-MS), que teve entre 2019 e 2021 papel importante durante a gestão do ex-presidente da Câmara, Rodrigo Maia, acredita não ter conseguido a reeleição porque se posicionou ao centro. “Venceu a polarização que derrotou o centro e mantém o Centrão. Direita e esquerda farão o debate programático, mas o pragmatismo do Centrão sobreviveu e ao que tudo indica continuará mandando”, disse. “Espero que a nova direita eleita seja mais liberal e menos bolsonarista. Mais doutrinária e menos personalizada no fanatismo ególatra que corteja Bolsonaro.”

A deputada Talíria Petrone (Psol-RJ), reeleita como a terceira mais votada no Rio de Janeiro, enxerga o “Congresso mais conservador da nossa história e um Senado tomado por setores bolsonaristas”. “A ideologia bolsonarista infelizmente não está concentrada na figura de Bolsonaro, mas dialoga com um submundo que muitas vezes nem a pesquisa acerta. A esquerda e mesmo a direita democrática vão precisar entender isso melhor”, disse. Nesse cenário, segundo ela, uma eventual reeleição de Lira como presidente da Câmara seria muito danosa ao país, pois ele, em sua avaliação, “apostou em diversos caminhos antidemocráticos em termos de respeito às minorias na Câmara”.

No Senado, a segunda onda bolsonarista foi ainda mais nítida. O PL, partido do presidente, elegeu 8 e terá a maior bancada a partir de 2023, com 13 senadores. Pode ir a 15 se dois senadores do PL que ainda disputam governos em seus estados perderem o segundo turno – e ainda conta com senadores aliados de outros partidos. O PL superou MDB, PSD e União Brasil e brigará pela presidência da Casa, tornando-se um obstáculo potencial para o atual presidente, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que tem feito acenos a Lula nos bastidores e certamente terá mais dificuldades que Lira para se reeleger.

 Se, na Câmara, Lira tem obtido sucesso entre os pares em sua gestão focada no empoderamento dos deputados graças ao Orçamento secreto, no Senado Pacheco ainda acena para a necessidade de resguardo do campo democrático. Interlocutores do presidente do Senado afirmam que ele fez alguns freios de arrumação diante de pressões bolsonaristas, como o arquivamento do pedido de impeachment que o próprio Bolsonaro apresentou contra o ministro do STF Alexandre de Moraes. Pacheco também deixou morrerem na praia proposições legislativas relacionadas a homeschooling, flexibilização das leis ambientais e relacionadas a armas de fogo. 

 

O resultado das urnas mostrou também os desdobramentos da famosa reunião ministerial de 22 de abril de 2020. Naquela data, as mortes no país ainda não haviam chegado a 3 mil. Hoje são mais de 680 mil. Foi naquela reunião, gravada pelo governo e depois tornada pública por decisão do Supremo Tribunal Federal, que Jair Bolsonaro prometeu mexer na Polícia Federal: “Eu não vou esperar foder a minha família toda.” Dos presentes naquele encontro, sete acabam de ser eleitos senadores ou deputados federais. Outros dois, Onyx Lorenzoni e Tarcísio de Freitas, são candidatos aos governos estaduais do Rio Grande do Sul e de São Paulo, no segundo turno. E Braga Netto é o candidato de Bolsonaro a vice-presidente.

O ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles – que conclamou os presentes a “ir passando a boiada” e “mudando todo o regramento” ambiental enquanto na mídia “só se fala de Covid” – foi eleito deputado pelo PL de São Paulo. O ex-ministro do Turismo Marcelo Álvaro Antonio, que discursou a favor da abertura de cassinos, foi reeleito deputado por Minas Gerais. Outros quatro senadores eleitos presentes na reunião de abril são o vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos-RS), a ex-ministra Tereza Cristina (Progressistas-MS), o ex-ministro do Desenvolvimento Regional Rogério Marinho (PL-RN) e o ex-ministro da Justiça Sergio Moro (União Brasil-PR) – que acusaria Bolsonaro de interferência ilegal na Polícia Federal, mas pediu perdão e tentou se colar de novo no presidente. Entre os ex-ministros eleitos, mas que não participaram da reunião, estão Marcos Pontes, da Ciência e Tecnologia, eleito para o Senado (PL-SP); Eduardo Pazuello, da Saúde, eleito deputado federal (PL-RJ); e Osmar Terra, da Cidadania, reeleito deputado federal (MDB-RS). 

A ex-ministra Damares Alves (Republicanos-DF), agora eleita para o Senado, disse na  reunião que era preciso prender governadores e prefeitos que determinaram medidas restritivas para combater o coronavírus. “A maior violação de direitos humanos da história do Brasil nos últimos trinta anos está acontecendo neste momento, mas nós estamos tomando providências. A pandemia vai passar, mas governadores e prefeitos responderão processos e nós vamos pedir inclusive a prisão de governadores e prefeitos”, afirmou.

Ela, que também agiu para impedir que uma criança de 10 anos, vítima de estupro, abortasse, e acompanha sem espanto cortes e mais cortes do orçamento de seu ministério para ações para mulheres, agora que ser a presidente do Senado. O que a anima é o fato de ter superado o Centrão na eleição do Distrito Federal, ao derrotar, com folga, a também ex-ministra Flávia Arruda, que é do mesmo partido de Bolsonaro, o PL. Uma eventual vitória de Lula certamente bloquearia o caminho de Damares. Em um eventual segundo mandato de Bolsonaro, tudo será possível. O bolsonarismo, já se sabe, pede mais Damares e menos Centrão. Mas, como se sabe, as presidências das Casas envolvem o controle de bilhões do orçamento, que, ideologia à parte, continuará sendo a prioridade das lideranças do Parlamento, quem quer que seja o presidente.